sábado, 16 de janeiro de 2016

Audiências de custódia vão contribuir para a redução da tortura


Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. Bertold Brecht
Entra em vigor no primeiro dia de fevereiro a Resolução 213, do Conselho Nacional de Justiça, que regulamenta as audiências de custódia, suprindo, provisoriamente, a ausência de lei federal que dê concretude ao direito do preso a ser conduzido sem demora à presença da autoridade judiciária, reconhecido expressamente pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), os quais integram nosso direito positivo (Decretos 592/92 e 678/92, respectivamente).
A regulamentação é salutar, a despeito de algumas críticas e resistências, fincadas quer nas dificuldades de implementação dessas audiências, quer na alegada desnecessidade de tal iniciativa para a preservação dos direitos do preso.
Em um dos consideranda da Resolução afirma-se que “a condução imediata da pessoa presa à autoridade judicial é o meio mais eficaz para prevenir e reprimir a prática de tortura no momento da prisão, assegurando, portanto, o direito à integridade física e psicológica das pessoas submetidas à custódia estatal, previsto no artigo 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no artigo 2.1 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes;”
Assim penso.
Em novembro de 2004, quando ocupava a Chefia do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, encaminhei à Presidência do TJDFT (Ofício 772 /GPJ/MPDFT) proposta de atuação institucional conjunta contra a tortura, de que participaria também a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção-DF. O objetivo era, declaradamente, instituir um plantão judiciário que pudesse tornar efetiva a norma convencional que determinava a condução do preso sem demora à presença de um juiz. O pleito não foi naquele momento atendido, mas o tempo cuidou do destino.
A meu sentir, a condução do preso à presença de um juiz, poucas horas após sua detenção, até mais do que um meio de controle da legalidade da prisão e de averiguação de sua necessidade, é instrumento de fundamental importância no enfrentamento da tortura, chaga histórica de nossa tradição autoritária.
Muito embora signatário, desde fevereiro de 1991, da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, e a despeito de abrigar, em seu ordenamento jurídico, inúmeros dispositivos de repúdio a essas práticas medievais, o Brasil, desditosamente, ainda não foi capaz de ostentar uma realidade minimamente aceitável no trato do problema da tortura.
O problema, por óbvio, não é meramente jurídico. Antes, é cultural. Pesquisas variadas indicam que boa parte da população ainda cultiva a ideia de que direitos humanos são direitos outorgados apenas aos “humanos direitos”, o que se explica, possivelmente, por hábitos adquiridos desde a formação colonial do povo brasileiro, sempre tolerante a que criminosos sejam tratados e punidos com suplícios ou sofrimento físico e moral além do que é legalmente previsto como sanção para o ilícito penal cometido, ou como meio para revelar a pretendida verdade.
Certamente esse grave problema não há de ser resolvido por medidas unilaterais e simplistas e muito menos se acredita que, em um passe de mágica, seja possível, definitivamente, debelar esse cancro que se enraíza, há séculos, em nosso cotidiano. Entrementes, pense-se em instigar, pela educação ética, uma nova cultura jurídica que possa combinar a eficiência no combate ao crime com o respeito à dignidade da pessoa humana, mercê de investimentos maciços no recrutamento e na formação do policial; pense-se também em aportes de maiores recursos tendentes a aperfeiçoar e a modernizar a polícia técnica, de sorte a não se trabalhar mais com a lógica da confissão para a elucidação de crimes; pense-se, ainda, na reforma, estrutural e funcional, dos estabelecimentos prisionais, a exemplo das penitenciárias coadministradas pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), nas quais a concepção arquitetônica, as rotinas desmilitarizadas, a participação do preso na manutenção do presídio e o envolvimento da comunidade criam um verdadeiro espaço de cidadania, apto a estimular o respeito aos direitos humanos e a ilidir sentimentos de animosidade entre o Estado, a sociedade civil e o indivíduo.
A audiência de custódia, a seu turno, irá — tenho firme convicção — contribuir substancialmente para a modificação desse quadro, em dois flancos.
O primeiro deles é a redução de eventuais excessos praticados no momento da prisão, da custódia ou do transporte do preso à presença da autoridade judiciária, hipóteses em que os agentes do estado responsáveis pelo conduzido deverão prestar contas de sinais de violência física que venham a ocasionalmente ser constatados na averiguação judicial. Daí a razão pela qual prevê o artigo 4º da Resolução que a audiência de custódia será realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a pessoa detida não possua defensor constituído no momento da lavratura do flagrante, sendo “vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia.” Caberá, em tal momento inicial da persecução penal, perquirir, do preso, “sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis inc. VI do artigo 8º), bem como “verificar se houve a realização de exame de corpo de delito ... (inciso VII)”
O segundo flanco tem efeito prospectivo: ao otimizar — pelo contato pessoal — a avaliação judicial acerca da necessidade de encarceramento provisório do indivíduo, reduzem-se-lhe os riscos de multiplicação dos efeitos deletérios do cárcere, que nem precisam ser enumerados, pois de todos conhecidos, mas que passam, não raras vezes, por variadas formas de tortura, física e moral.
Não se cuida, por óbvio, de satanizar o instituto da prisão cautelar, cuja necessidade, nos limites e nas hipóteses legais, justifica a temporária supressão da liberdade humana. Mas é exatamente pelos conhecidos malefícios que o cárcere — de qualquer natureza — produz, para o indivíduo e para a sociedade, que há de ser ele circunscrito às situações em que medidas cautelares outras, menos gravosas, revelem-se insuficientes e inidôneas para a proteção do interesse processual ou bem da vida sob risco de dano ante a liberdade plena do acautelado.
A audiência de custódia cumpre, ainda, outra finalidade relevantíssima: a de salvaguardar os direitos que acompanham o indivíduo desde o momento em que o Estado intervém em sua esfera de liberdade. Eis por que se dispõe, no artigo 8º da Resolução, que cumprirá à autoridade judicial, como juiz garante: “I – esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial; (...) III – dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio; IV – questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares; V – indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;”
Recordo-me, a esse respeito, de episódio que presenciei, em que um acusado, ao ser interrogado em processo penal por crime de furto, agradeceu, emocionado, a oportunidade de estar diante de um juiz e de um promotor de justiça e de ser ouvido atentamente, com respeito à sua pessoa, situação que até então, disse, em seus tantos anos de desvalia e abandono sociais, jamais recebera de outro agente estatal. Paradoxalmente, é no exercício da pretensão punitiva que o Estado, em muitos casos, se mostra mais próximo do que dele espera o cidadão.
A nova rotina exige, portanto, a adoção de uma postura judicial diferente, em face da qual esses direitos individuais saem do plano formal e escrito — leitura e controle burocrático do auto flagrancial — e se realizam na prática judiciária, ainda que isso implique maiores custos e consuma um tempo maior dos sujeitos processuais. Enfatize-se que, no procedimento corrente nos foros, o réu costuma ter contato pessoal com o juiz meses após sua prisão — por vezes, infelizmente, anos depois — no interrogatório, derradeiro ato de instrução, quando então a pouco mais se destinará a inquirição do que saber a versão do acusado sobre os fatos, para fins de formação do convencimento judicial definitivo.
A propósito, outro importantíssimo regramento vem positivado no inc. VIII e no § 1º do artigo 8º da Resolução, o qual determina que o Juiz, o Ministério Público e o Defensor devem abster-se de formular perguntas ao preso “com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;”
Tal limitação teleológica da inquirição se justifica, plena e afortunadamente, pela opção de não transformar a audiência de custódia em ato instrutório, tal qual ocorre nos poucos países que ainda resistem em abandonar o sistema misto, caracterizado pela figura do juiz de instrução — investigador travestido de magistrado — e pela aproveitabilidade dos elementos informativos colhidos sem o contraditório judicial.
Não se presta, assim, a audiência de custódia à obtenção de provas — sobretudo a confissão do preso — utilizáveis no processo por instaurar-se. Em verdade, não fora tal vedação, seria grande a tentação de se obterem informações sobre os fatos objeto do auto flagrancial, mormente porque estão presentes no ato todos os sujeitos processuais envolvidos na futura persecução penal, o que poderia conferir contornos de antecipação probatória a esse momento ainda incipiente da persecutio criminis.
Vislumbro, é bem verdade, um período de incertezas na jurisprudência dos tribunais pátrios sobre alguns aspectos relativos à audiência de custódia, a principal delas referente às consequências do descumprimento do prazo de 24 hs para a apresentação do preso à autoridade judicial competente.
O § 5º do artigo 1º já sinaliza para a adequação à realidade em muitas comarcas com dificuldades para a pronta disponibilidade judicial, mas arrisco a dizer, independentemente do que vier a conter ato regulamentar posterior, que a jurisprudência se inclinará a valer-se de critérios de razoabilidade para aferir eventuais desrespeitos ao prazo fixado na Resolução, mesmo porque a norma convencional não o delimita e, enquanto não houver lei de hierarquia igual ou superior, há de ser ela considerada.
De mais a mais, o poder judicial de impingir medida cautelar ao imputado não se extingue com eventual descumprimento de regra anterior à decretação da prisão preventiva, sob pena de conferir-se virtual salvo conduto a quem representa risco concreto à instrução criminal, à aplicação da lei penal ou à ordem pública. Decerto que será possível a responsabilização civil, administrativa ou até penal de quem tenha violado o direito do preso a, sem demora, ser conduzido à presença do juiz, mas, salvo casos excepcionais, vejo com reserva — e a opinião, saliento, é pessoal e sujeita a reavaliação — a automática invalidação de providência cautelar posterior à condução do preso.
Certo é que, antes de se destilarem críticas a um novo instituto ou procedimento judicial, é providência salutar investigar se algo similar já se pratica em outros povos. E uma rápida pesquisa sobre o tema irá demonstrar que grande parte dos países, centrais e periféricos, já adotam, há muitos anos, algum tipo de controle imediato sobre a prisão do suposto autor de infração penal.
Nos Estados Unidos, por exemplo, prevê-se, para autores de crimes federais, o comparecimento inicial do preso perante um magistrado, como determina a Rule 5 do Federal Rules of Criminal Procedure. Na América do Sul, são exemplos de comparecimento do preso à autoridade judiciária os Códigos de Processo Penal do Chile (art. 132), do Peru (art. 266) e do Paraguai (art. 240). Na Europa, menciono os Códigos de Processo Penal da Itália (art. 390), da França (art. 145), da Alemanha (art. 115) e da Espanha (art. 505).
De observar que o prazo para apresentação do preso ao juiz oscila quase sempre entre 24h e 72h após a detenção, o que nos põe a pensar se, em um país com as dimensões continentais como o Brasil, foi acertada a opção pelo prazo mais exíguo.
Cumpre assinalar, ainda, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos — a cuja jurisdição o Brasil se submete (por força do Decreto 4.463/2002 e do Decreto Legislativo no 89/1998) — vem decidindo que “…los términos de la garantía establecida en el artículo 7.5 de la Convención son claros en cuanto a que la persona detenida debe ser llevada sin demora ante un juez o autoridad judicial competente, conforme a los principios de control judicial e inmediación procesal. Esto es esencial para la protección del derecho a la libertad personal y para otorgar protección a otros derechos, como la vida y la integridad personal. El simple conocimiento por parte de un juez de que una persona está detenida no satisface esa garantía, ya que el detenido debe comparecer personalmente y rendir su declaración ante el juez o autoridad competente.” (Caso Acosta Calderón Vs. Ecuador Sentencia de 24 de junio de 2005; no mesmo sentido, em Tibi Vs. Ecuador (sentença de 7/2/2004), Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez vs. Ecuador (sentença de 21/11/2007) e Bayarri vs. Argentina (sentença de 30/10/2008).
Vê-se, pois, que a efetiva implementação das audiências de custódia, por todos os órgãos que integram o sistema de justiça criminal no Brasil, nada mais representa do que o alinhamento de nosso ordenamento jurídico e de nossa praxe judiciária às normativas internacionais e ao que já constitui realidade em outros povos.
Já era tempo!

Rogerio Schietti Cruz é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Doutor e Mestre em Direito Processual.
Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2016.

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