Em 7 de novembro de 1917 — segundo o calendário adotado no ocidente —, os bolcheviques, liderados por Lenin, atacavam o Palácio de Inverno, em Petrogrado (atual São Peterburgo), destituíam o governo provisório e assumiam o poder na Rússia. Era a segunda fase da Revolução Russa, que iria tentar construir o socialismo em um país, influenciando a política mundial por quase todo o século XX.
Evgeni Bronislávovich Pachukanis foi, provavelmente, o maior jurista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que existiu de 1922 a 1991. Em 2017, seu livro mais importante, A teoria geral do Direito e o marxismo, foi, pela primeira vez, publicado no Brasil em traduções feitas diretamente do russo, tanto pela Boitempo quanto pela Sundermann.
Também foram publicados ensaios escritos entre 1921 e 1929. Nestes textos, Pachukanis critica juristas conservadores, como o francês Maurice Hauriou, avalia o legado de O Estado e a revolução, de Lenin, e debate maneiras de acabar com o “burocratismo” na URSS.
Mas o ensaio mais interessante é Para um exame da literatura sobre a teoria geral do Direito e do Estado. No artigo, Pachukanis ataca duramente o jurista austríaco Hans Kelsen. Talvez o jusfilósofo mais estudado nas faculdades brasileiras, Kelsen criou a Teoria Pura do Direito, que buscava conferir objetividade a esta ciência, excluindo dela elementos de outras ciências sociais. Além disso, ele organizou as normas jurídicas, de acordo com sua hierarquia, em uma pirâmide, modelo que passou a ser replicado nos países que adotam o sistema romano-germânico.
Na visão do jurista russo, as teorias de Kelsen são vazias e inúteis no mundo real. “As construções por ele [Kelsen] propostas são tão artificiais, paradoxais e, sobretudo, sem vida, que elas dificilmente poderiam encontrar uma aplicação, mesmo na reduzida esfera da dogmática jurídica; o método de Kelsen conduz para o lado completamente oposto ao de uma concepção verdadeiramente científica do Direito e do Estado”, escreve.
Pachukanis vai mais longe na crítica ao jurista austríaco: “Kelsen escava um verdadeiro abismo lógico entre o ser e o dever-ser e veda ao jurista qualquer acesso do mundo das normas ao mundo da realidade. Submetendo os conceitos jurídicos fundamentais a uma cuidadosa análise, ele elimina meticulosamente de lá todos os elementos psicológicos e sociológicos, qualquer traço do real”.
Por ser indiferente ao conteúdo das normas jurídicas, atentando-se apenas a seus requisitos formais, Hans Kelsen admite, por exemplo, a criação de uma lei que autorize a escravidão ou legitime formas de despotismo, alerta Pachukanis.
Um dos organizadores da edição da editora Sundermann, o professor da Unicamp Márcio Bilharinho Naves afirmou à ConJur que Evgeni Pachukanis era particularmente crítico da ideia de Kelsen de que a norma que cria o Direito – o que validaria a Constituição de um Estado nazista, por exemplo.
O russo, aponta Naves, argumentava que ocorria o contrário: a realidade material tem primazia sobre a norma. Ele dava o seguinte exemplo: “Se nenhum devedor quitasse a dívida, seria preciso reconhecer que a regra correspondente é de fato inexistente”. Com isso, Pachukanis afirma que a teoria pura do Direito não se sustenta e mostra como Kelsen sabia disso, tanto que recorre ao Direito Natural para validá-la.
Segundo Naves, como as faculdades brasileiras são dominadas por uma concepção normativista, o Direito não pode ser efetivamente conhecido nelas. Sem relacionar as formas jurídicas ao processo de circulação de mercadorias, que, conforme o russo, cria o sujeito de direito, as universidades “apenas reproduzem a ideologia jurídica burguesa”. Assim, de acordo com a teoria de Pachukanis, o ensino jurídico brasileiro é, em geral, descolado da realidade.
Sujeito de direito
A teoria marxista do Direito, para Pachukanis, deve examinar o conteúdo das normas nas diferentes épocas, mas também dar uma interpretação materialista à regulamentação jurídica como forma histórica determinada.
O conceito fundamental da teoria marxista de Pachukanis é o de “sujeito de direito”, aponta Naves. Esta concepção, segundo o jurista, surge com o pleno desenvolvimento das relações de troca de mercadorias e consequente maior proteção legal da propriedade, que atribuem ao produto do trabalho a qualidade de mercadoria, tornando-o portador de valor. Dessa maneira, o direito adquire um caráter abstrato, e cada um vira um sujeito jurídico abstrato.
“Assim, o sujeito jurídico é o abstrato possuidor de mercadorias elevado às nuvens. Sua vontade, compreendida em sentido jurídico, possui base real no desejo de alienar adquirindo e adquirir alienando. Para que esse desejo se realize, é necessário que os desejos dos possuidores de mercadorias vão ao encontro um do outro. Juridicamente, essa relação se expressa como contrato ou acordo de vontades”, afirma em A teoria geral do Direito e o marxismo. Portanto, a seu ver, o contrato é a base do Direito, pois dá vida às abstrações de sujeito e vontade.
O professor da Unicamp explica que quando o proletário é separado dos meios de produção, no início do capitalismo, ele passa a ser livre em dois sentidos: porque não tem mais nada além de sua capacidade de trabalho e porque pode vendê-la no mercado. Logo, “a forma ‘sujeito de direito’ empresta ao indivíduo os atributos da liberdade e da igualdade e o constitui em proprietário universal, permitindo, assim, que o circuito de trocas de mercadorias se realize, e o homem possa vender a sua força de trabalho a outrem”.
Fim do Direito
Evgeni Pachukanis acreditava que o Direito era uma forma naturalmente burguesa, usada pela classe dominante para assegurar seu domínio sobre o proletariado. Na transição do capitalismo para o comunismo, as formas jurídicas seriam mantidas e adaptadas para favorecer os trabalhadores. Contudo, o jurista não acreditava em um “Direito proletário”.
Em sua análise, quando as categorias capitalistas como valor, capital e lucro desaparecessem, quando a sociedade não fosse mais dividida em classes, quando o trabalho não fosse mais só um meio de vida, mas uma necessidade vital das pessoas, quando elas passassem a trabalhar voluntariamente de acordo com suas capacidades, o Direito seria extinto.
“A extinção do Direito em uma sociedade comunista é uma decorrência lógica da teoria de Pachukanis. Se o Direito é uma forma de mediação das relações mercantis – especialmente da compra e venda da força de trabalho -, e o comunismo implica necessariamente o desaparecimento dessas relações, então, a existência dessa forma não seria mais necessária”, comenta Márcio Naves.
Direito Penal
A visão de Pachukanis sobre o Direito Penal também é norteada pela ideia de contrato. O sentido dos códigos penais e processuais penais está, de acordo com o russo, em estabelecer previamente a quantidade de liberdade que será exigida de quem violar o acordo, bem como as condições desse “pagamento”.
E o jurista critica esse sistema em A teoria geral do Direito e o marxismo. Isso porque o objetivo social das normas penais fica mascarado, e elas colocam o autor de um crime na posição de devedor. Ao quitar seu débito, ele retorna ao ponto onde estava antes de cometer o delito – uma existência isolada da sociedade, livre para praticar novas transgressões e assumir obrigações.
No socialismo, tipos penais isolados seriam substituídos por medidas de defesa da população, defende Pachukanis em seu livro. Haveria uma “descrição precisa dos sintomas característicos do estado socialmente perigoso e uma elaboração dos métodos que devem ser aplicados em cada caso particular para resguardar a sociedade”.
Márcio Naves ressalta que o jurista da URSS participou da comissão que preparava um novo Código Penal, que visava acabar com o princípio da retribuição equivalente – o postulado que fixa uma pena de privação de liberdade por um tempo previamente estabelecido para quem praticar crimes.
“A principal alteração defendida nesse projeto era a de ‘quebrar’ o princípio da dosimetria na aplicação da pena, não conservando a pena de prisão como medida repressiva fundamental. Assim, segundo o projeto, o juiz teria mais liberdade para aplicar a pena dentro de um elenco de medidas amplo, inclusive de natureza sócio-educativa, tendo sempre como princípio norteador o critério da periculosidade do agente”, destaca o professor, lembrando que o projeto nunca chegou a ser aprovado.
Perseguido por Stalin
Nascido em 1891, Evgeni Pachukanis filiou-se ao partido social-democrata russo no começo do século XX. Devido à oposição ao czar Nicolau II, foi preso, mas conseguiu substituir sua pena pelo exílio na Alemanha, onde graduou-se em Direito.
Após a Revolução de Outubro, Pachukanis passou a prestar consultoria jurídica no Comissariado do Povo para assuntos estrangeiros. Ele também foi eleito para a Academia Socialista (depois Academia Comunista). Esta entidade, na qual ele atuou na área de Teoria Geral do Direito e do Estado, rapidamente virou o mais importante centro de pesquisa e desenvolvimento do pensamento marxista no campo jurídico.
Em 1924, o jurista lançou A teoria geral do Direito e o marxismo. A obra aumentou seu prestígio e alçou Pachukanis ao posto de vice-comissário da Justiça e integrante das comissões que redigiram a Constituição Soviética de 1936 e o projeto de Código Penal da Rússia.
Porém, a consolidação de Josef Stalin no comando da URSS forçou Pachukanis a rever sua teoria. Enquanto ele defendia que o Direito iria se enfraquecer e eventualmente desaparecer no socialismo, Stalin, com a coletivização forçada dos camponeses e o apoio maciço à industrialização, embarcou na via do capitalismo de Estado. Assim, era preciso criar um ordenamento jurídico que se adaptasse a essa realidade, e não extinguir a forma jurídica.
Para evitar sua prisão ou execução, como vinha ocorrendo com opositores de Stalin, Pachukanis começou a ajustar seus entendimentos às diretrizes do promotor Andrei Vychinski, que liderou o campo jurídico no período stalinista. Mas o esforço é em vão: em 1937, ele foi preso pela polícia política e posteriormente executado. Seus livros foram censurados e só voltaram a ser editados nos anos 1980.
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 7 de novembro de 2017.
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