A compartimentalização dos saberes fez história e, ao mesmo tempo, muitos estragos no sistema de Justiça criminal. Essa metodologia de isolamento científico entre as disciplinas ou, então, de preponderância dos ramos técnicos ou dogmáticos em relação aos conhecimentos rotulados de propedêuticos ainda é uma triste realidade no âmbito das “ciências criminais”.
Ocorre, entretanto, que não se pode (ou melhor, não se deveria) pensar o sistema processual penal e o (sub)campo investigativo criminal dissociado do saber criminológico (crítico).
De antemão, registre-se o básico: não é possível falar em a criminologia. Existem diversas (ou diferentes) criminologias, cada qual com os seus fundamentos políticos e abordagens teóricas sobre o crime e o criminoso ou, então, sobre os processos de criminalização e o criminalizado.
Conforme Salo de Carvalho, há uma “pluralidade de discursos sobre o crime, o criminoso, a vítima, a criminalidade, os processos de criminalização e as violências institucionais produzidas pelo sistema penal”[1].
Nesse sentido, a partir dos critérios diferenciadores etiológico e labeling, inclusive nas concepções micro e macroestruturantes, Peter-Alexis Albrecht apresenta a seguinte divisão sistemática a respeito dos discursos ou das teorias criminológicas sobre a criminalidade: a) etiológico-individualizante; b) etiológico sócio-estrutural; c) labeling; e d) labeling teórico-socialmente orientado[2]. Outras classificações, ainda, poderiam ser mencionadas.
De modo reducionista, tem-se que a criminologia tradicional, de cunho etiológico, enxerga a criminalidade enquanto realidade ontológica e explicável de modo causal, enquanto que a criminologia crítica parte do paradigma do controle (ou da reação) social.
A criminologia tradicional foi (e ainda é) importante instrumento de “explicação” da criminalidade e, portanto, de reforço do caráter eficientista da intervenção penal. Foi concebida como um saber instrumental e auxiliar para a aplicação do Direito Penal no “combate à criminalidade (e ao criminoso)”. Dizia-se que era preciso conhecer a origem do crime para conseguir extirpá-lo do meio social.
A virada crítica, no entanto, que marca a década de 1970, pretende superar todo esse conhecimento científico construído e alimentado para o fortalecimento da penalização. Sustenta que a criminologia não deve ser um saber justificante da dogmática jurídico-penal, e sim desvelador do funcionamento concreto do sistema criminal. O seu objetivo não corresponde à histórica racionalização punitiva, e sim à problematização desse tipo de saber/poder construído e operado por meio das “ciências criminais”[3].
Muito embora não se tenha aqui pretensão de aprofundamento a respeito do assunto tampouco espaço suficiente para especificar as características de cada uma dessas vertentes criminológicas, imperioso registrar que essa passagem da criminologia liberal para a criminologia crítica implicou: a) o deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas, estruturais e funcionais, que se acham na origem dos fenômenos de desvio; e b) o deslocamento do interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e institucionais mediante os quais se criam e se aplicam definições de desvio e de criminalidade, bem como se realizam processos de criminalização[4].
Sublinhe-se que a denúncia incessante da criminologia crítica a respeito, por exemplo, da seletividade e da estigmatização que percorre os três momentos funcionais do sistema penal — produção de normas (criminalização primária), aplicação das normas/investigação preliminar e processo penal (criminalização secundária) e execução das penas ou medidas de segurança[5] — seria fundamental para uma compreensão e tentativa real de minimização da dor gerada no e pelo sistema penal.
É justamente esse tipo de conhecimento criminológico — problematizador da dogmática e facilitador da política criminal na direção de alternativas possíveis à redução dos danos causados pelas violências privadas (delito) e públicas (abuso dos poderes penais)[6] — que nos falta.
Sem qualquer exagero, é preciso considerar de fato a necessidade de ruptura com as permanências criminológicas positivistas enquanto ponto central à transformação da realidade experimentada atualmente no campo da Justiça criminal. Somente um tipo de pensamento crítico em torno do controle social do desvio e da criminalidade seria capaz de diminuir o histórico autoritarismo do sistema penal em ambientes formalmente democráticos[7].
Em suma, acredita-se, de modo sincero, que apenas por meio de uma profunda denúncia criminológica (crítica) seria possível estabelecer outra sistemática de Justiça criminal, que estivesse menos comprometida com o ilusório e maniqueísta discurso de “extermínio do crime” e mais preocupada com a preservação das vítimas de todas as formas de violência.
[2] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro/Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2010, pp. 40-59.
[3] BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 23: “Assim, a criminologia e a política criminal surgem como eixo específico de racionalização, um saber/poder a serviço da acumulação de capital”.
[4] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:introdução à sociologia do Direito Penal. Colaboração de Emilio Santoro. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013, pp. 159, 160.
[5] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:introdução à sociologia do Direito Penal. Colaboração de Emilio Santoro. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 6 ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013, p. 161.
[7] FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. 01 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 385 - 386.
Leonardo Marcondes Machado é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.
Revista Consultor Jurídico, 14 de novembro de 2017.
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