* Paulo Nalin e Hugo Sirena
Há muito se fala na tentativa de composição de uma legislação de Direito Privado uniforme entre os Estados. Estudam-se meios de harmonizar e coordenar os institutos privados entre as nações, de modo a permitir uma maior e melhor interação entre os povos, principalmente a partir da homogeneização da sistemática contratual. Prova disso foi a criação, ainda em 1926, do UNIDROIT (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado), um entidade intergovernamental independente, que, em 2001, já contava com mais de cinqüenta e cinco Estados Membros.
Esse esforço se mostrou bastante acentuado entre as nações européias. Todavia, encontrou óbice destacado em países como França, Alemanha e Inglaterra, especialmente pelas concepções particulares que cada sistemática jurídica tinha acerca do contrato.
Para os alemães, a lógica contratual é vista a partir do seu aspecto econômico, como um acordo de circulação de riquezas, cujo foco está, fundamentalmente, no adimplemento, e a sua base, na boa-fé. Na França, por sua vez, o contrato deixa de ser dotado de um caráter cooperativo, imperando entre os contratantes a noção de desconfiança, exatamente por ser um povo pouco habituado ao comércio. O foco da relação contratual, para os franceses, está na responsabilidade, e seus acordos são fundamentalmente baseados na moral.
Na Inglaterra, o contrato só existe na medida em que há barganha, troca, “consideration”. Tanto é que, pela sistemática jurídica inglesa, institutos como doação e comodato não são concebidos como negócios de natureza contratual. Para os ingleses, portanto, o foco está na troca.
Ora, a diversidade cultural, intimamente ligada à formação jurídica de uma nação, mostrou-se, então, um decisivo obstáculo à consolidação de uma sistemática contratual uniforme entre os povos. E foi a partir dessa realidade que, em 1980, sob o patrocínio da UNCITRAL (United Nations Commission of International Trade Law), foi redigida a Convenção de Viena sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG – na sigla em inglês, Convention of International Sale of Goods).
O grande objetivo da criação dessa convenção internacional, fruto de um profundo estudo idealizado ao longo de grande parte da primeira parte do século XX, é de, em última análise, fomentar as transações comerciais entre os países, superando os entraves existentes, sobretudo, em razão da diversidade de formas e sistemáticas afetas aos contratos em cada parte do mundo. Portanto, a sua principal tarefa, segundo a Prof. Vera de Fradera, se mostrou a de superar “os até então inevitáveis obstáculos ao comércio no espaço internacional, porquanto leva em consideração as diversidades jurídicas e econômicas existentes entre os distintos países, afastando-as, ao criar um modelo original de contrato de venda internacional.”
A globalização, como fenômeno mundial de aproximação das nações, principalmente a partir das trocas de informações e das relações comerciais, parece unificar cada vez mais o contexto cultural dos Estados, convergendo-os a uma homogeneização de práticas sociais. Esse acontecimento vem gerando efeitos, também, na esfera das relações contratuais internacionais. Todavia, não fosse a intercessão da CISG, tal contexto estaria, fatalmente, jogado ao fracasso.
Uma das grandes vantagens da Convenção de 1980 foi a de regular, de forma idêntica, a sistemática de compra e venda internacional em dezenas de países com realidades sócio-econômico-jurídicas extremamente discrepantes, como é o caso da China, da França, da Alemanha e do próprio Brasil. E o fundamento básico de tal homogeneização está em dois artigos da CISG: o artigo 30 e o artigo 53.
No primeiro desses artigos, a Convenção de Viena sobre venda internacional de mercadorias define que “o vendedor se obriga, nas condições previstas no contrato e pela presente Convenção, a entregar as mercadorias, a transferir a propriedade e, se for o caso, a enviar os documentos concernentes.” Já no artigo 53, determina a CISG que “o comprador se obriga, nas condições previstas no contrato e pela presente Convenção, a pagar o preço e a providenciar a entrega das mercadorias.”
Sob a análise do Deputado João Maia, do Partido da República, responsável pela relatoria do Projeto de Decreto Legislativo n. 222/2011, a principal função da CISG parece ser, efetivamente, a de contribuir para “a segurança jurídica e a estabilidade das relações comerciais entre as empresas estabelecidas em diferentes países, por padronizar regras aplicáveis aos contratos internacionais”. Nesse sentido, a mensagem n. 636/2010, que defende a aprovação do projeto legislativo que recepciona a Convenção de Viena defende a particularidade de que, uma vez incorporada à sistemática jurídica nacional, a proposta “em muito contribuirá para a redução de encargos hoje enfrentados por empresas brasileiras em seus negócios com o exterior”.
A CISG, quando aprovada pelo legislativo nacional, o que deve acontecer ainda esse ano, dado o adiantado das discussões travadas no Congresso Nacional, significará um importante mecanismo facilitador das relações contratuais internacionais de compra e venda de mercadorias em nosso país. Analisando sob a ótica do direito obrigacional brasileiro, a sistemática da Convenção de Viena de 1980 parece guardar ampla compatibilidade com o nosso ordenamento.
Nesse particular, portanto, a Convenção se mostrará, para o Brasil, um grande avanço, na medida em que proporcionará um avanço na superação das barreiras sócio-culturais entre os contratantes internacionais, principalmente levando em conta o dinamismo e a praticidade de que está dotada a CISG. A construção da CISG é baseada em princípios e cláusulas abertas, que permitem uma maior flexibilização e adaptação aos casos concretos que surgem para serem analisados.
Efetivamente, o efervescente complexo de relações contratuais no âmbito internacional é uma questão que não pode ser desconsiderada atualmente, ainda mais tendo em conta a efetiva participação do Brasil nesse contexto. Sendo assim, a compreensão da sistemática dos contratos a partir do cotejo entre o regramento nacional e a Convenção de Viena de 1980 se mostra de importância salutar diante do emblemático papel de protagonismo assumido pelas trocas internacionais de mercadorias no contexto mercadológico hodierno.
* Os autores são advogados da Popp&Nalin Sociedade de Advogados. www.poppnalin.adv.br
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