Por quase cinco horas, médicos e profissionais ligados à área de saúde de diferentes segmentos defenderam ou criticaram, durante 20 minutos cada, o pedido para que a interrupção da gravidez até a 12ª semana deixe de ser crime. Atualmente, a legislação brasileira permite o aborto em casos de estupro, risco de vida ou fetos anencéfalos. Desde março do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa uma ação que amplia este direito.
Antes de decidir sobre o tema, que sempre gera polêmica, a relatora da ação no STF, ministra Rosa Weber, decidiu marcar audiência pública para ouvir especialistas de saúde, direitos humanos, pesquisadores e cientistas e religiosos sobre o assunto.
Na primeira parte da audiência, 14 convidados falaram favoravelmente à descriminalização do procedimento, destacando direitos da mulher como dignidade e cidadania e alertando para casos de violência doméstica, gravidez indesejada na adolescência, entre outros relatos que levam milhares de mulheres a buscar métodos clandestinos de aborto. A principal preocupação desses especialistas são as complicações e mortes ocasionadas, de certa forma, pelas dificuldades devidas à criminalização do ato. Eles argumentam que, deixando de ser crime, o procedimento passará a ser mais seguro e poderá integrar uma política mais completa de saúde que inclua o aconselhamento anticonceptivo que poderia evitar novos casos.
Ingriane Barbosa, de 30 anos, que morreu há pouco mais de 10 dias, em Petrópolis (RJ), por uma infecção generalizada depois de tentar interromper a gravidez usando um talo de mamona, recebeu homenagens de parte dos especialistas. O caso é um dos mais recentes entre mortes por uso de métodos inseguros de aborto. Ingriane tinha três filhos e já tinha feito um aborto. “Foi a criminalização do aborto que matou Ingriane e deixou seus filhos órfãos”, disse a pesquisadora Debora Diniz, do Instituto Bioética.
Debora lembrou que, apesar do aborto ser um evento comum entre as mulheres, a distribuição dos riscos é desigual. Isto porque, segundo a pesquisadora, o acesso a métodos mais seguros, ainda que clandestinos, é mais acessível a mulheres brancas, de maior poder aquisitivo. Ela citou um estudo de 2010, publicado em 2016, segundo o qual, no Brasil, a cada ano, meio milhão de mulheres interrompem a gravidez.
“O estudo foi financiado pelo Ministério da Saúde e cobriu 83% da população do Brasil urbano. A coleta foi feita por mulheres entrevistando mulheres, usando a ténica de urna secreta. Essas mulheres recebiam cédulas com cinco perguntas. A primeira era se já tinham feito um aborto. Não trata-se de abortos espontâneos”, explicou.
O resultado revelou que, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já fez pelo menos um aborto na vida. “Fizeram o aborto jovens, entre 20 e 24 anos. Geralmente hoje têm filhos e sabem o significado da maternidade, mas viram-se diante de um imperativo de não sere, capazes de levar adiante uma gestação. É uma mulher por minuto. São 503 mil mulheres”, lamentou.
Aqueles que defendiam a descriminalização pediam que o aborto seja tratado como um procedimento de saúde pública. A professora Melania Amorim, do Instituto Paraibano de Pesquisa Joaquim Amorim Neto, afirmou que a mortalidade materna relacionada ao aborto seguro é considerada zero nos países em que aborto é descriminalizado, enquanto o Brasil tem uma morte por aborto a cada dois dias. Fazendo coro aos demais defensores da descriminalização, Melania disse que as mortes maternas por aborto ocorrem caracteristicamente entre mulheres jovens, negras, de baixa renda e de baixa escolaridade.
“São mulheres que não têm, em geral, conhecimento sobre métodos de aborto. Quem tem recursos pode ter acesso a métodos seguros, embora clandestinos. O principal fator impeditivo ao acesso ao aborto seguro é a criminalização, que aumenta a mortalidade sem reduzir a ocorrência de abortos induzidos. Para a professora, o aborto seguro garantiria a aproximação entre pacientes e médicos e profissionais de saúde que poderiam reforçar informações para evitar uma nova gestação indesejada.
"Estimativas são chutes"
O médico ginecologista Rafael Câmara, coordenador da Residência Médica e Ginecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi o primeiro a divergir dos favoraráveis à descriminaliação, afirmando que “a liberação do aborto, sim, é problema de saúde pública”. Ao lançar a frase que arrancou os primeiros manifestos da plateia que acompanhava a audiência, Câmara afirmou que não é “fanático religioso”, como são frequentemente são considerados os que são contra o aborto.
Em 20 minutos – tempo dado a cada um dos convidados para apresentar seus argumentos –, o médico questionou as pesquisas sobre mortes e complicações por aborto ilegal. “Não dá para estimar a porcentagem de abortos ilegais. Não há epidemia de internações por aborto. Essas estimativas são chutes. Isso é chute. Não está embasado”, afirmou Câmara.
Segundo o médico, nem sequer o perfil de mulheres mais afetadas pelas complicações do aborto ilegal pode ser considerado verdadeiro. “A saúde publica é ruim para todo mundo. Sou médico da saúde pública.”
Câmara afirmou ainda que o aborto legal “não é tão seguro assim” e disse que muitos médicos se recusam a executar o procedimento mesmo nos casos previstos em lei, como os de estupro. “Médicos que recebem casos como estupro ficam sem saber o que fazer. Há casos em que a equipe de enfermagem nega-se a participar. Outra coisa, se não tem dinheiro para as maternidades no país, vai ter dinheiro agora para aborto? Vai ter a fila do aborto. Quem vai fazer o aborto? Vamos cuidar das maternidades antes”, enfatizou.
Entre todas as exposições, a de Rafael Câmara foi a única que precisou ser interrompida pela relatora Rosa Weber, que pediu novamente tolerância. “Temos que saber escutar as manifestações, opiniões e dados com os quais não concordamos. Temos que exercer a tolerância sob pena da audiência pública não atingir seus objetivos”, disse.
Uma nova série de falas favoráveis à mudança da lei reiterou números e argumentos, arrancando aplausos de uma plateia majoritariamente favorável à descriminalização do aborto, até que, pelo Movimento Nacional da Cidadania pela Vida, a médica Lenise Garcia fez críticas à liberação da prática.
A médica afirmou que um embrião já é um ser humano e, para reforçar o argumento, apresentou um vídeo que mostra o desenvolvimento de um embrião com 11 semanas. “A fertilização é o referencial inegável para todas as etapas do desenvolvimento desse novo ser humano. Nenhum ser começa com 12 semanas, como nenhum mês começa no dia 12. De onde vêm esses referenciais temporais?”, questionou Lenise.
A ação em tramitação no STF, pede que a interrupção da gravidez até a 12ª semana deixe de ser crime. Segundo Lenise, a referência de semana tem como única justificativa o fato do aborto no início da gestação oferecer menos riscos à mulher do que o trabalho de parto. “Não existe nenhuma referência relativa ao desenvolvimento do embrião. É totalmente arbitrária a definição de 12 semanas. Tanto é que Portugal trabalha com 10 semanas, a Argentina com 14, o Reino Unido, com 20. Se houvesse dado científico, não teríamos essa data arbitrária”, disse a médica. “E, se o aborto é um problema, não pode ser solução”, afirmou.
Fonte: Agência Brasil
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