A mera intuição sobre eventual traficância de entorpecentes, embora autorize a abordagem policial em via pública para averiguação, não é, isoladamente, justa causa para a polícia entrar na casa do suspeito sem o consentimento dele. Esse foi o entendimento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça para manter a absolvição de uma mulher por falta de provas. Ela foi condenada em primeiro grau por tráfico de drogas.
Por unanimidade, os ministros seguiram o relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, para quem a motivação para a invasão domiciliar sem determinação judicial deve ser comprovada minimamente, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral.
Segundo ele, havia somente vagas suspeitas sobre eventual tráfico de drogas praticado pela ré, em razão, única e exclusivamente, de informações de que haveria venda de entorpecentes na rua onde morava. “Aliás, o tráfico poderia muito bem estar sendo praticado inclusive por outro vizinho ou qualquer outro morador”, afirmou o ministro.
Schietti diz no voto que a polícia não fez prévia investigação para verificar a eventual veracidade das informações que recebeu. “Ademais, o simples fato de haver um casal na porta de sua residência não pode, por si só, ser tratado como movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas.”
O relator destaca ainda que, na revista pessoal, os policiais militares não encontraram nada de ilícito com ela, apenas R$ 93. Os PMs só acharam 11 pedras de crack quando invadiram a residência dela.
Citando a Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada, de origem norte-americana, consagrada no artigo 5º da Constituição brasileira, o ministro manteve a absolvição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por entender ser nula a prova derivada de conduta ilícita. De acordo com o voto, é evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio de forma ilícita e a apreensão de drogas.
Foi contra a decisão do TJ-RS que o Ministério Público gaúcho foi ao STJ. O MP defendia que o tráfico de drogas é crime de caráter permanente e que não havia exigência de ordem judicial para entrar na casa da mulher, que foi defendida pela Defensoria Público do Rio Grande do Sul.
“A complexa e sofrida realidade social brasileira sujeita as forças policiais a situações de risco e à necessidade de tomada urgente de decisões no desempenho de suas relevantes funções, o que há de ser considerado quando, no conforto de nossos gabinetes, realizamos os juízes o controle posterior das ações policiais. Mas não se há de desconsiderar, por outra ótica, que ocasionalmente a ação policial submete pessoas a situações abusivas e arbitrárias, especialmente as que habitam comunidades socialmente vulneráveis e de baixa renda”, disse Schietti.
Minimização de abusos
O ministro sugeriu em voto condições para diminuir o risco de abusos policiais em invasão de domicílios, sem autorização judicial, por causa de suposto flagrante por crime de tráfico de drogas. Ele afirma que isso é importante para assegurar manifestação da vontade do envolvido e afastar pressão psicológica que o impeça de exercer seus direitos constitucionais.
Para o ministro, apesar da decisão do STF reconhecendo a validade da entrada em residências sem mandado, inclusive durante a noite, quando “amparada em fundadas razões”, ainda não existe orientação jurisprudencial nem leis ou regramentos administrativos para minimizar a prática “tão comum em comunidades de baixa renda, em que casas são ocasionalmente invadidas sem o amparo do Direito”.
Citando exemplos de decisões do Tribunal Supremo da Espanha, ele fala em outorga “consciente e livre” da autorização para o ingresso no domicílio, que pressupõe ausência de violência ou qualquer intimidação por parte da polícia. Para o ministro, a jurisprudência espanhola expressamente diz que, se o consentimento vier de pessoa já presa ou conduzida, a anuência do preso somente será válida caso ocorra com a assistência de um advogado.
Schietti defende também o requisito estabelecido pela corte do país europeu que regula a situação na qual diversas pessoas sejam atingidas pela violação do domicílio. Nesses casos, explica, a jurisprudência reconhece a autorização de uma pessoa, desde que seja cotitular do direito protegido. “Assim, não se poderia validar o ingresso policial em uma residência se quem consentiu na entrada dos agentes da segurança pública era, por exemplo, pessoa não residente, mas apenas frequentadora do local”, afirmou.
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REsp 1.558.004
Marcelo Galli é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2017.
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