“O que preserva do arbítrio é a observância das formas. As formas são as divindades tutelares das associações humanas; as formas são as únicas protetoras da inocência; as formas são as únicas relações do homem entre si. Fora delas, tudo é obscuro: tudo está entregue à consciência solitária, à opinião vacilante. Somente as formas estão em evidência, é somente às formas que o oprimido pode apelar”.[1]
Das 10 medidas propostas pelo Ministério Público Federal, ater-me-ei à sétima, que diz respeito aos “ajustes nas nulidades penais.” Dentre as justificativas das propostas, está a de se “estabelecer a necessidade de demonstração pelas partes do prejuízo gerado por um defeito processual, à luz de circunstâncias concretas”. De início, cabe trazer à baila a velha briga de Aury Lopes Jr. com a teoria geral do processo[2]. Creio que assiste razão ao doutrinador quando diz que as importações de conceitos civilísticos ao processo penal produz efeitos nefastos. No campo das nulidades, esses efeitos são sintomáticos.
No processo civil, o princípio da instrumentalidade das formas é de fácil assimilação: o legislador, quando estabelece a forma de determinado ato processual, busca atingir determinada finalidade. Esta, portanto, é que deve ser buscada. Se, atingida a finalidade, nada obstante utilizada outra forma que não aquela prevista na lei, não se declara a nulidade do ato, pois a forma é meramente instrumental, um meio para atingir aquela finalidade. Pas de nullite sans grief.
Pois bem. Seria possível aplicar esse raciocínio ao processo penal? A resposta é negativa, e por um motivo muito simples, que o citado doutrinador não cansa de proclamar: forma é garantia. A forma traçada pelo legislador processual penal é muito mais do que uma instrumentalidade para atingir um objetivo: é ela o limite aos abusos inevitáveis e inerentes ao poder de punir do Estado. Assim, quando o Código de Processo Penal estabelece, com minudências, todas as formalidades para a execução da prisão em flagrante, têm elas o objetivo de preservar o cidadão contra qualquer tipo de arbitrariedade que possa decorrer do ato. Qualquer desvio das autoridades do regramento traçado pela lei deverá redundar na ilegalidade do ato, pois forma dat esse rei. De que vale a Constituição proclamar inúmeras garantias contra o arbítrio, se se priva o cidadão do único meio (a alegação de nulidade) de denunciá-lo e corrigi-lo? Cabe aqui a advertência de Benjamin Constant:
“Todas as Constituições que foram dadas à França garantiam igualmente a liberdade individual e, sob o império dessas Constituições, a liberdade individual foi violada sem cessar. É que uma simples declaração não basta: são necessárias salvaguardas positivas; são necessários corpos suficientemente poderosos para empregar em benefício dos oprimidos os meios de defesa que a lei escrita consagra”.[3]
Mais preocupante ainda, nesse contexto das nulidades, é a nefasta invocação do “prejuízo”. Invocar a necessidade de demonstrar o prejuízo é atribuir ao juiz aquilo que cabe a lei dizer. Ouçamos Montesquieu:
“Quando o juiz presume, os julgamentos tornam-se arbitrários; quando a lei presume, dá ao juiz uma regra fixa”.[4]
Não há falar, portanto, em demonstração do prejuízo em sede processual penal. Este é presumido pela lei. Se não foi observado os exatos ditames da lei processual, a nulidade se impõe como medida inafastável. Dizer o contrário, atribuindo aos tribunais a tarefa de “perscrutar” o prejuízo, significa dizer que o processo penal não é uma questão de justiça e legalidade, mas sim de sorte. “Veríamos”, disse Beccaria, “desse modo, a sorte de um cidadão mudar de face ao transferir-se para outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria à mercê de um errôneo raciocínio ou da bile de um juiz”.[5]
É fundamental, portanto, fazer uma releitura dessa visão em torno das nulidades do processo penal. Elas constituem um freio eficaz para conter as arbitrariedades que são inerentes a toda e qualquer persecução estatal. Vale lembrar que as nulidades não são criadas pelos advogados, como se costuma injustamente acusar. São antes por eles apontadas. E é dever de ofício do advogado fazê-lo. O seu papel é assegurar um bom processo penal, pois como bem advertiu Carnelutti: “Um bom Direito Civil com um mau processo é uma coisa possível; mas se não é bom o processo penal, também o Direito Penal é ruim”.[6]
[1] CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Editora Martins Fontes, p. 156.
[2] Ver aqui: http://www.conjur.com.br/2014-jun-27/teoria-geral-processo-danosa-boa-saude-processo-penal.
[3] CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Editora Martins Fontes, p. 153.
[4] MONTESQUIEU. Do espírito das leis, Editora Martin Claret, p.757.
[5] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, Editora Martin Claret, p.21.
[6] CARNELUTTI, Francesco. O problema da pena, Editora Pillares, p. 104.
Nadir Mazloum é advogado do Lopes, Rezende & Mazloum Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 22 de janeiro de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário