(In)felizmente, retomar-se-á aqui a problemática e exaustiva questão da política criminal de “combate” aos atos de “pedofilia”. Desta vez, trata-se da análise de mais uma das questionáveis propostas de contenção, a qualquer custo, da vitimização sexual potencial de crianças e adolescentes. Contudo, impedir a prática de “pedofilia” não é o único ou principal objetivo, pois o escopo primordial da proposta em epígrafe encerra-se naneutralização da própria figura do egresso de delito sexual praticado contra crianças.
A medida se expressa no Projeto de Lei nº 338
(1) de 2009, idealizado pela senadora Marisa Serrano (PSDB-MS), que desencadeou, após a propositura do Anteprojeto no Senado, a discussão sobre a legitimação do direito de acesso público a informações sobre condenados por crimes contra a
dignidade sexual(2) infanto-juvenil.
A finalidade é criar no Título VII da Lei nº 8.069/1990, o Capítulo III (Do acesso público a informações sobre condenados por crimes contra a liberdade sexual de criança e adolescente), e nele inserir um dispositivo que regulamente o acesso irrestrito de qualquer pessoa a um banco nacional de dados sobre condenados por crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes. Tal cadastro deverá ser frequentemente atualizado, e nele devem constar informações como: nome completo; data de nascimento; endereço residencial; endereço do local onde trabalha ou estuda, quando for o caso; crime praticado; e fotografia em cores do condenado.
O Projeto pretende implantar no Brasil um mecanismo securitário já adotado nos Estados Unidos (Lei Federal nº 109-248). Segundo justificativa da propositora, a ideia servirá de instrumento eficaz para que os pais possam fiscalizar e diligenciar se, nas proximidades de suas casas ou das escolas nas quais estudam seus filhos, há qualquer foco de “perigo” em virtude de, naquelas imediações, residir ou trabalhar indivíduos que já cumpriram pena por crimes contra a intangibilidade sexual de crianças e/ou adolescentes.
A pouco criteriosa proposta enquadra-se naquele conjunto de medidas que se convencionou chamar emergencialismo penal. Esta tendência político-criminal origina-se da busca pela sensação de segurança social reclamada pelo cidadão na permanente catarse do medo de se tornar a próxima vítima.
Sobre esse aspecto, esclarece
Guilherme Costa Câmara que a
vítima virtual convoca, portanto, uma conjugação do futuro, logo comparece modulada por notas de incerteza acerca do que está por vir, que gradativamente progridem em direção a crescentes sentimentos de insegurança e de medo (fantasias vitimais), medo de uma vitimização futura (medo do crime), e, como movimento reflexo, exigências de elaboração de políticas de segurança.
(3)Neste caso, o alarde e a propagação da ideia de risco iminente robustecem-se ante os frequentes eventos midiáticos, nos quais os holofotes permanecem ligados e direcionados, por considerável período, para a “cena” de determinado acontecimento de grande clamor social.
A periculosidade, mais uma vez, constitui-se no elemento que sustenta a proposta, pois se vislumbra no condenado, mesmo após o cumprimento integral da pena, um perigo latente, no qual um atavismo incerto seria capaz de levá-lo a reiterar a conduta anteriormente praticada.
Exsurge, assim, uma eterna
presunção social de culpabilidade,
(4) que auxilia no delineamento da divisão cada vez mais saliente da dicotomia Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, priorizando-se, então, um Direito Penal de autor em detrimento de um Direito Penal do fato.
Pragmaticamente, o Projeto de Lei pretende autenticar uma gestão compartilhada de controle do inimigo. Nesse contexto, o Estado outorga ao cidadão a faculdade – poder/dever – de investir-se no exercício das funções da persecução antecipada do incerto e inexistente delito.
A adoção da proposição em comento demonstra a assunção, por parte do Estado, de alguns fracassos do ponto de vista político-criminal, sobretudo no tocante aos fins da pena. A partir do instante em que se admite a necessidade de monitoramento permanente de um egresso, com base na conduta delitiva praticada e, diga-se de passagem, já punida, assume-se incontestavelmente a posição de que a pena de prisão – ao menos da forma como é executada – não serve aos fins de ressocialização, cuja insistência em sua débil manutenção dá lugar ao fenômeno batizado por
Michel Foucault como
isoformismo reformista.
(5)
Dessa maneira, chama a atenção
Sérgio Salomão Shecaira ao afirmar que
não há como negar a crise da pena privativa de liberdade, nem como fechar os olhos à sua ineficácia na ressocialização do recluso.
(6)De outro lado, parece não importar muito a repercussão individual e a coletiva que a implementação da proposta acarretaria ao egresso – que estaria relegado ao alijamento social – e às demais formas de convivência comunitária.
Adverte, então,
José Luis Díez Ripollés que
não é segredo para ninguém os custos elevados inerentes a uma política criminal de isolamento e segregação sociais de uma boa parte dos delinquentes, não só em termos de recursos materiais e humanos para a sua manutenção, mas também noutros setores sociais como o emprego, a formação profissional e a saúde, sem que faltem exemplos muito significativos para o demonstrar.
(7)
A implantação do banco de dados relembra instrumentos hitleristas de antissemitismo, nos quais a marca da estrela de Davi gravada na fachada das casas, nas roupas e nos pertences de judeus contribuíam para a identificação dos inimigos do Estado Nazista.
A proposta expressa um nítido direito de exceção ao contrariar o que estabelece o art. 202 da Lei nº 7.210/1984, quando dispõe que, cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação (...).
O dispositivo tem justamente por finalidade, como observa
Guilherme de Souza Nucci, preservar o processo de reintegração do egresso a sociedade,
(8)objetivo este ignorado pela medida do PLS nº 338/2009, que, diante disso, estabelece despreocupadamente regras de exceção, conduzindo uma categoria de indivíduos às margens das garantias mínimas que preservam a sua dignidade como pessoa humana.
O êxito na aprovação do Anteprojeto e de outras propostas de mesma natureza confirma uma política criminal de precedentes, que endossa o
movimento ascendente de consolidação da normalidade e institucionalização do projeto de exceção.
(9)
Não fosse isso o bastante, o condenável Projeto de Lei visa sancionar com penas de detenção de 1(um) a 2(dois) anos, e multa, aquele que deixar de fornecer ou atualizar as informações que devem compor o banco de dados.
Adequada é a análise de
Juarez Tavares a respeito do crescente simbolismo penal, ao afirmar que
não basta proibir, é preciso mandar fazer.
(10) Neste caso, o mandamento de ordem é a mobilização conjunta rumo à “caça as bruxas”, em uma tipificação insustentável no tocante a existência de lesão ou perigo de lesão a qualquer bem jurídico merecedor de tutela.
Destarte, ensina
Luiz Regis Pradoque
em um Estado Democrático e Social de Direito, a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico,
(11) sob pena de desvirtuar a função precípua do Direito Penal – a exclusiva proteção de bens jurídicos.
A inércia em não oficiar à Vara de Execuções Penais ou a omissão em manter o juiz da execução atualizado sobre os dados referentes ao egresso, por si só, não têm condão de oferecer dano ou risco à dignidade sexual de qualquer infante.
Parece que o conteúdo do injusto penal não mais se fundamenta no desvalor da ação e no desvalor do resultado, mas sim na mera existência do sujeito perigoso, encarnado, agora, na figura do inimigo. Basta reunir certas condições para recair-lhe a mais pesada presunção de culpa.
Porém, a inversão de valores e prioridades políticas é tamanha, que não deixa avaliar se os custos sociais e constitucionais da implantação desse banco de dados seria menos oneroso e de efeitos bem mais positivos que a instituição e a manutenção de um cadastro nacional de crianças e adolescentes desaparecidos – ferramenta da qual carecemos e que tutela verdadeiramente interesses infanto-juvenis – sem afrontar, em contrapartida, a ideia de dignidade da pessoa humana.
Notas
(1) O Anteprojeto foi apresentado em 02 de fevereiro de 2009 e encontra-se atualmente sob a avaliação e emissão de parecer da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa para decisão terminativa no Senado. O Projeto, em sua redação original, visa a dar publicidade aos dados pessoais de condenados pelos delitos previstos nos arts. 240, 241-A, §1º, I, e 241-D do ECA, bem como nos arts. 213 e 218 do CP. Todavia, ainda que a superveniência da Lei nº 12.015/2009 tenha alterado a sistemática relativa aos crimes contra a
dignidade sexual, não se findam, portanto, as reprovações a serem feitas a respeito do referido Projeto. Sobre as modificações referentes aos delitos sexuais, vide
CAPANO, Evandro Fabini.
Dignidade sexual:
comentários aos novos crimes do Título VI do Código Penal (arts. 213 a 234-B) alterados pela Lei 12.015/2009. São Paulo: RT, 2009.
(2) O preâmbulo do Projeto de Lei faz alusão ao bem jurídico penal
liberdade sexual de crianças e adolescentes. Contudo, entende-se aqui que a melhor e mais coerente denominação do bem a ser tutelado seria
dignidade sexual de crianças e adolescentes.
(3) CÂMARA, Guilherme Costa.
Programa de política criminal:
orientado para a vítima de crime. São Paulo: RT/Coimbra, 2008, p. 112-113.
(4) Vide,
ROXIN, Claus.
Derecho Penal:
parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 1997, p. 817, vide em específico,
JAKOBS,Günther. Derecho Penal: parte general – fundamentos y teoría de la imputación. Trad. Joaquim Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de Murrillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 591-593.
(5) FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 143 e seguintes; vide, nesse sentido,
SANTOS, Juarez Cirino dos.
Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal.
Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, 2002, v. 7, p. 55.
(6) SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu.
Teoria da pena:
finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 158.
(7) DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis.
Da sociedade do risco à segurança cidadã: um debate desfocado. Trad. Sónia Fidalgo.
Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra, 2007, v. 17, p. 573.
(8) NUCCI, Guilherme de Souza.
Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: RT, 2009, p. 588.
(9) CORDEIRO, Marcelo Lucchesi; MARINHO JÚNIOR, Inezil Penna.
Aproximação ao controle penal do inimigo na política criminal brasileira.
Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias. Pelotas, 2006, v. 5, n. 1, p. 81, jan./dez. O denominado movimento ascendente refere-se ao crescente discurso de emergência, refletido nas propostas legislativas. Tais disposições caracterizam-se por excepcionar instrumentos de garantias já existentes e legitimados, não só no Código Penal e nas leis extravagantes, mas também permitindo interpretações viciadas de alguns dos dispositivos constitucionais que, na maioria das vezes conduzem ao agravamento da aplicação ou execução de alguma sanção, ou, ainda, autorizam a flexibilização dos princípios penais de garantias. Essa tendência é paradigmática na política criminal vigente na Colômbia, onde o discurso emergencial transformou o país num exemplo de irracionalidade legislativa em matéria penal. Sobre a questão, vide
SOTOMAYOR ACOSTA, Juan Oberto.
Las recientes reformas penales en Colombia: un ejemplo de irracionalidad legislativa.
Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, 2008, v. 8, p. 13-61, out./dez. No Brasil, alguns dos dispositivos constitucionais já são alvos de interpretações distorcidas. O próprio relatório do PLS nº 338/2009 traz como justificativa ao seu conteúdo o disposto no art. 144,
caput, da CF.
(10) TAVARES, Juarez.
A crescente legislação penal e os discursos de emergência.
Discursos Sediciosos:
crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, 1997, v. 2, p. 51.
(11) PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 70.
Pedro Paulo da Cunha Ferreira
Acadêmico do 5º ano do curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR) e monitor da disciplina de Introdução à Pesquisa Jurídica.
Como citar este artigo: FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha. Emergência penal, cultura do medo e uma nova palavra de ordem: algumas reflexões sobre a absurda proposta do PLS n° 338/2009. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 17-19, ago., 2010.