segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Do direito penal-serpente ao direito penal-águia


Estará o direito penal deixando de ser serpente para se tornar águia?
Estará deixando de rastejar como serpente, inofensiva a botas, para voar alto, com olhos e garras de águia, alcançando também ricos, e não somente pobres, também poderosos, e não somente despossuídos de poder?
Porque na forma hispânica de se dizer, já se disse: “La ley es como la serpiente, sólo pica a los descalzos”.
Mas foi somente o direito penal alçar os primeiros voos, levando na bagagem técnicas de persecução atualizadas (à atualização do crime), principalmente a colaboração premiada, para começarem as reclamações: ‘Os meus iguais, não. Os meus amigos, não. Eu mesmo, não’. E continuarem: ‘Inadmissível admitir-se, no processo penal, a traição’. Para, por fim, replicarem à exaustão o ponto medular da queixa: ‘E a ética?’.
Com Evandro Agazzi, filósofo italiano, que recentemente esteve no Rio de Janeiro, para ser homenageado pela Academia Brasileira de Filosofia, pode-se afirmar: “Nenhum princípio ético ou moral pode ser absoluto” (O Globo, 20.7.2017, pg. 2). E aqui se acrescenta: nem mesmo os princípios éticos ou morais que reprovam a mentira, a violência e a traição.
Em A Conquista da Felicidade (Lisboa: Guimarães Editores, 1997, pg. 95), Bertrand Russell entende — com razão — que, em certas circunstâncias, a mentira deixa de ser reprovável. E exemplifica: “Não nego que há demasiada mentira no mundo e que todos seríamos melhores se houvesse mais verdade, mas nego, como qualquer pessoa razoável o pode negar, que a mentira não seja justificável em certas circunstâncias. Sucedeu-me uma vez, ao passear no campo, ver uma raposa extenuada, no último grau do esgotamento, esforçar-se ainda por correr. Alguns minutos mais tarde chegaram os caçadores. Perguntaram-me se tinha visto a raposa e respondi-lhes que sim. Perguntaram-me que caminho ela tinha tomado e menti-lhes. Penso que não teria sido um homem melhor se lhes dissesse a verdade”.
Ora, se se pode mentir, para salvar uma raposa, o que dizer da mentira para salvar a própria pele? É o caso do réu que, em juízo, falseia a verdade — sem contudo incorrer em conduta criminosa, como, por exemplo, as dos artigos 339 (Denunciação caluniosa) ou 341 (Autoacusação falsa), ambos do Código Penal — para fugir aos “braços de estivador” (Chico Buarque) do direito penal.
Não se trata, no entanto, de um direito do réu à mentira. Ensina Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, vol I. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1997, pg. 277), com pertinência, que se trata “simplesmente da não punição da mentira”, mesmo porque agride a natureza humana o exigir-se de alguém que, sob pena de sanção penal autônoma ou de reflexo na pena do crime pelo qual é processado, contribua para a própria incriminação, sabendo, de antemão, que o cárcere, em sua configuração atual, provavelmente lhe vai tirar a dignidade e, até mesmo, a vida.
Não há, para o réu, o direito de mentir, assim como não há, para o suicida, o direito de suicidar-se, e, para os que se prostituem, o direito de se prostituir. O que há, de fato, em tais casos, é simples tolerância jurídico-penal.
Nelson Rodrigues — “nosso maior filósofo da moral”, no dizer de Luiz Felipe Pondé — não clamava: “mintam, mintam por misericórdia!”? (Luiz Felipe Pondé. Uma Filosofia da MentiraFolha de S. Paulo, 17.4.2017, pg. C6). Ademais, antes dos “significativos avanços da última década na área da oncologia”, falava-se, sim, em “mentira piedosa no diagnóstico do câncer” (Julio Abramczyk – Plantão Médico. Folha de S. Paulo, 19.8.2017, pg. B7).
Também o recurso à violência não deve ser — sempre — reprovado. Não é o próprio direito penal, em si mesmo, uma violência? Legitimada pelo Estado, mas uma violência, consistente na imposição da privação da liberdade ao ser humano julgado criminoso. O mesmo violento direito penal não possibilita, ainda, a violência da legítima defesa e do estado de necessidade?
Por fim, a traição. É, sempre e em todas as circunstâncias, um mal? A resposta cobra o complemento da pergunta: um mal para quem?
A tão criticada, nos dias de hoje, colaboração premiada — mormente por aqueles que buscam disfarçar seus reais interesses — deve, no entanto, ser questionada à luz do interesse da sociedade, para dela se dizer, se um bem ou um mal.
Aquele que trai o crime — não importam os motivos, se altruísticos ou egoísticos — finda, ou não, por contribuir para o bem da sociedade, na medida em que possibilita a punição de fatos e agentes criminosos? Norberto Bobbio, citado por Frederico Valdez Pereira (Delação Premiada. 3a. ed. Curitiba: Juruá, 2016, pg. 33), considera “a sanção negativa como um 'male per male'; e a sanção positiva ou prêmio como um 'bene per bene'”. Assim, apresentam-se crime e pena, na mesma relação da colaboração do criminoso — arrependido ou receoso da pena — com o correlato prêmio.
Neste passo, ao mal (causado à sociedade) do crime, corresponde o mal (causado ao criminoso) da pena, assim como ao bem (causado à sociedade) da colaboração — que possibilita o esquadrinhamento de crimes e a punição de criminosos — corresponde o bem (causado ao colaborador) do prêmio, que pode ser a redução da pena ou, mesmo, o perdão, no molde da régua legal: quanto maior o bem (para a sociedade), maior o prêmio (para o colaborador).
Em si mesma, abstraída de suas circunstâncias e consequências, a traição — assim como a violência e a mentira — não é um mal ou um bem. Se Judas Iscariotes, na última hora, houvesse se arrependido de trair Cristo, vindo, então, a trair os que lhe subornaram para entregar Jesus — abstraídos os prejuízos aos desígnios de Deus e à caminhada cristã — essa tal traição à traição seria verdadeiramente um mal?
“Imoral”, afirmou em entrevista José Lugaz (Folha de S. Paulo, 28.05.2017, pg. A15), procurador peruano e presidente da Transparência Internacional, organização de combate à corrupção, “não é negociar com corruptos; é não desvendar crimes”. Não é, por certo, imoral, e, muito menos, ilegal, por força da legislação de regência.
O direito penal-serpente devota temor e subserviência aos que têm “dinheiro no banco” ou “parentes importantes” (Belchior). No artigo Desigualdade Judiciária (Folha de S. Paulo, 5.8.2017, pg. C12), o médico Drauzio Varella relata exemplos de pronta atuação e de reprovável omissão desse mesmo direito penal-serpente, em aula por ele ministrada sobre saúde, para detentas da Penitenciária Feminina da cidade de São Paulo.
No artigo, pontuou Varella: “No final, quando me coloquei à disposição para perguntas, uma senhora que aparentava 50 anos ficou em pé: — Fui presa em flagrante na portaria de uma cadeia, em Guarulhos, levando para o meu marido 55 gramas de cocaína. Eu sofro de depressão crônica, me trato no Hospital das Clínicas, tomo remédio tarja preta e já tentei me matar duas vezes. E o filho dessa desembargadora? Cento e vinte quilos, fora as balas, doutor!”, havendo, perplexo, arrematado o articulista: “Em meu lugar, o que você responderia, leitor?”. A indignação da detenta — possivelmente chantageada, pelo marido, “com súplicas de ajuda, para não morrer nas mãos de assassinos impiedosos” — revela, às escâncaras, a opção do sistema jurídico por um direito penal-serpente, em detrimento de um direito penal-águia. O primeiro, tendenciosamente seletivo; o segundo, democraticamente atuante.
É, também, o direito penal-serpente que, com sua atuação seletiva centrada em pessoas, e não em fatos, proporciona textos como o de Roberto Pompeu de Toledo, intitulado Minha Doce Prisão (Revista Veja, 26.7.2017, pg. 110), em que o autor qualifica a prisão domiciliar como verdadeiro “mimo”, a par de informar que, no caso de um dos contemplados, a esposa deste mesmo contemplado, no dia em que se iniciaria a “doce prisão domiciliar”, “foi flagrada”, por um jornal da região, “a comprar uísque, vinhos e queijos num supermercado. Havia o que comemorar”.
Mais adequado, continua Roberto Pompeu de Toledo, no mesmo texto, é que “os premiados com a prisão domiciliar a cumpram num conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida”, de preferência em região de muitos “tiroteios na madrugada”, para que o contemplado, sonolento, possa escutar a linguagem dos tiros a dizer: “Acorda! Este é o Brasil que você ajudou a construir”.
Como a morte, democrática, que a seu tempo a todos alcança — ricos e pobres, poderosos ou não — somente temendo a Deus, o democrático direito penal-águia, perseguindo, e se o caso punindo, fatos, e não pessoas, deve prestar reverência e temor somente a Constituição, que, no mundo jurídico, paira acima de tudo e de todos.
Que, em breve ou em futuro próximo, assim seja!
 é procurador regional da República, mestre em Ciências Criminais e professor do UniCEUB. Autor dos livros Verdade Processual Penal (Juruá) e Direito Penal na Literatura (Núria Fabris).
Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2017.

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