Para boa parte dos fãs de cinema, "Doze homens e uma sentença" talvez seja o filme definitivo sobre o papel de jurados em cortes criminais e, em particular, sobre o modelo norte-americano de Tribunal de Júri. O clássico hollywoodiano de 1957, dirigido por Sidney Lumet e protagonizado pelo ator Henry Fonda, é a referência óbvia quando se pensa em júri popular, sobretudo, ao se considerar a posição fundamental que o veredito proferido por civis, cidadãos leigos, ocupa no sistema de Justiça dos Estados Unidos.
A história sobre a complexa interação entre doze jurados que têm nas mãos o destino de um jovem porto-riquenho suspeito de assassinar o próprio pai consagrou a imagem de homens e mulheres que se veem investidos do árduo poder de absolver ou condenar. Vencedor do Oscar de melhor filme naquele ano, "Doze homens e uma sentença" (12 Angry Men, literalmente 12 homens furiosos no título original) está repleto de embates retóricos, nuances psicológicas e maneirismos sociais que envolvem a composição de um corpo de jurados em um tribunal.
Henry Fonda, no papel de Davis, o jurado de número 8, representa a única personagem convencida da inocência do réu enquanto seus colegas estão decididos por escolher pela condenação. Dos discursos vazios, passando pelo preconceito e sentimentos como irritação, altruísmo e indiferença, o filme esboça um amplo painel de elementos que implicam nas deliberações de jurados em tribunais. Entre as personagens, um especulador da bolsa valores, um professor de escola, um imigrante humilde, todos figuras da sociedade colocados na desafiadora posição de julgar um cidadão como eles.
Ficção à parte, a essência do modelo de Tribunal de Júri dos EUA remonta à vocação democrática presente desde as origens da organização social e institucional do país. A ideia é que as audiências judiciais disponham de um grupo heterogêneo de indivíduos, representantes dos mais diversos extratos sociais e contextos de vida, que se reúnem com o propósito de avaliar e optar por uma decisão que definirá um veredito. De fato, em nenhum outro país, o júri popular é exercido da forma como acontece nos EUA.
O jornalista norte-americano especializado em cobertura jurídica, Fred Graham, escreveu em Anatomia de um Tribunal de Júri, edição especial da revista eletrônica mensal e-Journal USA, de julho de 2009, que “os jurados assumem o impressionante poder do Estado de punir ou não punir os cidadãos. Nesse sentido, eles estão acima do soberano — e isso tornou-os objeto de fascínio em todo o mundo”.
O jornalista narra ainda a impressionante história da montagem teatral de Doze homens e uma sentença realizada por detentos do presídio Roumieh, no Líbano, em 2009, ilustrando assim o apelo que a ideia de júri exerce em todos nós, mesmo em países com tradições jurídicas muito diversas. A imagem exportada para o mundo, pelos EUA, do que, de fato, constitui um Tribunal de Júri é responsável pela abrangência que esta “instituição jurídica” conquistou junto aos cidadãos leigos. Estima-se que 90% dos julgamentos por Tribunal de Júri ocorrem somente nos Estados Unidos, e que 29% dos norte-americanos adultos já serviu como jurados.
Herança
Herdado do sistema de Justiça da Inglaterra medieval e adotado pelos colonos americanos do século XVIII, o modelo de Tribunal de Júri dos EUA, ao contrário de muitos países que o adotaram mas o extinguiram gradualmente, sobreviveu aos nossos dias. Quando os Estados Unidos resolveram separar-se da Coroa Britânica, especificaram, ainda nos primeiros anos da jovem república, na sua lendária Declaração de Direitos (incorporada à Constituição Federal em 1791) que “em todos os processos criminais, os acusados terão direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial”. O documento deu margem também à possibilidade de se estender o direito de dispor de Tribunais de Júri inclusive em processos cíveis.
A Suprema Corte, desde então, tem favorecido interpretações que adequam o Tribunal de Júri às mais diversas situações jurídicas. De tal modo, determinados aspectos foram flexibilizados, como o entendimento de que o direito de dispor de julgamento por júri popular não abrange casos triviais, que a composição por doze indivíduos não é necessariamente rígida (sendo suficiente apenas seis participantes) e que nem todas as decisões precisam se dar por unanimidade.
Hoje em dia, em processos cíveis, que geralmente decidem sobre litígios entre particulares, a ampla maioria dos cidadãos abre mão do direito de dispor de julgamento por Tribunal de Júri.
De acordo com a “Pesquisa para a Melhoria dos Júris” promovida pelo Centro Nacional de Tribunais Estaduais dos EUA em abril de 2007, o número estimado de julgamentos por Tribunais de Júri no país é de 154 mil ocorrências por ano (149 mil em cortes estaduais e 5 mil em tribunais federais). Destes, 66% são referentes a processos criminais (a maioria de delitos graves e a minoria de delitos leves) e 31% correspondem a processos cíveis.
Requisitos para participação e atribuições
Na maioria dos tribunais estaduais e federais do país, estão qualificados para prestar serviços de júri cidadãos norte-americanos residentes na jurisdição atendida pelo tribunal, que tenham pelo menos 18 anos de idade, compreendam e falem a língua inglesa, que disponham ainda de competência mental e física e não estejam sob impedimento legal, isto é, sem pendências de nenhuma natureza com a Justiça.
Apesar do Tribunal de Júri, da forma como é adotado, constituir uma peculiaridade do sistema jurídico dos EUA e da alta incidência da prática, se comparada com outros países, ainda assim, a maioria dos processos judiciais nos Estados Unidos são decididos sem ir a julgamento por corpo de jurados.
Ainda que para grande parte da opinião pública do país a sólida tradição de Tribunal Júri expresse os mais nobres valores cívicos e democráticos dos EUA, o tema está longe de ser unanimidade. São muitos os questionamentos sobre se a participação de cidadãos comuns na função de “agentes julgadores” é mais efetiva do que a de um juiz profissional, conhecedor de aspectos mais amplos e sofisticados que envolvem a Justiça, o direito dos réus e o sutil equilíbrio entre a manutenção da ordem pública e as garantias individuais. O comportamento, muitas vezes imprevisível, de jurados e incidentes com júris em julgamentos importantes e de forte apelo midiático têm provocado muitas discussões nesse sentido.
Existem inúmeros estudos que tentam avaliar a competência do júri. Os que o defendem, afirmam que a diversidade de experiências trazidas à corte apenas soma à competência técnica do juiz, que deve se limitar a orientar os jurados sobre as leis e coibir abusos. Há uma série de artigos de analistas da Justiça dos EUA, defendendo o ponto de vista de que a presença de diferentes classes profissionais no júri, como médicos ou então mecânicos de automóveis, por exemplo, é decisiva, em muitos casos, para se chegar a resoluções “mais justas e precisas”.
Os críticos, por sua vez, apontam problemas que envolvem o fato de Tribunais de Júri serem mais complexos, caros e demorados do que julgamentos cuja sentença é proferida por um juiz. E, claro, da sua parte, também apresentam estudos que questionam a decisão de vereditos por leigos, citando casos em que o senso comum e o desconhecimento de aspectos legais e técnicos comprometeram a integridade e o mérito das decisões.
O professor de psicologia forense da Faculdade de Direito da Universidade Maastricht, na Holanda, Peter J. Van Kopen, em artigo sobre assunto, compilado por Anatomia de um Tribunal de Júri, é rigoroso em suas críticas: “O julgamento por Tribunal do Júri também consome muito tempo e muito trabalho. Na verdade, um sistema de Tribunal de Júri é tão caro que só pode ser mantido se a grande maioria dos processos for tratada de forma diferente. Nos Estados Unidos, isso ocorre pela transação penal, acordo feito entre a acusação e a defesa com verificação secundária de um juiz. Na prática, esse é um sistema que, na maioria das vezes, termina sem que ninguém tenha analisado as provas, sem exame público e com um poder desproporcional da acusação”.
Ricardo M. Urbina, juiz federal de primeira instância do Distrito de Columbia, Washington, é um entusiasta dos Tribunais de Júri nos EUA e uma das vozes dissonantes de críticos como Van Kopen. “Em processos criminais, por exemplo, os jurados aderem ao princípio de que o acusado é considerado inocente até que se prove sua culpa além de qualquer dúvida razoável. Além disso, como exige a lei, a Constituição dos EUA e as instruções do juiz, o ônus da prova de culpabilidade é exclusivamente do promotor. Eles entendem que o réu nunca tem de provar sua inocência”, afirmou o juiz, em contraponto ao artigo, de Van Kopen.
Urbina é um dos maiores defensores da ideia de que jurados dispõem de competências mais amplas do que o mero senso comum ou que sejam reféns de preconceitos que possam afetar sua capacidade de decisão. O juiz menciona episódios em que, mesmo certos de que o réu era culpado, ainda assim, os jurados foram capazes de votar pela absolvição, frente à ausência de evidências e à dificuldade da promotoria em esclarecer os fatos “além de qualquer dúvida razoável”.
Voir Dire
De qualquer forma, são 32 milhões de convocações anuais para que cidadãos prestem o serviço de jurado nos Estados Unidos. Destas, 4 milhões não encontram o destinatário; 3 milhões são desqualificados por questões legais; 2 milhões correspondem a cidadãos isentos do serviço; 3 milhões são de pessoas dispensadas por dificuldades financeiras ou questões médicas; 8 milhões se referem a cidadãos liberados por razões de cancelamento ou adiamento de audiências e 3 milhões são de ausentes, que não aparecem mesmo tendo assinado a convocação.
Somente 8 milhões é o número estimado daqueles que, de fato, chegam aos tribunais e se apresentam para desempenhar a função de jurado. Porém, finalmente, apenas 1,5 milhão são de cidadãos arrolados para integrar o júri em audiências judiciais. Os dados são do Centro Nacional dos Tribunais Estaduais.
Cabe ao juiz supervisionar a escolha dos jurados. Em alguns estados, o próprio magistrado faz as perguntas a fim de selecioná-los. Em outros, os advogados que representam as partes fazem uma sabatina com os candidatos e podem excluí-los de participar da audiência levando em consideração os mais amplos critérios de adequação. O processo de seleção prévia de cidadãos convocados é conhecido como voir dire. É a expressão de origem anglo-normanda para o que, em latim, é conhecido como verum dicere, isto é, “dizer o que é verdadeiro”, em outras palavras, “o que implica em verdade” ou “reúne verdade em sua essência”.
Ao contrário do que ocorre em países como o Brasil, em que os jurados estão impedidos de conversar entre si e o que vale é o veredito da maioria por votação, nos EUA, a deliberação dos jurados, em uma sala privada no tribunal, constitui parte fundamental do processo de julgamento em um Tribunal de Júri. A exemplo do que é servir como mesário ou presidente de mesa em uma eleição no Brasil, não é raro encontrar um americano com uma boa história de participação em júris. Ou são casos de convivência intensa e extenuante de quatro dias fechado em uma sala discutindo o processo, ou então reclamações sobre longos períodos de espera e procedimentos intermináveis antes de se ouvir as partes envolvidas. A duração média dos julgamentos por Tribunal de Júri é de cinco dias em casos de processos penais e de quatro para processos cíveis. Os jurados dispõem geralmente de quatro dias para deliberar tanto em julgamentos cíveis ou criminais e recebem pagamento para desempenhar a função. A remuneração média de um jurado nos Estados Unidos é de US$ 22 por dia. Há casos em que o indivíduo recebe apenas US$ 5 para integrar o corpo de jurados.
Em muitas circunstâncias, o júri é constituído apenas para avaliar se há, de fato, um caso que justifique o julgamento judicial. É o chamado “grande júri” e, nesse caso, o número de jurados varia entre 16 e 23 cidadãos. Geralmente o grande júri ocorre mais em processos da Justiça Criminal e em âmbito federal, sendo adotado por uma minoria das cortes estaduais. Caso a proposta de indiciamento for acatada, ela é chamada de “queixa ou denúncia real” (true bill) e se for rejeitada, de “queixa ou denúncia inexistente” (no bill).
Em geral, há flexibilidade em relação a como se deve eleger o presidente do júri e a forma como os jurados deliberam. Não há regras gerais que orientem tanto a escolha do líder ou como devem proceder com as discussões sobre o caso, embora o tempo de deliberação seja determinado previamente pelo juiz. Em geral, a escolha do presidente do júri é feita ainda no início, mas a votação pode ser deixada para mais tarde conforme o grupo interage. Ao juiz cabe, não só supervisionar e chefiar a sessão, mas orientar os jurados quanto à lei. Em muitos casos, depois da decisão do júri e da recomendação da pena a ser cumprida, cabe ao juiz confirmar ou estipular a pena em uma audiência à parte.
O magistrado também dispõe da garantia de reverter a decisão do júri dependendo do caráter e número de evidências que sustentem a decisão dos jurados, ou seja, se ocorreu, de fato, o ônus da prova ou se ainda há espaço para dúvidas.
Os estados: laboratórios do júri
As jurisdições estaduais têm regras diferentes sobre os requisitos para se participar de um júri (como idade, área de residência, tempo decorrido desde a última condenação judicial, entre outros) e sobre os procedimentos para a decisão (se a unanimidade é imprescindível ou se não é necessária).
No caso da exigência de unanimidade na decisão do júri, esta foi estabelecida em 1897 pela Suprema Corte, mas rejeitada em dois julgamentos criminais em 1972. Em esfera estadual, é mais comum ocorrerem casos em que se prescinde da unanimidade. Porém, apenas dois Estados, Lousiana e Oregon, têm uma legislação clara em relação a ausência de concordância entre os jurados. Geralmente, quando o júri não consegue chegar a uma decisão, declara-se que o veredito está suspenso e o impasse deve ser resolvido em uma nova audiência.
As variações entre as jurisdições estaduais são numerosas, porém raramente envolvem mudanças estruturais. A variedade é fruto de, nos EUA, os tribunais estaduais serem em maior quantidade em relação aos tribunais federais. Como a autonomia dos estados em relação ao poder central é um dos pilares da organização política do país (estando o poder federal limitado a garantir a proteção de princípios constitucionais e a integridade e inviolabilidade da união federativa), isso se expressa também no sistema de Justiça, sobretudo na quantidade de cortes estaduais.
Tendo em vista que, nos Estados Unidos, o Direito foi desenvolvido a partir da herança do sistema jurídico da Inglaterra, o chamado Common Law, orientado mais pela jurisprudência e experiência em tribunais, do que no Direito Positivo, como no caso do Brasil, a grande maioria das regulamentações e leis vem da esfera estadual. Cabe aos Tribunais de Júri federais, portanto, os julgamentos de casos que violam leis federais e de abrangência nacional apenas. E estes são sensivelmente menos frequentes que as incontáveis audiências estaduais. Isso faz dos Tribunais de Júri dos estados os verdadeiros laboratórios onde a experiência tem moldado as regras dessa histórica e peculiar tradição jurídica norte-americana.
[ilustrações: Honoré Daumier - daumier-register.org]
Revista
Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2010.