O governador eleito do Rio de Janeiro, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), defende um remodelamento das audiências de custódias. Para ele, deve ser possível negociar a pena já na sessão. Porém, essa mudança só poderia ser feita por lei federal, não estadual. Além disso, a proposta restringe o direito de defesa do preso em flagrante e aumenta as chances de ocorrerem erros judiciais, segundo especialistas ouvidos pela ConJur.
Witzel sugere uma ampliação das competências das audiências de custódia. "Isso, no estado, tem que ser aperfeiçoado, para ser mais útil. Inclusive, com a possibilidade de se fazer um acordo já imediato. Por exemplo, o sujeito roubou: testemunha identificou, flagrante, pena de 5 anos e 4 meses? Então, vamos propor 4 anos e 6 meses e está resolvido o processo", disse Witzel ao site G1.
Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça implementou as audiências de custódia. O procedimento, previsto na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, determina que todo preso em flagrante seja apresentado a uma autoridade do Judiciário dentro de 24 horas.
Durante a audiência, o juiz analisa a legalidade, a necessidade e a adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O magistrado também pode avaliar eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.
As audiências de custódia foram regulamentadas pela Resolução 213/2015. Foi possível normatizar o procedimento por essa via porque ele já era de certa forma previsto no Código de Processo Penal e no Pacto de San Jose da Costa Rica, além de ter sido determinado pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347.
No entanto, o novo modelo de audiências de custódia defendido por Witzel só poderia ser instituído por lei federal, não estadual. Isso porque apenas a União pode legislar sobre Direito Processual Penal, conforme o artigo 22, I, da Constituição.
Fora que a ideia de negociar a pena já na audiência de custódia, semelhante ao plea bargain dos EUA, contraria o sistema penal e processual penal brasileiro. Para o criminalista Reinaldo Santos de Almeida, professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a ampliação da Justiça negocial para além dos crimes de menor potencial ofensivo (regulamentada pela Lei 9.099/1995) e dos acordos de delação premiada para delitos relacionados a organizações criminosas (determinada pela Lei 12.850/2013) viola os princípios constitucionais do devido processo legal e da obrigatoriedade da ação penal.
Segundo o advogado, a proposta do governador eleito do Rio criaria um “simulacro de jurisdição” para homologar penas sem processo contra inimigos — determinados pela classe social, cor da pele ou posição política. Com isso, força o acusado a confessar, ainda que não tenha feito nada. E acaba com o direito de defesa.
“A tentativa visa universalizar a prática forense atual nos processos da operação ‘lava jato’: a prisão — ou a sua ameaça — como forma de tortura para negociar uma delação ou, no caso específico, uma ‘transação’, em que se aceita uma pena menor, ainda que seja inocente, para não receber uma pena maior ao final, num pseudocálculo utilitarista, em que o cidadão acusado se torna um homo sacer [pessoas matáveis] perante o poder punitivo do Estado. É a velha proposta nazifascista de julgamentos sumários e de exceção sepultada pelo Exército Vermelho em 1945. Em última análise, o objetivo é eliminar o direito de defesa”, critica Santos de Almeida.
Nessa linha, a vice-presidente da seção do Rio de Janeiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-RJ), Maíra Fernandes, ex-presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro, diz que a proposta de Witzel está na contramão da motivação das audiências de custódia, que foram instituídas para julgar apenas a manutenção da prisão, não o mérito do processo. Dessa maneira, aponta, a ideia do ex-juiz iria abolir as garantias à ampla defesa e o contraditório.
E, com isso, aumentariam os casos de erros judiciais, avalia Maíra. “Observe que os próprios pressupostos do governador, tidos como isentos de dúvidas, são equivocados: é possível, sim, que uma pessoa presa em flagrante e supostamente reconhecida pela vítima seja absolvida ao final do processo. Isso porque não faltam casos de falsos flagrantes e de reconhecimentos indevidos. Não faltam exemplos de erros judiciais decorrentes da aplicação do plea bargain.”
Em palestra, Maíra Fernandes e a criminalista Dora Cavalcanti destacaramque as confissões falsas são responsáveis por grande parte dos erros judiciais. Nos EUA, citou Dora, muitos suspeitos preferem fazer um plea bargain a se submeter a um julgamento e correr o risco de ser condenado a uma pena bem maior.
A prática indiscriminada do plea bargain tem aprofundado a seletividade da Justiça criminal dos EUA, avalia o advogado Antonio Pedro Melchior, professor de Direito Processual Penal da UFRJ. E o mesmo ocorreria no Brasil com a adoção da proposta defendida por Witzel, diz.
De acordo com Melchior, a ideia do governador eleito, ao lado da intenção de “abater” quem estiver portando fuzil, “expressa um modelo de política criminal abertamente antidemocrática”. E a negociação na audiência de custódia, a seu ver, desvirtua o objetivo da medida, que é de servir para o controle da legalidade do ato administrativo e de abusos no momento da execução da ordem de prisão.
Mudança na dinâmica
O remodelamento das audiências de custódia sugerido por Wilson Witzel também esbarra na estrutura de funcionamento delas no Rio de Janeiro, ressalta o subcoordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Ricardo André de Souza.
No modelo fluminense, as audiências de custódia são conduzidas por três centrais anexas às unidades prisionais que funcionam como "porta de entrada" dos presos (que depois são distribuídos às demais unidades prisionais do estado). Elas ficam no Rio, em Campos dos Goytacazes e em Volta Redonda.
Porém, os juízes e promotores das centrais de custódia só têm competência para analisar a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, e não para fixar penas, afirma Souza. Esse tipo de atuação, aponta, só poderia ocorrer após a distribuição do processo às varas criminais competentes para o processamento dos casos.
A paridade em uma negociação de pena é outro problema da proposta de Witzel. Conforme Ricardo Souza, nos lugares onde não há Defensoria Pública, o acusado sairia prejudicado da barganha. “Uma coisa é fazer um acordo entre o Ministério Público e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Outra coisa é fazer um acordo entre o MP e um advogado dativo, nomeado apenas para o ato e que, por vezes, nem atua na área criminal.”
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2018.
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