Na semana passada, um tribunal de recursos de Nova York manteve a decisão de uma juíza de primeiro grau que condenou um réu acusado de crime não violento a duas prisões perpétuas, sem direito à liberdade condicional. A juíza Kathleen Forrest declarou, em sua decisão, que era uma punição exemplar, para dissuadir outras pessoas a cometer a mesma espécie de crime.
O crime cometido por Ross Ulbricht foi operar um mercado negro na camada “Dark Web” da Internet. O site Silk Road de Ulbricht, que utilizava o pseudônimo de Dread Pirate Roberts, servia de plataforma para compra e venda de drogas, bem como para comercialização de documentos falsos, outros produtos ilícitos e para lavagem de dinheiro.
A “punição exemplar” imposta pela juíza surpreendeu até os promotores, que esperavam uma pena de 20 a 40 anos. Em termos de comparação com essa pena de prisão perpétua, o americano Cornelis “Maikel” Slomp foi condenado, em Chicago, a 10 anos de prisão, por tráfico de drogas através do site Silk Road. E Steven Sadler, que também traficou através do site, foi condenado a cinco anos.
Uma comparação mais significativa foi a condenação do ex-ditador do Panamá, general Manuel Noriega (que morreu em 29 de maio de 2017). Os Estados Unidos invadiram o Panamá em 1989 para prendê-lo e trazê-lo para Miami para ser julgado por tráfico de drogas, assassinato, corrupção, lavagem de dinheiro e outros crimes.
Noriega foi condenado a 40 anos de prisão, pena que foi rebaixada para 30 anos, por solicitação de autoridades americanas, uma vez que, por vários anos, ele foi colaborador da CIA. Após 17 anos de prisão, ele ganhou liberdade condicional. Foi extraditado para a França, onde ficou preso por 7 anos e voltou para o Panamá.
O poder de condenar
O colegiado do tribunal de recursos também estranhou, de certa forma, a pena de duas prisões perpétuas, sem direito à liberdade condicional. Na decisão da corte, o juiz Gerald Lynch escreveu: “Sentenças de prisão perpétua, por crimes de tráfico de drogas, são extraordinárias e infrequentes, como devem ser”. Mas justificou a manutenção da sentença:
“Os juízes têm o poder de condenar um homem jovem a morrer na prisão e devem exercitar esse poder apenas em um pequeno número de casos, após pensar e refletir profundamente. Se nós fôssemos juízes de primeira instância, não iríamos impor tal pena. Mas, observando os fatos do caso, concluímos que essa sentença se situou dentro da faixa de decisões admissíveis, entre as que o fórum criminal poderia determinar”.
Os sites Ars Technica e Wired, que acompanharam toda a história do Dread Pirate Roberts, desde sua prisão em outubro de 2013 ao julgamento, que começou em janeiro de 2015, e à decisão do tribunal de recursos, questionam se a juíza se deixou influenciar pelas ameaças de morte feitas por grupos criminosos.
O site The Hidden Wiki divulgou dados pessoais da juíza, incluindo nome, endereço e número do Social Security (equivalente ao CPF do Brasil). Com isso, criminosos poderiam tanto atentar contra a vida da juíza em sua casa, como fabricar cartões de crédito e fazer compras com os dados dela, o que seria um enorme transtorno para ela. A juíza passou a se referir a Ulbricht como kingpin, acusação normalmente reservada para chefões do crime organizado.
O colegiado do tribunal de recursos concluiu, no entanto, que a juíza conduziu o julgamento corretamente, com paciência e habilidade. Mas ela não aceitou, por exemplo, os testemunhos de dois peritos convocados pela defesa, com o argumento de que eles foram apresentados no momento errado, e aceitou testemunhos emocionados de parentes de um rapaz que morreu de overdose, depois de comprar drogas pelo Silk Road.
O colegiado não gostou desse toque emocional do julgamento. O juiz Gerald Linch perguntou, em seu voto: “É normal criar uma enorme sobrecarga emocional [com o testemunho de parentes de vítimas do consumo de drogas] em todos os casos de tráfico? Esse testemunho colocou um dedo extraordinário na balança que não deveria estar lá”.
O colegiado também culpou o Congresso dos EUA pela pena de prisão perpétua imposta a Ulbricht: “Pessoas razoáveis podem discordar – e realmente discordam – de sentenças tão severas para a distribuição de substâncias controladas ou até mesmo da criminalização da venda e uso de muitas drogas. É possível que em algum ponto no futuro, iremos considerar essa política um erro trágico e iremos adotar métodos menos punitivos e mais eficazes para reduzir a incidência e os custos do uso de drogas”.
“No entanto, neste ponto de nossa história, os representantes do povo, democraticamente eleitos, optaram pela política da proibição [da venda e consumo de drogas], apoiada por punições severas”.
Tiro pela culatra
Para algumas organizações, apesar da boa intenção da juíza de criar uma força de dissuasão a pretensos operadores do mercado negro na internet, a punição exemplar foi um tiro que saiu pela culatra. A punição extremamente severa e a história de Ulbricht foi amplamente divulgada no país e despertou a atenção de traficantes e consumidores de drogas sobre as facilidades, que não conheciam, de operar pela “Dark Web”.
Em março de 2015, o roteirista e diretor Alex Winter lançou, no Festival do Filme South by Southwest, o filme Deep Web, baseado nas histórias do site Silk Road e de Ulbricht.
Novos candidatos a criminosos cibernéticos se entusiasmaram com as possibilidades que o mundo virtual lhes oferecia. Alguns novos sites foram criados à imagem e semelhança do Silk Road. Dois meses após a prisão de Ulbricht, antigos administradores do Silk Road criaram uma versão “mais segura” do site, o “Silk Road 2.0”.
O Silk Road (Estrada da Seda) foi batizado inspirado em uma rede de estradas da antiguidade (também chamadas de Silk Route ou Rota da Seda), que ligava a Europa à China, Índia e países da África e Eurásia. Embora os produtos de maior circulação na estrada fossem seda e cavalos, se vendia de tudo em toda sua extensão.
Moedas eletrônicas
O site também popularizou as bitcoins e criptomoedas – as moedas eletrônicas que permitem operar com certo anonimato pela web. Alertou o mundo que se pode comprar e vender de tudo nesse mercado negro virtual, sem os riscos da violência das ruas. E para garantir a “correção” das transações, há um sistema de depósito em garantia (escrow), criado por Ulbricht, em que o vendedor só recebe o dinheiro após a entrega da mercadoria.
O site enriqueceu Ulbricht em pouco tempo, em bitcoins. Só no laptop de Ulbricht foram encontrados 144.342 bitcoins (no valor de US$ 87 milhões). Antes disso, o FBI já havia apreendido 26 mil bitcoins (US$ 3,6 milhões) e, numa segunda leva, outros 144 mil bitcoins.
Profundeza da rede
A história também popularizou a existência da “Deep Web”, da “Dark Web” ou “darknet”. A “Deep Web” não é necessariamente uma coisa má. É apenas uma camada abaixo da superfície da Internet, que os mecanismos de busca, como Google e Bing, não conseguem indexar (em contraste com a rede superficial). Tem páginas dinâmicas, que só são geradas quando um conteúdo é requisitado.
Nas primeiras camadas, abaixo da superfície, podem operar bancos e outras instituições ou organizações que querem manter seus dados confidenciais – seria a camada 2. Na camada 3, mais profunda, podem se hospedar, por exemplo, bancos de dados e trabalhos acadêmicos. Na camada 4, já em nível de “Dark Web”, se hospedam sites que requerem softwares e configurações específicos, além de autorização de acesso, para operar.
De acordo com a CNN, esses sites operados na rede Tor servem ao mundo mais subterrâneo da Internet. São usados por dissidentes políticos, que terão problemas se descobertos, traficantes de drogas e de armas, vendedores de cartões de crédito roubados, documentos falsos e pornografia ilegal, por exemplo.
Segundo especialistas, a Deep Web é cerca de 500 vezes maior que a internet que as pessoas utilizam todos os dias. A avaliação do tamanho da Dark Web é mais difícil. Mas sabe-se que existem cerca de 2 mil serviços operados na rede Tor e cerca de 3 milhões de usuários. Mas é muito menor do que a Deep Web e provavelmente menor do que a internet pública.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 4 de junho de 2017.
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