É MEIO DA TARDE numa oficina de costura. Os funcionários, todos homens, vestem uniformes alaranjados, ostentam tatuagens amadoras visíveis nas mãos, braços e, às vezes, no pescoço e operam máquinas de corte, ferramentas e tesouras afiadas. O ambiente, tranquilo e cordial, nos faz esquecer de onde estamos: uma prisão no maior complexo penitenciário do Paraná, em Piraquara, região metropolitana de Curitiba.
A meu lado, caminham a advogada Isabel Kugler Mendes, 82 anos, presidente do Conselho da Comunidade de Curitiba, entidade que presta assistência aos presos em dez penitenciárias e 13 carceragens de delegacias da região, um assessor dela e um agente penitenciário que não carrega arma ou mesmo um cacetete e que volta e meia conversa com algum detento. Nenhum de nós sente medo – a sensação é a de estarmos em uma indústria qualquer.
“É assim que todo presídio deveria ser no Brasil, segundo a Lei de Execução Penal“, me explica a “doutora Isabel”, como é conhecida pelos detentos. “Mas, de fato, só esse cumpre integralmente o que manda a legislação.” Estamos na Unidade de Progressão da Penitenciária Central do Estado, onde 240 presos passam o dia fora de suas celas trabalhando e estudando.
É um espaço enorme, composto por duas galerias de celas, sete salas de trabalho, dez salas de aula, biblioteca, pátio com quadra de esportes, área de visitas e uma horta de produtos orgânicos. Oito agentes se revezam, por turno, para vigiar tudo – ou um a cada 30 detentos. Nenhum anda armado. Desde que a unidade foi inaugurada, em março passado, jamais houve qualquer incidente. Não à toa, ela é conhecida informalmente como “prisão modelo”, um oásis no inferno que é o sistema carcerário brasileiro em que mais de 726 mil presos dividem 358 mil vagas.
Na “prisão modelo”, o trabalho é compulsório e remunerado: R$ 715, 20% dos quais são depositados numa poupança que o preso só poderá mover em liberdade – o restante é entregue à família.
Ducha gelada às seis da manhã
Mais de 21 mil pessoas vivem em regime fechado no Paraná. Para entrar no regime de progressão de pena em uma das duas Unidades de Progressão do estado, que leva os condenados ao semi-aberto e ao aberto, é preciso cumprir alguns requisitos: não pode ter cometido crime hediondo nem falta disciplinar recente durante a pena. A progressão de pena também é vedada a integrantes de facções criminosas – o Primeiro Comando da Capital, o PCC, domina os presídios paranaenses.
Os detentos das Unidades de Progressão, no entanto, não têm moleza. “Ele acorda às 6 horas da manhã, toma uma ducha gelada, trabalha o dia inteiro, em seguida tem aulas e só volta para a cela às 9 da noite. No regime fechado, o cara passa 22 horas por dia na cela, joga baralho a noite toda, acorda a hora que quer”, compara Eduardo Lino Bueno Fagundes Júnior, juiz da primeira vara de execução penal de Curitiba e coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Paraná, o GMF, criado por ordem do Conselho Nacional de Justiça como tentativa de melhorar as condições em que vivem detentos no país. A “prisão modelo” é uma das iniciativas do grupo.
‘No regime fechado, o cara passa 22 horas por dia na cela, joga baralho a noite toda, acorda a hora que quer.’
“Vai para a unidade quem está mais perto da progressão para o regime semi-aberto ou aberto, porque esses são os que têm menos vontade de criar problemas. E ali ele tem direito a tudo que a Lei de Execução Penal determina”, explica o desembargador Ruy Muggiati, supervisor do GMF, um homem de fala gentil e tranquila que destoa da prepotência habitual às instâncias superiores do Poder Judiciário.
Na “prisão modelo”, o trabalho é compulsório e remunerado: três quartos de salário-mínimo, ou R$ 715, 20% dos quais são depositados numa poupança que o detento só poderá movimentar quando receber a liberdade definitiva – o restante é entregue à família. Estudo e trabalho também reduzem a pena restante: a cada três dias de batente, um é abatido do tempo que falta cumprir atrás das grades; 12 horas de aulas abatem mais um dia de pena.
O resultado: a reincidência criminal dos presos que passaram pela Unidade de Progressão é de 10% – apenas um a cada dez volta a cometer crimes. Para efeitos de comparação, a média nacional, segundo informaram a Primeira Vara de Execução Penal de Curitiba e o Departamento Penitenciário do Paraná, é de 70%. Em tempos em que o presidente eleito é autor de frases como “presídio cheio é problema de quem cometeu crime“, como disse Jair Bolsonaro em junho, a unidade parece nadar contra a corrente.
Percorrer as instalações da “prisão modelo” não é muito diferente de andar por uma escola pública. O prédio é antigo e precário, mas limpo e bem cuidado, assim como as celas.
O cheiro de cadeia
A Unidade de Progressão funciona no mais antigo dos prédios da Penitenciária Central do Estado, finalizada na década de 1950. As galerias que hoje abrigam os detentos do “presídio modelo” foram destruídas por sucessivas rebeliões ocorridas nas últimas duas décadas.
Eu cobri uma das maiores delas, em 2001, que marcou a chegada do PCC ao Paraná e deixou um saldo de quatro mortos – três presos e um agente penitenciário. Ao final dos quase seis dias de motim, jornalistas foram autorizados a entrar no pátio na unidade – condição imposta por José Márcio Felício, o Geleião, e César Augusto Roriz Silva, o Cesinha, fundadores e então comandantes do PCC, para garantir que ele e outros rebelados não seriam executados antes da transferência para São Paulo.
O olfato é o primeiro sentido a acusar a entrada numa prisão – o cheiro costuma ser uma mistura do mofo natural a lugares aonde o sol nunca chega com o odor azedo de material orgânico apodrecendo.
Em seguida, a polícia permitiu que visitássemos as galerias onde a rebelião havia começado. O olfato é o primeiro sentido a acusar a entrada numa prisão – o cheiro, inesquecível, era uma mistura do mofo natural a lugares aonde o sol nunca chega com o odor azedo de material orgânico apodrecendo. Gatos circulavam livremente e aos montes: os presos os mantinham para tentar dar cabo dos ratos que infestavam o lugar. Os pátios para onde davam as janelas gradeadas das celas estavam cobertos por uma pilha de lixo acumulada pelos detentos.
Quase duas décadas depois, foi a ausência do “cheiro de cadeia” o que mais impressionou quando entramos exatamente nas mesmas galerias, agora ocupadas pela Unidade de Progressão. O trabalho de limpeza e reconstrução do local foi feito pelos próprios detentos que agora cumprem suas penas ali, me contou um agente que pediu para não ser identificado – o motivo ficará claro adiante. “Tinha uma pilha de lixo e destroços de mais de um metro de altura no pátio”, ele relata.
Percorrer as instalações da “prisão modelo” não é muito diferente de andar por uma escola pública. O prédio é antigo e precário, mas limpo e bem cuidado, assim como as celas. Os muros estão pintados e alguns têm desenhos. Nalguns cantos, há vasos de flores. No centro do pátio, o galpão de alvenaria em que os detentos recebem as visitas semanais está cercado por cortinas de plástico transparente – imprescindíveis para dar conta do vento gelado que sopra da vizinha Serra do Mar nos meses de inverno. Compradas pelo Conselho da Comunidade, elas parecem recém-instaladas, mas estão ali há mais de um ano. Não exibem um rasgo sequer.
‘Maioria dos presos não é perigosa’
“Estar aqui abre uma opção”, me conta Eduardo, um jovem de 24 anos que está preso pela terceira vez, sempre por assalto e porte ilegal de arma e que preferiu me dizer apenas o seu primeiro nome. Na Unidade de Progressão, ele trabalha aplicando decalques em canecas e pratos para uma das maiores indústrias de cerâmica do país e estuda para completar o ensino fundamental – “faltam só três disciplinas”.
Nascido no interior do Paraná, Eduardo não passou do sexto ano quando tinha idade escolar – como ele, 36% da população carcerária brasileira não completou o ensino fundamental. Em Curitiba, onde cresceu, penou para arrumar trabalho. “Sempre diziam que me faltava experiência – tenho duas anotações na carteira de trabalho, as duas provisórias. Daí meio que não tem escolha [a não ser ir para o crime], né?”
Agora, ele espera que as coisas sejam diferentes. “Estou aprendendo uma profissão”, diz, sobre a experiência como auxiliar na linha de montagem de objetos de cerâmica. “É importante, porque tenho mais uma boca para alimentar quando sair”, conta, se referindo ao filho de dois anos.
Detentos como Eduardo são a maioria dos que estão no sistema penitenciário brasileiro, afirma o psicólogo Ulisses Schlosser, pesquisador de uma rede de universidades chamada Alternative Perspectives and Global Concerns (Perspectivas Alternativas e Preocupações Globais, em português).
“Em geral, o crime é um episódio único na vida de uma pessoa. Quando se avalia os presos, a maioria não é de pessoas ameaçadoras, perigosas. Claro que existe uma minoria presa que é preocupante, formada por criminosos que não sabemos como tratar. Mas, pelas minhas pesquisas, eles giram em torno de 20% das pessoas presas”, afirma Schlosser.
‘A sociedade brasileira deseja ver mais gente presa. Mas precisamos é criar horror à prisão.’
Os números do pesquisador foram apurados a partir de entrevistas realizadas com detentos de uma penitenciária estadual em Foz do Iguaçu, no oeste do Paraná.
“Existe um descontrole na entrada do sistema penitenciário. Prendemos demais”, concorda o juiz Eduardo Lino Bueno Fagundes Júnior. “O sistema penitenciário passou a fazer parte do ciclo da violência e fornece recrutamento para as organizações criminosas. O Estado está gastando muito dinheiro para o sistema funcionar desse modo”, faz coro o desembargador Ruy Muggiati.
“Temos 726 mil pessoas encarceradas no Brasil, com a projeção de ultrapassar a casa de 1 milhão nos próximos anos. Isso tem um custo elevado para a sociedade”, diz o coronel Élio de Oliveira Manuel, policial militar há 35 anos e, há seis meses, secretário especial da Administração Penitenciária do Paraná.
Mesmo ele, forjado na doutrina militar, não acredita que ir jogando gente na cadeia seja uma boa ideia. “Por experiência, eu diria que uns 40% das pessoas que estão presas têm envolvimento com facções criminosas e não teriam interesse num projeto de ressocialização. Mas 60% teriam”, estima Manuel. Uma projeção mais conservadora que a do psicólogo Schlosser.
“Certa vez um rapaz me contou que era viciado em drogas, mas jamais seria capaz de roubar ou matar. Mas, para sustentar o vício, virou olheiro do tráfico. E pegou três penas de traficante, cada uma de 17 anos. Estamos empurrando pessoas como essa para o crime organizado”, lamenta o juiz Lino.
“Quando chega numa penitenciária superlotada, até para arrumar lugar para dormir o preso precisa pagar. Para receber visitas, também – em geral os parentes vivem longe. É aí que entram as facções, que resolvem o problema do detento. Em troca disso, eles criam dívidas, viram soldados dos grupos”, ele prossegue. “Na Unidade de Progressão, é o Estado que providencia tudo isso, como sempre deveria ser.”
“A sociedade brasileira deseja ver mais gente presa. Mas precisamos é criar horror à prisão. Para isso, histórias de gente que se suicida na prisão, ou que entra lá e vira um verdadeiro criminoso precisam vir a público”, concorda Schlosser.
‘É o melhor lugar do mundo para trabalhar’
A justiça paranaense recebe, toda semana, cerca de 20 pedidos de famílias querendo transferir seus familiares presos para a Unidade de Progressão.
As vagas, porém, dependem não só de espaço nas celas, como também da existência de trabalho para todos os detentos. Hoje, há 17 canteiros de trabalhos do próprio sistema penitenciário, em que os internos fazem serviços como lavanderia, manutenção dos prédios e fabricação das próprias roupas. Além deles, há as oficinas que produzem uniformes para uma empresa de segurança, embalagens para pães de forma, decoração para produtos cerâmicos e hortaliças orgânicas certificadas – que, em breve, serão processadas e embaladas ali mesmo.
Também é preciso vencer as resistências naturais dos agentes penitenciários, há décadas habituados a uma relação de apreensão mútua com os presos. “A primeira dificuldade foi escolher os agentes para trabalhar na Unidade de Progressão. Alguns vieram meio na marra”, confessa Muggiati.
“No começo, eu ficava com medo de ver esses caras andando de lá pra cá com ferramentas afiadas, pás e enxadas, na mão”, diz um dos agentes que atua na prisão modelo. Ao contrário de unidades de regime fechado tradicionais, em que o preso passa 22 horas do dia na cela e, sempre que sai, é algemado, ali os internos circulam livremente, não raro com suas ferramentas de trabalho na mão. “Mas, depois que me acostumei, isso aqui virou o melhor lugar do mundo pra trabalhar”, prossegue o agente, pedindo sigilo – o motivo é a resistência que ainda existe na categoria em relação ao projeto. “A maioria acha que isso aqui não tem como dar certo, até torce pra dar errado, porque acha que preso tem que ser tratado é na porrada”, conta outro deles.
‘Habitualmente, se um cara pega na tua mão, é pra tentar te matar. Aqui, é comum o preso vir aqui na minha sala, antes de ser solto, e trocar um aperto de mão, agradecer pela convivência.’
“Logo que comecei a trabalhar no sistema penitenciário, vi um preso morto pelos colegas. Fiquei um mês sem dormir. Com o tempo, passei a achar isso natural. Mas não é”, lembra Tayrone Cláudio da Silva, há 11 anos agente e atualmente diretor da Unidade de Progressão.
“O nosso padrão é trabalhar com o preso em regime fechado, em que o sujeito fica 22 horas por dia na cela. Nós também precisamos nos adaptar a conviver com os detentos soltos, circulando. Nas outras unidades, você está sempre esperando pelo pior. Habitualmente, se um cara pega na tua mão, é pra tentar te matar. Aqui, é comum o preso vir aqui na minha sala, antes de ser solto, e trocar um aperto de mão, agradecer pela convivência”, prossegue.
“Os agentes compraram o projeto. Criou-se um círculo virtuoso; todo mundo quer ajudar, contribuir, os presos são solidários entre eles. As tensões caíram muito. Um agente, com mais de 60 anos de idade, me chamou num canto e me disse: ‘Nunca fui tão feliz na minha vida'”, sorri Muggiati.
“A estrutura desse prédio é tão precária que, se o preso chutar uma grade, ela cai”, exagera Silva, o diretor. “Eles não fogem porque valorizam o que têm aqui. A disciplina é consequência do interesse deles em manter a possibilidade de trabalhar e estudar”, afirma. “A gente fala aqui pros caras que eles estão presos pela consciência deles. E é verdade”, concorda um agente.
Com Bolsonaro, futuro é incerto
Nomeado ministro da Justiça e Segurança Pública por Bolsonaro, o juiz federal Sergio Moro falou por quase duas horas a jornalistas sobre seus planos. Defendeu penas mais duras para crimes graves e o que chama de “grande corrupção”, além de endurecimento da progressão de regime – e mesmo o fim dela para detentos ligados a organizações criminosas.
Quase todas as pessoas com quem conversei para esta reportagem – as entrevistas foram feitas antes da nomeação de Moro – procuraram afastar a ideia de que a eleição do ultradireitista Bolsonaro possa significar a morte prematura de experiências como a da Unidade de Progressão.
“Quero acreditar que o projeto não corre risco, porque o resultado concreto é muito forte. Basta que as pessoas vejam, não é preciso argumentar”, afirma o desembargador Muggiati. Uma segunda unidade do tipo, feminina, de dimensões semelhantes, foi inaugurada há menos de um mês em Foz do Iguaçu.
A exceção é Isabel, que dedicou boa parte de sua vida aos direitos dos presos e conhece como poucos o funcionamento do sistema penitenciário. “Tenho muito medo que isso aqui acabe [com a eleição de Bolsonaro]. Ele já falou em acabar com a progressão de regime. Que estímulo o preso teria para estudar e trabalhar sem a remissão da pena e a progressão de regime? Sem eles, as prisões viram barris de pólvora”, ela prevê.
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