Se um dia for produzido um filme que conte a história da luta de metade da população americana para exterminar um personagem chamado “Pena de Morte”, o título mais apropriado seria Duro de Matar. Essa seria uma missão, com alguma chance de sucesso, para algum Exterminador do Futuro. Mas no futuro, não agora.
Nas últimas semanas, os defensores da extinção da pena de morte nos EUA se animaram com a possibilidade de a Suprema Corte declarar a pena de morte inconstitucional, porque a corte iria decidir um caso de pena capital e, provavelmente, julgar um segundo caso. Muitos roteiros foram escritos sobre a oportunidade que a corte teria para abolir a pena de morte no país.
No entanto, a ducha fria veio nesta segunda-feira (6/11) quando a Suprema Corte decidiu, por unanimidade, que um homem no corredor da morte não pode ser poupado da execução, só porque ele não mais se lembra de seus crimes por causa de seguidos derrames cerebrais e outras doenças degenerativas.
Os ministros argumentaram que não há precedentes na Suprema Corte declarando que um prisioneiro é “incompetente para ser executado” apenas porque não se lembra mais de seu crime (no caso, o assassinato de um policial). Ele poderia escapar da pena de morte “se não pudesse compreender os conceitos de crime e castigo”.
Apesar da decisão ter sido unânime, o ministro liberal Stephen Breyer escreveu um voto concorrente, como uma espécie de lamento sobre a sorte do prisioneiro Vernon Madison.
“Ele viveu quase metade de sua vida no corredor da morte. Durante esse tempo, ele sofreu diversos derrames cerebrais, que causaram demência vascular e muitos outros problemas físicos e mentais significativos. Ele está legalmente cego. Sua fala é ininteligível. Não pode andar sem ajuda. Sofre de incontinência. Suas deficiências o deixam sem memória sobre o crime que cometeu”, escreveu o ministro.
Mas o ministro se expressou assim só para exemplificar que o caso de Madison é uma tendência no país, parcialmente por culpa dos advogados. “São inúmeros os recursos e a criatividade dos advogados de defesa resultam em seguidos adiamentos da execução da pena de morte”, escreveu o ministro. Isso explica porque nos EUA a maior parte das execuções é de pessoas velhas”.
Fim da pena de morte
A luta para abolir a pena de morte nos EUA é antiga. E vem ganhando tração ano após ano, mas de uma maneira lenta e gradual. Há 45 anos, em 1972, a população americana chegou a acreditar que a pena de morte estava morta. Em um processo chamado Furman versus Georgia, a Suprema Corte decidiu que a pena de morte era inconstitucional, porque era administrada arbitrariamente.
Nessa decisão, o então ministro Potter Stewart escreveu que a pena de morte era “cruel e incomum da mesma maneira que ser atingido por um raio é cruel e incomum". A Constituição dos EUA proíbe punições cruéis e incomuns.
Mas a pena de morte só entrou em coma, não morreu. Em 1973, alguns estados conservadores reescreveram suas leis, para restringir a pena de morte a casos em que os promotores pudessem provar pelo menos um de seis fatores que justificassem a pena de morte, antes que ela fosse aplicada. Assim, não seria mais aplicada arbitrariamente.
Porém, em 1976, a Suprema Corte reviveu a pena de morte. No processo Gregg versus Georgia, a corte seguiu essa tendência conservadora. Decidiu que os legislativos estaduais podiam minimizar os riscos de execuções de forma arbitrária e caprichosa, especificando circunstâncias agravantes que pudessem justificá-las.
Nos anos seguintes, os estados pró-pena de morte aumentaram a lista de fatores agravantes, para facilitar as execuções. Arizona, por exemplo, aumentou a lista de seis fatores para 14. Assim, 99% dos réus condenados por homicídio de primeiro grau passaram a ser sentenciados à pena de morte. A punição, que poderia até ser cruel, deixou de ser incomum. Escreveu-se o roteiro Pena de Morte – o Retorno.
Mas a pena de morte pode ter uma morte lenta nos EUA, o único país ocidental que ainda a aplica (no total, 57 países adotam tal punição). Dos 50 estados americanos, 19 aboliram a pena de morte totalmente; quatro estados “suspenderam” a pena de morte; 11 estados mantêm a pena de morte em seus livros, mas não a aplicam há mais de uma década.
De acordo com o jornal The Washington Post, a cada ano a pena de morte encolhe mais um pouco, embora sua aplicação continue arbitrária. As condenações à pena de morte declinaram mais da metade apenas nos últimos cinco anos. As execuções caíram de 98 em 1999 para 20 em 2016. Mesmo em estados em que a pena de morte é legal, alguns condados não a adotam.
Alegações contra a pena de morte
A pena de morte só deveria ser aplicada ao “pior dos piores”, segundo a doutrina. Mas é aplicada arbitrariamente. Seria inconstitucional, porque é uma punição cruel e incomum. E viola a dignidade humana. Nos estados, é aplicada em casos de homicídio com agravantes. E cada estado tem leis diferentes.
Em nível federal, tal pena é aplicada em crimes contra o estado, entre eles traição, espionagem, tráfico de drogas em grande escala, sequestro de avião e outros crimes graves previstos em leis federais. Alguns estados também aplicam a pena de morte por crimes contra o estado.
A pena de morte é racista. Pessoas negras que matam pessoas brancas são mais condenadas à pena de morte do que brancos que matam negros. E é inconsistente geograficamente, não só entre estados, mas entre condados em um mesmo estado. Um condado pode ter um número expressivo de execuções e o condado vizinhos, nenhuma.
Além disso, a condenação de inocentes à pena de morte ocorre com alguma frequência. Nos últimos anos, 160 prisioneiros foram libertados, depois de passar anos no corredor da morte, porque novas provas (incluindo exames de DNA) comprovaram sua inocência.
Um estudo da Academia Nacional de Ciências concluiu que quatro pessoas em 100 condenadas à pena de morte são inocentes. Considerando que a aplicação da pena de morte a uma pessoa em mil seria inaceitável, o uso contínuo da pena de morte mina a confiança do público no sistema de justiça criminal, dizem os opositores.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 7 de novembro de 2017.
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