Embora a Constituição Federal
determine que homens e mulheres sejam iguais e proíba discriminações, essa
igualdade é ainda um ideal a ser alcançado.
Por este motivo, creio que o
tema “igualdade dos sexos na Justiça” mereça ser discutido, principalmente nas
Faculdades de Direito.
Uma forma didática de tratar
desta matéria é promover o debate a partir de casos judiciais.
Ofereço com esta finalidade
alguns casos com os quais me defrontei, no exercício da magistratura.
A primeira sentença que
desejo registrar aqui foi a que proferi acolhendo o motivo de relevante valor
moral no ato de um acusado que feriu o agressor de sua irmã Ana Célia, uma
prostituta. Prostituta existe para ser abusada, não tem direito de ser
socorrida por um irmão? É óbvio que tem esse direito, é pessoa, não é coisa.
Numa segunda decisão, absolvi
Jovelina que matou seu companheiro. A vítima jogou água quente e um vidro de
pimenta na desditosa mulher e depois passou a bater na companheira com uma
panela. Reconheci a excludente de legítima defesa no ato praticado e proferi
absolvição sumária, livrando Jovelina até mesmo da humilhação do julgamento
perante o Tribunal do Júri. O Ministério Público recorreu, como era de seu
dever na hipótese, mas o Tribunal de Justiça confirmou a sentença absolutória
de primeiro grau.
Num terceiro decisório,
excluí das malhas do processo penal a pessoa de Marlene, mãe de um menor
envolvido num atropelamento.
Argumentei: “Sendo a responsabilidade penal, de natureza pessoal, é
intransferível. A condição de inimputável do agente – um menor – não autoriza a
chamada, ao processo, da mãe do mesmo. Quanto à responsabilidade civil, é outra
matéria, a ser apreciada pelo juízo competente.”
Num quarto caso, fundamentei
no zelo com que Isabel cuidava de Moacir, seu irmão, doente mental, a razão
para libertar Moacir de um processo. Este segurou o braço de uma criança, mas
nada lhe fez. A menina ficou assustada, ou porque estranhou a fisionomia do
paciente, ou porque conhecia sua condição de insano. Na minha presença, Isabel
disse que seu irmão não oferecia qualquer perigo e que ela, que sempre estava
atenta aos passos dele, redobraria sua vigilância depois do fato que havia
acontecido.
Numa outra decisão assegurei
visita íntima de companheiro a uma presa provisória que estava sob minha
jurisdição. Não me cabia disciplinar a matéria, em caráter geral, pois juiz das
execuções criminais não era, mas tinha competência legal para decidir sobre o
pleito de uma acusada que estava submetida a processo sob meus cuidados.
Argumentei, no meu despacho, que a prisão não subtraía da requerente o seu
direito ao exercício da sexualidade. Quanto a engravidar, somente à presa
competia decidir sobre este tema. Não tinha razão jurídica o óbice que se
opunha às visitas íntimas justamente sob a alegação daquilo que indevidamente
se chamava de “risco de gravidez”. Gravidez não é risco, é um ato livre. Aproveitei
a oportunidade do despacho para fustigar o sistema, observando que a mulher não
é “sujeito” na estrutura do sistema carcerário, como não é “sujeito” na
arquitetura social. A presa tem o direito de “ser mulher” em toda a sua
extensão. Finalmente, abrangendo homens e mulheres, fechei meu despacho
afirmando que o direito a visita íntima é importante para a reabilitação do
encarcerado, pois conduz ao sentimento de pertença ao gênero humano.
Finalmente devo citar, não
uma sentença, mas um procedimento adotado em diversas comarcas do interior do
meu Estado. Para que esse procedimento seja entendido é preciso dizer que
ocorreu no final da década de 1960 e princípios da década de 1970.
Encontrei, em diversas
comarcas do interior do Espírito Santo, listas de jurados com uma presença
inexpressiva de mulheres. Nessa época, essa discriminação da mulher não ocorria
apenas em terras capixabas, o que podia ser constatado pela simples leitura dos
jornais. Em tal situação, os tribunais do júri eram, na verdade, tribunais
masculinos. Com habilidade, não impondo simplesmente (com invocação do
argumento de autoridade), mas conversando, conseguimos alterar substancialmente
a distorção, nas comarcas em que essa distorção estava aparecendo.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado
aposentado, é Professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo,
palestrante e escritor. Acaba de publicar Curso de
Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).
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