O Projeto de Lei do Senado Federal nº 156, de 2009, que institui um novo Código de Processo Penal brasileiro, prevê a figura do juiz de garantias, com atribuição específica de tutelar os direitos fundamentais das pessoas investigadas, no curso do inquérito policial.
O modelo proposto não institui um juiz instrutor, competente para presidir a investigação, mas sim mantém a atribuição que os juízes já possuem na fase investigatória de garantir os direitos fundamentais das pessoas investigadas, zelando pela legalidade do inquérito.
O Código de Processo Penal de 1941, de matriz inquisitorial, previa várias formas de participação do juiz na fase investigatória, inclusive conferindo-lhe a função de decidir pedidos de prorrogação de prazo para a conclusão do inquérito policial. Contudo, após a Constituição de 1988, que consagrou o sistema acusatório, não só no art. 129, I, mas também como corolário da cláusula do due process of law, a prática judiciária já reduzira consideravelmente a atuação do juiz na fase pré-processual. No âmbito do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, desde 1997 vigora a regra de que inquéritos policiais devem tramitar diretamente entre a autoridade policial e o Ministério Público, órgãos incumbidos da persecução penal (art. 196 da Consolidação de Normas da Corregedoria Geral da Segunda Região).
É indiscutível que a cada vez que o juiz é instado a decidir matéria pertinente à investigação, ele fará uma análise, ainda que superficial, do objeto desta. Como deliberar sobre o pedido de prorrogação de prazo para a conclusão do inquérito policial sem avaliar se a prova até então colhida é ou não suficiente para o oferecimento da denúncia? É evidente que tal função deve ser exercida pelo Ministério Público, órgão destinatário da prova colhida na fase pré-processual.
Contudo, no que se refere às medidas de caráter investigatório ou assecuratório restritivas de direitos fundamentais que devam ser tomadas na fase de investigação, não se pode prescindir da participação do juiz. Sua função não é a de coadjuvar a polícia ou o ministério público na apuração dos fatos ocorridos, mas sim de garantir os direitos das pessoas eventualmente atingidas pela investigação.
Esse papel, no sistema do atual Código de Processo Penal, é exercido pelo mesmo juiz criminal que posteriormente julgará a ação penal. Há inclusive uma regra clara de fixação da competência desse juiz, por prevenção (art. 83 do Código de Processo Penal). Assim, se na fase investigatória a autoridade policial dirige-se ao juiz para requerer a adoção de medidas probatórias que impliquem em restrição a direitos fundamentais do investigado, tais como, a quebra de sigilo de dados privados (bancário, fiscal, telefônico), a interceptação de comunicações telefônicas, a gravação ambiental, a busca e apreensão etc., é inevitável que este juiz acabe participando da investigação, ainda que, em tese, na posição de garante dos direitos das pessoas atingidas por tais medidas.
Tratando-se de medidas cautelares probatórias, o juiz deve examinar: 1. se há prova já produzida no inquérito policial que indique que a pessoa cuja privacidade será invadida participou do crime sob investigação, ou seja, o juiz deve aferir se há indícios minimamente consistentes de que aquela pessoa está envolvida na prática do crime investigado; 2. se a medida investigatória invasiva do direito de privacidade do investigado é adequada e necessária, ou seja, (I) se através daquela medida se chegará ao resultado pretendido pela autoridade policial, e (II) se não há outras medidas probatórias menos gravosas que poderiam ser utilizadas.
Está claro que essa avaliação obriga o juiz a formular uma opinião, ainda que não definitiva, sobre a linha investigatória adotada e sobre os fatos e pessoas envolvidas na investigação. Esse papel que o juiz é chamado a exercer demanda redobrada cautela, pois, por um lado, o mesmo não pode substituir os órgãos de persecução penal na condução da investigação, e também não deve cercear indevidamente a ação dos órgãos de investigação. Por outro lado, ele não pode se demitir do seu dever de tutelar os direitos das pessoas investigadas, impedindo que sofram restrições injustificadas ou desarrazoadas. E, principalmente, ele deve procurar não se contaminar pelas versões dos fatos que lhes são trazidas pela autoridade policial e pelo Ministério Público no curso da investigação. Não é uma tarefa simples. Pelo contrário, é extremamente difícil, quase impossível, que o juiz se mantenha alheio às versões dos fatos que vão sendo reveladas no decorrer da investigação e que lhe são narradas e traduzidas pela autoridade policial a cada nova representação.
Quando, finalmente, a investigação é encerrada com seu clímax, que é a chamada operação policial, na qual se expedem comumente mandados de busca e apreensão e de prisão cautelar, o juiz já está absolutamente familiarizado com os fatos. Ele participou ativamente da investigação policial e já formou um juízo sobre o que ocorreu, quem são as pessoas envolvidas etc. Nesse cenário, é evidente que a defesa entra em desvantagem, e sua fala já não merece a mesma atenção e credibilidade daquele juiz. Ademais, se foi ele próprio quem avaliou a pertinência e a legalidade das medidas probatórias realizadas na fase pré-processual, é bastante improvável que ele desqualifique a prova que foi produzida e mude de ideia quanto ao resultado que foi colhido.
Assim, a regra que se pretende introduzir de que o juiz que participou da investigação não seja o mesmo que vai julgar o processo, sem dúvida, é consentânea com o sistema acusatório, eleito pelo constituinte de 1988. O juiz competente para processar e julgar a ação penal, não tendo sido instado a tomar decisões pertinentes à fase investigatória, estará muito mais qualificado para realizar o julgamento justo e imparcial. A participação no inquérito contamina o juiz, tornando muito mais árdua a tarefa da defesa de se fazer ouvir no processo.
Sem dúvida que o novo Código de Processo Penal poderia apenas instituir uma regra de impedimento, em que o juiz que houvesse tomado qualquer decisão na fase investigatória estaria impedido de atuar na fase processual. Contudo, o Projeto vai além, prevendo um juiz especializado, um juiz que terá a atribuição exclusiva de tutelar os direitos das pessoas investigadas e a legalidade da atuação dos órgãos de persecução. A medida é positiva e tem a vantagem de retirar das varas criminais o acervo de feitos que digam respeito à fase investigatória. Hoje, os juizes criminais (ao menos na Justiça Federal), e as suas secretarias, dividem-se entre o processamento das chamadas medidas cautelares de investigação e das medidas cautelares assecuratórias, a apreciação de pedidos pertinentes a inquéritos policiais (pedidos de vista, habeas corpus, destinação de material arrecadado etc.) e o processamento das ações penais.
A instituição de juízes de garantia, evidentemente com estrutura própria, sem dúvida, trará maior agilidade ao funcionamento das varas criminais. Os juízes dessas varas poderão dedicar-se exclusivamente à condução cuidadosa e célere do processo criminal, assegurando os direitos das partes de postulação e instrução e proferindo a sentença criminal válida e justa em prazo razoável.
Assim, é excelente a medida, proposta no PLS 156/2009, de instituição do juiz de garantias. Eventuais dificuldades burocráticas e operacionais de implementação da medida não devem ser invocadas para sua rejeição. Ainda que se preveja um período de transição, necessário para a criação, estruturação e provimento dos novos cargos, sem dúvida, o resultado final será a instituição de uma Justiça criminal mais justa, garantista e eficiente.
Simone Schreiber
Juíza Federal Titular da 5a Vara Federal Criminal
SCHREIBER, Simone. O juíz de garantias no projeto do código de processo penal. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 02-03, ago., 2010.
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