O tráfico de pessoas é um delito relacionado a ambições e desejos o que torna qualquer pessoa um alvo fácil para criminosos. A avaliação é da coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) do Ceará, Livia Xerez Azevedo, que trabalha há sete anos na função.
"É um crime que vítima homens, mulheres, crianças, profissionais do sexo que querem ganhar em dólar e euro e também aquela pessoa que sonha em fazer um intercâmbio pra estudar outro idioma. Todos nós podemos ser vítimas do tráfico de pessoas. Todos nós temos sonhos e necessidades", defende.
Presente na 4ª Reunião da Comissão de Trabalho em Matéria de Tráfico de Seres Humanos, que reúne, em Brasília, países-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) até a próxima quinta-feira (29), Livia explica que as vítimas, quando identificadas, têm dificuldade de se reconhecer como tal, por ter, em primeiro lugar, de assumir que foram ludibriadas.
"Nesse momento do retorno, principalmente no tráfico internacional, são muitas as mulheres e os homens que chegam com seus sonhos destroçados completamente. Existe uma expectativa de que, com essa viagem para o exterior, vai conseguir juntar dinheiro para mandar para a mãe, que vai conseguir aprender outros idiomas, andar de avião, conhecer o mar, e, quando essas pessoas voltam, elas voltam com um sentimento de fracasso, de vergonha. Sentem que voltaram com uma mão na frente e outra atrás. [A vítima] Fez uma festa para as amigas, para a mãe, para o vizinho, de que ia reconstruir sua vida e fracassou, foi enganada", destaca a coordenadora.
Em alguns casos, conta ela, a negação da vítima pode levá-la a repetir a experiência de abuso. "Elas acham que foi uma grande oportunidade. Elas estão tão vulneráveis que elas acreditam que foi uma grande oportunidade de viver melhor que, com elas, infelizmente não deu certo, mas que, com outras pessoas, poderia ter dado, e que elas vão tentar novamente. Então, são confusões de sentimentos que desafiam as equipes de atendimento a esse acolhimento humanizado."
Para a coordenadora, os membros das equipes de resgate devem evitar julgar as pessoas que se encontram nessa situação. "Existe ainda um preconceito em atender a essas vítimas. Elas são, muitas vezes, rechaçadas, por seus sonhos. E entendemos que essa articulação [de sensibilizar os atendentes] é importante. Por que, afinal, o que é o tráfico de pessoas? Muitas vezes, elas [as vítimas] se aventuram nessas falsas promessas porque não tiveram seu direito à saúde, à assistência social, convivência familiar e comunitária na sua terra natal", diz.
Unificar dados
De acordo com a coordenadora-geral de enfrentamento ao tráfico de pessoas, Renata Braz, um dos desafios da área é unificar as informações relativas a esse tipo de crime, inclusive para tocar adiante políticas públicas na área. "Esses números estão fragmentados. Temos os da Polícia Federal, os do Ministério do Desenvolvimento Social, [do Ministério] da Saúde, da Polícia Rodoviária Federal, Ministério das Relações Exteriores, mas eles não conversam entre si. E esse é o nosso maior desafio agora, para a próxima gestão. Como padronizar esses números, porque sem dados não existe política pública. A gente não consegue desenhar a política pública, não consegue focalizar as ações, não consegue ver o retrato da realidade", pondera.
Uma das únicas plataformas hoje existentes é a Base Colaborativa de Dados sobre Tráfico de Pessoas (CTDC), mantida pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência da Organização das Nações Unidas (ONU). Lá estão relacionados 91.416 ocorrências, que, reportadas desde 2002, colocam na rota de exploração 172 países. As vítimas, segundo os registros, eram de 169 nacionalidades diferentes, o que reforça a ideia de que o crime é um problema de caráter global.
O registro de tráfico de pessoas tem aumento no mundo desde 2014. Naquele ano, 5.489 vítimas foram auxiliadas, número que saltou para 10.819, em 2015. No ano seguinte, o total de vítimas chegou a 24.246, passando para 15.944 em 2017. Até agosto deste ano, 2.186 foram confirmadas.
A plataforma mostra ainda que a maioria das vítimas é do gênero feminino (71%), solteira (46,4%) e portadora de um diploma de nível técnico (24%). Avaliando a faixa etária das vítimas, constata-se uma maior incidência entre dois grupos: pessoas com idade entre 9 e 17 anos (18%) e entre 30 e 38 anos (18%).
Geralmente, o recrutador, isto é, a pessoa que apresenta a proposta à vítima e a subjuga, é alguém que não pertence ao círculo familiar ou social da vítima.
Rede brasileira de atendimento
No Brasil, a rede de atendimento a vítimas desse tipo de crime é composta por núcleos de enfrentamento ao tráfico de pessoas, voltados à aplicação, em âmbito estadual, de ações nacionais, e postos avançados de atendimento humanizado ao migrante, que é onde as vítimas são recepcionadas.
De acordo com Renata Braz, os 17 núcleos e 13 postos não estão distribuídos de forma satisfatória nem equilibrada pelo país, o que causa a desproteção de certas regiões, incluindo algumas que fazem fronteira com Bolívia e Paraguai.
"A gente tem, por exemplo, no Mato Grosso uma atuação muito forte de um comitê estadual. Então, a gente vai se adaptando à realidade de cada estado. Porque a gente também tem uma outra questão, que é muito importante colocar: nós somos um país federativo. Então, estados e União são autônomos entre si. A gente não tem uma hierarquia com os estados. Exige uma cooperação, uma articulação. Nem sempre é fácil", afirma.
Os estados de Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Sergipe, Tocantins, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba não contam, atualmente, nem com um núcleo nem com um posto avançado de atendimento.