João Baptista Herkenhoff
A memória é dos maiores dons com que fomos largamente aquinhoados. Coloco na frase o advérbio largamente porque não apenas os seres humanos possuem memória. Também os animais memorizam lugares e pessoas. São bem conhecidas algumas histórias que revelam como alguns cães foram capazes de guardar caminhos e atalhos buscando socorro para salvar a vida de seus donos.
A memória expande-se em várias dimensões: memórias pessoais, memórias familiares, memórias de cidades, memórias de regiões ou Estados, memórias de países.
Creio que não nos deve constranger o fato de prestar depoimento para a construção da memória pessoal e familiar. Nisto que oferecemos dados, para que se conheça essa memória restrita, contribuímos também para que se construa a memória mais ampla da cidade e do Estado porque a vida do indivíduo e de sua família está inserida na vida da comunidade.
Com simplicidade dou esse testemunho.
No dia 20 de agosto de 2008 recebi dois prêmios do Governo do Espírito Santo: o Prêmio Dom Luís Fernandes e a Ordem do Mérito Jerônimo Monteiro. Nenhuma das duas láureas pertence a mim individualmente. Tentei provar isso no discurso proferido naquela oportunidade.
Até onde a memória e alguns apontamentos escritos me socorrem, vou tentar reconstituir mais ou menos tudo o que disse.
No decreto através do qual me outorgou a Comenda Jerônimo Monteiro, o Senhor Governador justificou o ato com referências a meu trabalho como juiz, professor, escritor, cidadão, militante na defesa dos direitos da pessoa humana sem distinção de raça, classe, religião, sexo ou qualquer outra.
Disse então ao Governador Paulo Hartung:
Ora, Senhor Governador, se Vossa Excelência tem parcial razão nas justificativas – apenas exagerou no tom – os méritos encontrados não me pertencem solitariamente.
Começo por lembrar aquela casa da Rua Vinte e Cinco de Março, em Cachoeiro de Itapemirim, casa dos meus pais, casa depois de minhas irmãs Mariazinha e Julitinha. Quantas vezes, não o atual Governador Paulo Hartung, mas o jovem acadêmico Paulo Hartung tomou um cafezinho naquela casa. Lembra-se do cafezinho, quase sempre às nove e meia da manhã? A mesa daquela casa era franqueada a todos, sem distinção. Os pobres não recebiam o pão na porta da casa. Os pobres entravam na casa, sentavam-se à mesa ao lado dos familiares. Se, como Vossa Excelência diz no decreto, eu defendi a dignidade da pessoa humana, acima de raça, cor, classe social, foi naquela casa que eu aprendi isso, com meu pai Alfredo, com minha mãe Aurora e com os irmãos mais velhos, pois eu era o caçula. Naquela casa eu aprendi que todos somos iguais, não apenas perante a lei, como diz a Constituição, porém iguais porque filhos do mesmo Deus, portadores da mesma alma imortal. E se desigualdade existe, superiores são os pobres porque neles estão impressas as chagas do Crucificado.
Nenhum de nós nasce de geração espontânea. De nossos troncos recebemos a herança espiritual. De minha parte, tenho troncos germânicos e troncos nordestinos.
Reverencio esses troncos: os imigrantes alemães Mathias Herkenhoff e Emma Kölhbach Herkenhoff, meus avós da linha paterna. Daquele tronco nasceu meu pai Alfredo, que fundou a primeira escola noturna de Cachoeiro de Itapemirim, escola destinada aos trabalhadores, àqueles que não podiam estudar no colégio público, que naquela época só funcionava no turno da manhã. Daquele tronco nasceu meu tio Arno, um comerciante com idéias pioneiras, basta dizer que sua loja de brinquedos tinha um jornal, escrito por Newton Braga, o grande poeta de minha terra natal.
Na linha materna meus avós foram Pedro Estellita Carneiro Lins e Francisca Sampaio Lins, provenientes do Nordeste, mas que, na perene busca do pão a que se refere o Padre Vieira, foram para Santa Catarina, onde meu avô veio a ser juiz. Quando criança, eu era seu secretário. Aposentado, ele gostava de escrever. Os temas de seus livros eram sempre a Justiça e a Paz. Ele redigia os originais usando pena de pássaro, e pedia que eu os datilografasse. Como eu era muito bom aluno de Português, percebia seus “cochilos” gramaticais. Mas quando é que, naquele tempo, neto corrigia avô. Batia à máquina do jeito que ele tinha escrito. Quando ele via o texto bonitinho batido à máquina, dizia com a maior falta de cerimônia: João, meu neto, você bateu errado aqui. Será preciso datilografar tudo novamente. E eu, naturalmente sem reclamar, datilografava tudo, pois não era como hoje quando, no computador, podemos intercalar palavras, emendar etc. Esse avô velhinho acreditava na Justiça e amava a Paz. Eu o contemplava com admiração e ternura. Foi esse avô que me inoculou no espírito a paixão pela Justiça, foi arrastado pelo exemplo silencioso dele que eu me tornei juiz. Depois um tio – Augusto Lins – em cuja casa eu ficava hospedado quando fazia o Curso de Direito, confirmou minha opção. Desse tio, que era advogado, eu aprendi, não apenas lições jurídicas, mas lições de humanismo e de vida. Quando uma pessoa humilde, conversando com ele, cometia erros de linguagem, ele, na resposta, cometia os mesmos erros. Perguntei certo dia se era por distração que ele repetia os erros. Ele respondeu que fazia isso para que o interlocutor não se sentisse humilhado com a reprodução correta de palavras faladas erradamente.
Por essas razões, eu recebo a Comenda Jerônimo Monteiro como homenagem a todos os membros da família Herkenhoff e da família Estellita Lins, eu a recebo como homenagem aos meus ancestrais alemães e nordestinos e àqueles que, nas gerações subsequentes, mantiveram e ainda mantêm acesa a chama.
Falemos agora do Prêmio Dom Luís, que estou recebendo juntamente com duas instituições da maior importância no Espírito Santo: o Fórum Permanente da Bacia do Rio Aribiri e o Movimento Educacional e Promocional do Espírito Santo (MEPES). Eu sei, Senhor Governador, que a mais alta condecoração que o Governo do Estado pode conceder é a Ordem do Mérito Jerônimo Monteiro, no grau de Comendador. Mas se Vossa Excelência me perguntar qual a homenagem que mais me toca o coração, eu respondo que não é esta de ser Comendador da Ordem do Mérito Jerônimo Monteiro, que tanto me honra, mas sim detentor do Prêmio que tem o nome de Dom Luís Gonzaga Fernandes. E isto, Senhor Governador, por uma razão extremamente pessoal. Eu recebi na infância educação religiosa, como toda a minha família. Uma educação religiosa condizente com a época, muito antes do Concílio Vaticano, muito antes de João XXIII, num tempo em que a Igreja Católica supunha deter o monopólio da verdade, uma pretensão vaidosa e nada teológica, pois que nenhum credo é dono da verdade, a verdade é um dom de Deus e Deus infunde essa verdade no coração humano, sem barreiras nacionais, sem barreiras raciais ou culturais, sem barreiras confessionais. Não abdiquei do credo que aprendi na infância, mas me convenci de que esse credo impunha uma abertura ao Ecumenismo e opções no campo social. Dom Luís foi o principal artífice desta minha conversão. Foi Dom Luís que me convocou para o mais sério compromisso de minha vida: lutar pela Justiça na Comissão “Justiça e Paz” da Arquidiocese de Vitória. Com uma incrível pedagogia, ele foi me cativando pouco a pouco, dando-me para ler, a partir do início de 1976, certos escritos que me preparavam para a missão para a qual ele me escolheu. Fui o primeiro no chamamento. A segunda convocação recaiu sobre Vera Maria Simoni Nacif, filha do apóstolo Amaro Simoni. Depois vieram os outros: Rogério Coelho Vello, Antônio César Menezes Penedo,Dante Pancini Pola, Sandro Chamon do Carmo, Ewerton Montenegro Guimarães, Pastor Claude Labrunie, Pastor Jaime Wright, Pastor Joaquim Beato, Irmã Heloísa Maria Rodrigues da Cunha, Ricardo Santos, o então Padre Geraldo Lyrio Rocha, hoje Bispo, Nestor Cinelli, Laurita Schneider, Marialva Vello, Amélia Ferreira Rosa, Auta Trindade, Maria Helena Teixeira de Siqueira, Ana Rita Sgario, Marlene Cararo e outros não mencionados. Não estou pretendendo que esta lista seja exaustiva, pois não é.
Recebo o Prêmio Dom Luís em nome de todos. Recebo como representante de todos. Este prêmio não me pertence. Pertence a toda a equipe. Nenhum de nós teria condições de enfrentar sozinho as pelejas da época. Estávamos em plena ditadura. Telefonemas anônimos, ameaças pessoais, ameaça de sequestro de filho, bomba de efeito moral que explodiu no Colégio do Carmo, processos políticos secretos, chamamento a tribunal, registros nos órgãos de segurança, marginalização, incompreensão, anátemas. Nós nos apoiávamos, uns nos outros e em Deus. Só assim foi possível superar os perigos.
Devo dividir o prêmio com todos estes e depois devo fazer uma outra divisão. A fração, que me toca, devo partilhar com Teresinha, minha mulher, companheira de todos os momentos, ela que também sofreu, pessoalmente, as consequências da arriscada opção.
Agradeço a presença de todos, os abraços recebidos, as palavras segredadas, os olhares, o carinho. Nas emoções deste momento, nomes deixarão de ser mencionados, palavras ficarão na garganta. Leiam meu rosto, queridos amigos. Minha face dirá o que as palavras deixarem de traduzir. Muito obrigado!
João Baptista Herkenhoff é magistrado (aposentado) e professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br
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