Desde o início do ano, o quadro caótico no qual se encontra o sistema prisional brasileiro deixou de ser assunto restrito aos presídios superlotados e em situações bem abaixo da linha da civilidade e chegou às manchetes dos jornais e aos grupos de WhatsApp. Massacres no Amazonas e em Roraima ressuscitaram debates sobre encarceramento, Direito Penal e punitivismo. Nesta quinta-feira (12/1), uma carta assinada por 20 entidades atuantes na sociedade civil entra para o debate, recusando a ideia de que as chacinas sejam episódios esporádicos: são sintomas crônicos de um sistema em colapso.
As entidades criticam a “insistência no uso predominante da pena de prisão como principal resposta ao cometimento de um crime” e alertam que o Brasil aumentou seu nível de encarceramento em mais dez vezes desde 2000, o que é o caminho inverso ao restante do mundo.
“A Rede Justiça Criminal e as organizações parceiras abaixo subscritas conclamam as autoridades públicas a tratar a grave crise do sistema carcerário orientadas pelo respeito aos direitos humanos, de forma a enfrentar suas causas estruturantes e não se atendo à adoção de medidas de caráter paliativo ou imediatista”, escrevem.
As organizações defendem a revisão da política criminal vigente, “mediante a adoção de uma política pública consistente, que leva à redução da população carcerária — com especial atenção para a revisão da política de drogas, incentivo à política de alternativas penais e à implementação das audiências de custódia, como mecanismo fundamental de verificação da legalidade da prisão, do cumprimento das garantias processuais e da prática de abuso ou tortura – construída a partir da produção e análise consistente das estatísticas de justiça criminal, de forma transparente e regular”.
Leia a carta na íntegra:
Em menos de 25 anos, são inúmeras as crises que eclodiram dentro de unidades prisionais nos quatro cantos do Brasil: Carandiru em São Paulo (1992), Urso Branco em Rondônia (2002), Pedrinhas no Maranhão (2013), Cascavel no Parará (2014), Curado em Pernambuco (2015), e somente nas primeiras semanas de 2017, Complexo Anísio Jobim – COMPAJ - no Amazonas e Penitenciária Agrícola de Monte Cristo em Roraima, para citar apenas as mais noticiadas. Não é razoável tratar todos esses fenômenos como episódios desconectados ou como uma série de acidentes. O diagnóstico é muito mais sério, expondo as convulsões de um sistema colapsado.A insistência no uso predominante da pena de prisão como principal resposta ao cometimento de um crime denuncia a escolha por uma política criminal punitivista que conduz ao encarceramento em massa. Os dados mais recentes divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça indicam que, em dezembro de 2014, o Brasil mantinha encarceradas 622.202 pessoas, comprimidas em um sistema deficitário em 250.318 vagas[1]. Em termos gerais, o Brasil mantém 306 pessoas presas por 100.000 habitantes, o que representa mais do que o dobro da média mundial, ostentando 6ª maior taxa de encarceramento do planeta[2]. No entanto, 40% da população prisional, ou seja, 249.668 indivíduos, estão presos sem terem sequer recebido uma sentença condenatória[3] — quantidade de pessoas suficiente, por si só, para zerar o déficit de vagas.Essa realidade coloca o Brasil na quarta posição dos países que mais encarceram no mundo e revela uma franca tendência de agravamento do encarceramento em massa. Desde os anos 2000, a população prisional cresceu 167,32%, proporção mais de dez vezes superior ao crescimento experimentado pelo total da população do país. Tal direcionamento coloca o Brasil na contramão da trajetória de países como os Estados Unidos, que experimentaram políticas de endurecimento penal e estão voltando atrás, dado seu fracasso para a melhoria dos índices de violência e seu impacto no agravamento das desigualdades sociais.A Rede Justiça Criminal[4] e as organizações parceiras abaixo subscritas conclamam as autoridades públicas a tratar a grave crise do sistema carcerário orientadas pelo respeito aos direitos humanos, de forma a enfrentar suas causas estruturantes e não se atendo à adoção de medidas de caráter paliativo ou imediatista.Reiterando seu compromisso com a garantia do pleno acesso à justiça, da efetivação das respostas alternativas ao encarceramento e com o controle social da atuação do sistema de justiça e das instituições responsáveis pela execução das políticas públicas, em âmbito nacional e estadual, as organizações subscritoras denunciam a política brasileira de encarceramento em massa, que atinge de maneira desproporcional e sistemática jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda. É preciso reconhecer que o sistema de justiça criminal em vigor segue agravando vulnerabilidades, reforçando estigmas e reproduzindo desigualdades preexistentes. Em consequência, o sistema de justiça criminal termina por alimentar o ciclo de violência que assola a sociedade brasileira. A manutenção dessa tendência, à revelia de diagnósticos sérios e fidedignos da realidade, oferece tão somente terreno fértil para futuras e mais violentas rebeliões.As organizações subscritoras defendem a revisão da política criminal vigente, mediante a adoção de uma política pública consistente, que leva à redução da população carcerária — com especial atenção para a revisão da política de drogas, incentivo à política de alternativas penais e à implementação das audiências de custódia, como mecanismo fundamental de verificação da legalidade da prisão, do cumprimento das garantias processuais e da prática de abuso ou tortura — construída a partir da produção e análise consistente das estatísticas de justiça criminal, de forma transparente e regular".
[2] Considerou-se a metodologia proposta pelo INFOPEN, dezembro de 2014, que a fim de evitar distorções estatísticas, exclui do computo países com menos de 10 milhões de habitantes.[4] A Rede Justiça Criminal é composta de sete organizações da sociedade civil, quais sejam: Associação pela Reforma Prisional, Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defensores de Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direitos de Defesa, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Justiça Global, Instituto Sou da Paz.
A carta é assinada por:
Rede Justiça Criminal
Andi Comunicação e Direitos Associação
Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular
Associação pela Reforma Prisional
Blog negro Belchior - Carta Capital
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
Conectas Direitos Humanos
Conselho Federal de Serviço Social
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
Grupo de Pesquisa "Criminologia do Enfrentamento (UniCEUB/DF)
Instituto Alana
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Instituto de Defensores de Direitos Humanos
ISER - Instituto de Estudos da Religião
Instituto Sou da Paz
Instituto Terra Trabalho e Cidadania
Justiça Global
Lassos/UFBA Laboratório de estudos do crime e sociedade da UFBA
Uneafro - Brasil
Revista Consultor Jurídico, 13 de janeiro de 2017.
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