Na relação processual penal, todos os atores têm assegurados seus direitos. As carreiras públicas, juiz, agente do Ministério Público e defensor público, são estruturadas em legislação que lhes permite o pleno exercício de suas funções e vencimentos adequados. Advogados particulares estão protegidos pelo Estatuto da OAB. Policiais civis enfrentam maiores dificuldades de estrutura, mas fazem parte de carreiras.
O acusado, seja qual for o nome que a moda lhe atribua (v.g., suspeito), recebe atualmente tratamento melhor que nunca. Os novos delegados de Polícia são homens e mulheres jovens, que passaram em concurso muito difícil, e que repudiam qualquer desrespeito ao acusado. E mais. O acusado tem o direito de ficar calado, de não ser algemado, salvo hipóteses raras, de não ser conduzido coercitivamente e quando, apesar de tudo, sofre uma injustiça de qualquer natureza, tem ao seu lado a ação de entidades de defesa de direitos humanos e a mídia.
Sem nenhuma crítica a este sistema difuso de proteção aos partícipes do sistema, cabe indagar: e a vítima? A resposta é simples: fica abandonada. A ela ou a seus familiares só resta a solidariedade de parentes e amigos.
É verdade que o Código de Processo Penal dá-lhe o direito de ser ouvida e requerer diligências à autoridade policial (artigo 6º, IV e 16), de habilitar-se, na ação penal, como assistente da acusação (artigo 268) e de ter na sentença fixado o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração (artigo 387, IV, com a redação da Lei 11.719/2008). Mas estes direitos, além de pouco significantes, raramente são cumpridos. Vejamos.
Quem já foi vítima, sabe que o incômodo pode começar ao ter que dirigir-se à Polícia para lavrar o boletim de ocorrências. Não é raro ter que esperar longo tempo. Pior ainda se o fato envolver furto de veículo, quando terá que sujeitar-se à liberação. Muitos desistem, o que prejudica as estatística e planos de combate à criminalidade. Se a vítima for mulher, nem sempre encontrará uma delegacia da mulher disponível e terá que sujeitar-se a narrar fatos, às vezes constrangedores, a um policial do sexo masculino.
Avancemos, imaginando que já há investigações. Na Polícia raramente a vítima intervém nesta fase. E, se o fizer, será informalmente, passando informações ao investigador ou algo semelhante. Não formalmente, porque cada vez mais as vítimas são ameaçadas e temem vingança. A Lei 9.807/99, para a sua proteção, não atende as mínimas necessidades.
Na fase judicial, não são comuns pedidos de assistência ao MP, pois isto representa contratação de advogado, com o consequente dever de pagar honorários. A assistência à acusação pode ser muito útil na descoberta da verdade e na celeridade da Justiça. Por exemplo, pode intervir cobrando o cumprimento de uma precatória expedida para comarca distante, com o objetivo de retardar o julgamento da ação penal.
Mas, se a vítima não tem posses, como habilitar-se na assistência ao MP? As defensorias não disponibilizam tal tipo de serviço e não estão em todas as comarcas, além de enfrentarem o problema de excesso de trabalho. Pode ser nomeado um advogado dativo para tal fim. Contudo, isto não faz parte de nossos hábitos.
Há, é verdade, pela reforma do código em 2008, a possibilidade de o juiz fixar o valor mínimo para a reparação dos danos quando profere a sentença. A redação ambígua dada ao artigo 387, inciso IV do CPP, acabou fazendo com que esta inovação seja mais uma frustração para a vítima. Guilherme de Souza Nucci critica a inovação processual, taxando-a de “vacilante e sem objetivo”.[i] Eugênio Pacelli e Douglas Fischer atribuem-lhe a condição de “inadequada, porquanto sem a menor técnica”.[ii] O fato é que elas são raríssimas e não tem ajudado as vítimas de crimes.
Com efeito, a lei não esclarece como se fixará esta indenização. Evidentemente, é preciso que haja pedido da vítima e defesa do réu, estabelecendo-se contraditório. Ademais, a lei não esclarece se o dano moral fará parte deste valor. E ao estabelecer um valor mínimo, dá à vítima o direito de pleitear mais em ação civil indenizatória. Portanto, prolongando o conflito.
Mas quem são, realmente, as vítimas de fatos delituosos no Brasil?
É óbvio que vítimas são as que sofrem o dano praticado pelo ofensor ou se colocam em estado de perigo de sofrê-lo. Por exemplo, quem tem um bem de sua propriedade subtraído, sofre lesões corporais, é levada a erro por um estelionatário e outras tantas formas previstas na legislação penal.
Mas há outras tantas, que sofrem as consequências do crime indiretamente, às vezes nem mesmo tendo consciência disto. Chamemo-las de vítimas dispersas. Elas são as que sofrem as consequências do crime sem que isto fique explícito no processo. Exemplos. Os que pagam seguro mais elevado em razão da enorme quantidade de furtos de veículos, os que, morando em áreas conflagradas do Rio de Janeiro, não dispõem de serviço de entrega de correspondência pelo Correio, os que sofrem as consequências da poluição do ar ou que, temerosos, deixam de usufruir prazeres como uma simples caminhada à noite.
Focando nas vítimas diretas, apontada a condição de fragilidade em que se encontram, vejamos o que pode ser feito para minimizar sua dor. As sugestões serão dadas de acordo com a nossa realidade de país com baixos índices de desenvolvimento e elevados índices de corrupção. São elas:
Vítimas devem ser bem tratadas. Neste sentido, nas delegacias de polícia, isto deve ser meta expressa e difundida aos que fazem o atendimento, inclusive dando-lhes capacitação. No caso de mulheres, se o Estado tem dificuldades financeiras para implantar delegacias da mulher em todo o território, pelo menos poderia ser reservado um espaço dentro das delegacias para tal fim.
As vítimas, muitas vezes, desconhecem onde devem registrar o BO, principalmente nas cidades maiores. Informações na internet, através de site específico, ou no Facebook, acompanhadas de mapa correspondente, podem resolver este problema com facilidade. Um bom estagiário poderá fazer este tipo de serviço a custo zero. A matéria foi objeto de artigo específico, com exemplos de sites em diversos países.[iii]
As Defensorias, que cuidam com reconhecido zelo dos direitos constitucionais dos acusados, poderiam criar grupo específico para orientação e atendimento das vítimas. Um coordenador-geral na capital poderia centralizar as informações e abastecer os participantes.
As secretarias da Segurança Pública, cartórios e secretarias de juizados e varas judiciais, poderiam entregar à vítima uma folha esclarecendo, de forma direta e linguagem simples, seu direito a indenização e como deve agir para alcançar tal fim.
A fiança poderia ser concedida com mais frequência, principalmente na Justiça Estadual. Como lembra Fernando Palazzo, ela “ assume um papel extremamente relevante, pois empregada como uma alternativa à prisão preventiva desempenhará relevantes funções processuais, assim como poderá ser utilizada para indenizar as vítimas, nos termos previstos no artigo 336 do Código de Processo Penal”.[iv] Para tanto, basta que haja um pedido da vítima ao juiz criminal, que se justificará em caso de quebra da fiança (artigos 341, 343 e 344 do CPP). Sendo absolutória a sentença (artigo 337), o depósito poderá ficar bloqueado até a decisão definitiva da ação civil. No conflito de interesses entre indenizar a vítima ou enviar o dinheiro da fiança ao Fundo Penitenciário (artigo 345 do CPP), evidentemente prevalece o primeiro.
A vítima tem direito a um ressarcimento célere. Se o nosso processo penal, pleno de garantias constitucionais, faz com que ações penais demorem 10 ou mais anos (o ex-deputado Carli Filho, por crime de homicídio praticado em 7/5/2009, só foi a julgamento em primeira instância em 28/2/2018)[v], é preciso que nas ações civis de indenização sejam fixados alimentos provisórios, a favor do ofendido ou de sua família.
A estas sugestões, outras tantas podem ser acrescidas. Mas o principal é ter em mente que a vítima deve sair do estado de desprezo silencioso a que está atualmente submetida, assumindo o reconhecimento do sistema de Justiça e da sociedade.
[i] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 736.
[ii] Pacelli, Eugênio e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2016, p. 868.
[iii] FREITAS, Vladimir Passos de. SANTOS, Luís Felipe Soares dos. Sítios policiais na internet colaboram para a informação e a efetividade do Direito Constitucional à Segurança Pública. Em: Segurança Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, pp. 205-228.
[iv] PALAZZO, Fernando. O paradoxo da aplicação da fiança nos crimes hediondo. Consultor Jurídico, 12/8/2018. Acesso em 18/8/2018.
[v] Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/ex-deputado-carli-filho-e-condenado-por-duplo-homicidio-com-dolo-eventual.ghtml. Acesso em 17/8/2018
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 19 de agosto de 2018.
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