O exame criminológico enfrenta um conjunto de críticas realmente sérias, que mostram o caráter precário de sua viabilização, principalmente no que tange à instrução de pedidos dos benefícios legais. Tais críticas referem-se particularmente ao prognóstico e, por serem bem embasadas, têm um substrato técnico, e não ideológico. Em artigo recentemente publicado neste Boletim, tive oportunidade de discuti-las.(1)
Existem outras críticas, porém, que carecem de melhor base teórica e técnica, têm um cunho predominantemente ideológico e se tornam chavões, os quais, por conta de sua repetição, convertem-se em “verdades” e pouco contribuem para o aprimoramento da prática na execução penal. O presente texto, numa abordagem um tanto quanto diferente do artigo anterior, tem por objetivo deter-se na definição e na discussão técnicas de aspectos essenciais à natureza do exame criminológico. Tal abordagem permite encontrar subsídios para se enfrentarem as referidas críticas ideologizadas, bem como para se fundamentarem propostas que visem melhorias nas práticas em execução penal.
O exame criminológico, quando destinado à instrução de pedidos de benefícios, consiste na realização de um diagnóstico e de um prognóstico criminológicos, seguidos de uma conclusão sobre a conveniência ou não de concessão do benefício, tudo dentro de uma abordagem interdisciplinar. A interdisciplinaridade diz respeito à interlocução entre os estudos e exames jurídico, psiquiátrico, psicológico e social. Se não se pode dizer que interdisciplinaridade é quesito essencial da natureza do exame, mister é afirmar que a visão unidimensional de uma questão por demais complexa, como é a dinâmica do ato criminoso, por certo vai comprometer profundamente a qualidade da análise feita.
Imprescindível é reconhecer que o núcleo da natureza do exame está no diagnóstico criminológico. Não existindo prognóstico de reincidência, nem por isso deixa de haver o diagnóstico, ou seja, deixa de se realizar o núcleo do exame criminológico, tal como acontece, aliás, no exame criminológico de entrada, previsto na legislação, tanto no Código Penal (art. 34), como na Lei de Execução Penal (art. 8º).
Pelo diagnóstico, que é uma perícia acerca da dinâmica do ato criminoso,(2) a natureza do exame criminológico não pressupõe necessariamente nenhuma concepção ontológica de crime. Consequentemente, não pressupõe necessariamente nenhuma relação intrínseca entre condições pessoais e o crime, na linha da concepção causalista, positivista, mas unicamente uma associação entre certas condições pessoais do agente e sua conduta que o Direito Penal tipifica como crime. O reconhecimento de tal associação independe da conduta ser definida como crime ou não. Assim, fazer um diagnóstico criminológico de um preso que se envolveu em crimes de assalto, por exemplo, é buscar analisar, em todo seu contexto pessoal (familiar, social, psicológico, psíquico, orgânico), as condições e fatores que ajudam a compreender esse seu envolvimento. E, ao se descrever todo um complexo contexto que se entende estar associado ao seu envolvimento com assaltos, pretende-se unicamente identificar um conjunto de fatores interligados que teriam instrumentalizado o examinando (no caso, por exemplo, de características psicológicas, inclusive positivas), ou teriam criado condições facilitadoras (no caso, por exemplo, dos fatores familiares), ou, então, condições de coresponsabilização (no caso, por exemplo, de fatores sociais) para que o examinando se envolvesse com condutas socialmente problemáticas, as quais o Direito Penal define como crime.
Ao recorrer à interdisciplinaridade, o exame criminológico se vale da experiência clínica em entrevista psiquiátrica e dos critérios científicos da Psiquiatria para a compreensão de um quadro psíquico. Vale-se, também, da tradição clínica da Psicologia, nas entrevistas de diagnóstico, além das tradicionais e já cientificamente embasadas técnicas de exame de personalidade e de inteligência. Vale-se, também, de toda a experiência historicamente colhida e validada dos profissionais de Serviço Social, na análise e compreensão do indivíduo em seu histórico familiar e social. A esses exames, soma-se o estudo jurídico do caso, com o devido detalhamento do histórico do examinando em suas práticas tidas como criminosas, suas penas, sua vida prisional etc., tudo isso servindo como “matéria prima” a ser levada em conta no exame. Na interlocução de todos esses estudos e dados, a equipe discute-os e busca compreender (não explicar) como a assim chamada conduta criminosa (ou seja, conduta socialmente problemática) se insere em todo o complexo contexto pessoal do examinando. É bom repetir, frisar e deixar bem claro: nesse diagnóstico criminológico, ou, nessa compreensão da conduta criminosa, na qual se recorre à experiência e ao embasamento das disciplinas envolvidas interdisciplinarmente, não há necessariamente nenhum pressuposto teórico de que o crime tem uma realidade ontológica e de que existe alguma relação causalista ou mecanicista entre os dados analisados, e compreensivamente interligados, e a conduta do examinando. Repetindo: o diagnóstico criminológico nada mais é que uma análise interdisciplinar complexa e contextualizada de determinada conduta de um indivíduo, que o Direito Penal define como crime, na busca de compreendê-la e de situá-la dentro de todo o complexo contexto desse indivíduo.
Outro aspecto importantíssimo, que se deve deixar bem claro, atinente ao diagnóstico criminológico, é a diferença essencial entre esse diagnóstico e o diagnóstico de periculosidade, feito no exame de sanidade mental, para fins de aferição do grau de imputabilidade. Embora essa diferença seja óbvia, tecnicamente, não é incomum fazerem-se confusões entre ambas as peças periciais.
O prognóstico criminológico é a parte que se segue ao diagnóstico e dele se deduz, na qual os técnicos expõem sua pressuposição sobre os possíveis desdobramentos futuros da conduta do examinando. Induvidosamente, é a parte mais frágil e pouco defensável do exame. No exame feito para fins de instrução de pedidos de benefícios, o prognóstico diz respeito especificamente à probabilidade de reincidência. No de entrada, porém, que tem como objetivo principal oferecer subsídios para a individualização da pena, não há se falar necessariamente em prognóstico, o qual, se fosse feito, referir-se-ia à probabilidade do interno se adaptar a este ou àquele regime.
O prognóstico de reincidência, em si, é hoje praticamente insustentável. Não por motivos ideológicos e panfletistas, do tipo: ninguém tem o direito ou o condão de pôr-se a adivinhar o comportamento futuro de alguém; todos nós podemos cometer crimes amanhã ou depois; é uma violação aos direitos do preso pretender prever sua conduta futura etc. etc. O prognóstico, em si, é parte que naturalmente se segue a um diagnóstico, seja na Medicina em geral, seja na Psiquiatria, seja na Psicologia, seja, por certo, no próprio Serviço Social, em seus estudos de caso. A Psicologia o aplica em seus mais diferentes ramos do saber: clínica, escolar, aprendizagem, organizacional, saúde pública. O problema oferecido pelo prognóstico criminológico, como parte integrante do exame criminológico, é que, pela expectativa e pela exigência do judiciário e da própria lei (quando previsto em lei), ele deve se fazer em termos bastante específicos e oferecer uma boa dose de certeza sobre a probabilidade do comportamento criminoso se repetir ou não no futuro. Se o contexto do passado é conhecido (para a formulação do diagnóstico), o contexto do futuro não é conhecido (para os fins do prognóstico). Assim, de um lado, se essa dose de certeza sobre a probabilidade de ocorrência de um comportamento específico no futuro é enganosa – esse é o primeiro grande problema, já sobejamente comentado na literatura –, por outro lado – e este é o outro problema – trata-se de uma manifestação técnica que, oferecendo um respaldo enganosamente seguro ao judiciário, vai motivar e fundamentar decisões que são vitais para o examinando e toda sua família.
Ainda sobre prognóstico, se não se deve confundir diagnóstico criminológico com diagnóstico de periculosidade, também não se deve confundir prognóstico criminológico com parecer de cessação de periculosidade.
Se o prognóstico é a “parte frágil” do exame criminológico, qual seria a saída? A saída é incrementar o exame criminológico de entrada, aliás, o único que continua previsto na legislação penal, por enquanto. Para esse exame, não há necessidade do prognóstico criminológico, nos termos acima caracterizados. Trata-se de exame que deve ser feito única e exclusivamente em benefício do preso. Sua finalidade é oferecer subsídios para a individualização da execução da pena. Ele pode se restringir tão somente ao diagnóstico, ao qual a equipe técnica por certo acrescentará suas sugestões de programação de execução, a serem encaminhadas à Comissão Técnica de Classificação (C.T.C.), órgão tecnicamente encarregado do planejamento da individualização (vide art. 6º da LEP). Entre essas sugestões, quem sabe venhamos a ter, num futuro próximo, a de encaminhamento para o cumprimento de penas alternativas!
Quanto à instrução dos pedidos de benefícios, caso se volte a exigir a avaliação técnica, conforme já tive oportunidade de discutir no artigo anterior, já citado, deve-se implementar os pareceres das C.T.Cs. Se estas comissões exercerem de fato suas funções previstas em Lei, estarão instrumentalizadas para fazerem uma avaliação técnica interdisciplinar (incluindo os diversos profissionais penitenciários) da conduta do preso.
Notas
(1) SÁ, Alvino A. A volta do exame criminológico. Boletim IBCCRIM, ano 17, nº 205, dezembro de 2009, p. 4-5.
(2) MARANHÃO, O. Ramos. Psicologia do Crime. 2. ed. modificada. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.
Alvino Augusto de Sá
Professor de Criminologia (Clínica) da Faculdade de Direito da USP.
Fonte: Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010
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