quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Repercussão da lavratura de termo circunstanciado por policiais militares

Recentemente, a vetusta polêmica de lavratura de termo circunstanciado (TC) pela Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal veio à tona, com a apresentação do Projeto de Lei do Senado 395/2005[1] de autoria do senador Romário (PSB-RJ), que altera o art. 69 da Lei n. 9.099/95 para permitir que qualquer policial possa lavrá-lo. Eis os termos da proposta:

“Art. 69. O policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima."
A redação original da Lei 9.099/1995 atribui a competência legal ao Delegado de Polícia, o qual é referido no texto legal como "autoridade policial" e a quem incumbe a requisição de exames periciais, trecho suprimido na proposta de alteração legislativa:
"Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários".
O Parecer do Relator, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, senador José Medeiros, não vislumbrou vícios de inconstitucionalidade ou ilegalidade e propôs emenda que previu a possibilidade de "informar à autoridade judiciária sobre necessidade de realização dos exames periciais necessários:
“Art. 69. O policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, sem prejuízo de informar à autoridade judiciária sobre necessidade de realização dos exames periciais necessários."
Em que pese o questionável PLS, a justificativa do projeto esclareceu, a bem da verdade, que "no Código de Processo Penal, por exemplo, prevalece o entendimento de que a expressão 'autoridade policial' corresponde ao delegado de polícia". E, sim, é certo que "essa matéria tem ensejado relevante insegurança jurídica", qual seja, "o entendimento de que qualquer policial seria competente para lavrar o termo circunstanciado de ocorrência [TCO] de que trata o art. 69 da Lei nº 9.099, de 1995".

Como ressalta o ilustre professor e delegado de Polícia Civil do Paraná, Henrique Hoffmann Monteiro de Castro (2015[2]):
"(...) o termo circunstanciado de ocorrência exsurge como mais uma espécie de procedimento investigatório da polícia judiciária. A Lei dos Juizados Especiais, como não poderia deixar de ser, manteve nas mãos do delegado de polícia a função de conduzir a investigação criminal, ao dispor que a 'autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado' (artigo 69 da Lei 9.099/95).
O fato de a apuração de infração de menor potencial ofensivo ser mais simples não desnatura o caráter investigativo do termo circunstanciado de ocorrência, constatação essa feita pela doutrina[3] e pelo próprio legislador".

Sem dúvida, o artigo 5º, inciso LXXVIII[4] da Constituição Federal assegura a "razoável duração do processo" e sua celeridade, contudo, o ganho de "celeridade" é aparente, deturpado e acarreta a supressão de um importante grau administrativo de apreciação da consubstanciação da infração penal: a figura do Delegado de Polícia, primeiro garantidor da legalidade do procedimento inquisitorial, principalmente quando originado por ações policiais e de fiscalização de outros órgãos públicos.
Apesar de não reconhecida a ilegalidade ou inconstitucionalidade do PL 395/2005, pela CCJ/SF, a elaboração de termo circunstanciado pela Polícia Rodoviária Federal ou pela Polícia Militar é eivada de inconstitucionalidade por violar o art. 144, § 2º e § 4º da Constituição Federal, por ser atribuição da Polícia Judiciária.
Importante registrar que a Lei 12.830/2013 reforça a atribuição da polícia judiciária para investigação criminal e que essa deve ser conduzida pelo Delegado de Polícia:
"Art. 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais".
Na esteira legal, o CPP estatui o exercício de polícia judiciária por autoridades policiais e não por qualquer policial:
"Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria".
No Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 702617, relator ministro Luiz Fux, a Primeira Turma do STF (DJe-054, publ. 21-03-2013) decidiu pela impossibilidade de lavratura de TC pela PM:
"(...). ATRIBUIÇÃO PARA LAVRAR TERMO CIRCUNSTANCIADO. LEI 9.099/95. ATIVIDADE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA".
Na decisão agravada do ministro Luiz Fux, constou:
"O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve como redatora para o acórdão a Ministra Cármen Lúcia, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar".
O Policial Militar e o Policial Rodoviário Federal, em que pese o excelente nível de capacitação e disposição para o trabalho de todo o seu abnegado efetivo, não estão habilitados juridicamente e nem autorizados legalmente a subsumir, por exemplo, que a apreensão de entorpecente se trata de uso ou tráfico de drogas; se uma lesão corporal é leve, grave ou se trata de tentativa de homicídio; se o fato é atípico; se o autor do fato está ou não sob condição flagrancial; se arbitra ou não fiança.
Não pode a PRF requisitar ou solicitar exames periciais diretamente às unidades de polícia técnico-científica. Com propriedade, dispõe o art. 5º. da Resolução n. 1/2013/SEDS do Conselho Superior da Polícia Civil da Paraíba (CSPC/PB):
"O Instituto de Polícia Científica somente deverá atender às requisições emanadas de autoridades públicas (Juiz, Delegado de Polícia, Ministério Público e Oficial da Polícia Militar na condição de Presidente de Inquérito Policial Militar) com atribuição legal nos termos da legislação processual penal de regência".
A Direção-Geral da Polícia Civil do DF[5] se posicionou pela ilegalidade da lavratura de TC pela PMDF:
"A Direção-Geral da Polícia Civil do Distrito Federal esclarece que, enquanto não houver mudanças no ordenamento constitucional e jurídico, realizadas através dos processos republicanos previstos nos mesmos ordenamentos, a lavratura de termo circunstanciado por servidor público que não tenha expressa competência legal para tanto, ensejará na responsabilização criminal de seu autor, nos termos do art. 328 do Código Penal (usurpar o exercício de função pública) ou, conforme o caso, do art. 319 do Código Penal (retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal)".

É importante um breve olhar sobre o Regimento Interno da Polícia Rodoviária Federal (RIPRF), aprovado pelo Ministério da Justiça.
A Portaria 1.375, de 2/08/2007 (DOU 150 de 6/8/2007), da lavra do ministro Tarso Genro (reedição da Portaria no 3.741, de 15/12/2004), ao aprovar o RIPRF, autorizou, indevidamente, a atuação da PRF, em atividade de polícia judiciária que não lhe diz respeito. O artigo 1º, inciso VII do RIPRF dispõe que incumbe à PRF:
"VII - elaborar o termo circunstanciado de ocorrências a que faz referência o parágrafo único do artigo 69 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e disciplinando o seu preenchimento a ser aprovada pelo Departamento de Polícia Rodoviária Federal".
O parecer CEP/CGLEG/CONJUR/MJ 213/2009, de 15/07/2009 da Coordenação de Estudos e Pareceres da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça dispõe que "a Polícia Rodoviária Federal não possui atribuição legal para realizar investigações criminais como a de que tratam os autos, atividade essa reservada à Polícia Federal porquanto função típica de polícia judiciária".
O mencionado parecer foi aprovado pelo Despacho CEP/CGCLEG/CONJUR/MJ 661/2009, de 20/07/2009, da Chefia da Divisão de Atos Normativos nos seguintes termos: "a continuidade do exercício do poder de polícia fora dos estritos limites legais importará responsabilização disciplinar daqueles que lhe derem causa".
Henrique Hoffmann (2015)[6], penalista e especialista em segurança pública, esclarece que "as atribuições de polícia judiciária e investigação de crimes comuns incumbem à Polícia Civil, comandada por Delegado de Polícia, sendo a esfera de atuação da Polícia Militar bem diversa, qual seja, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública" e que "a repartição orgânica de atribuições, o princípio da legalidade e a competência do ato administrativo impedem que qualquer outro agente público diverso do Delegado de Polícia exerça a função de Autoridade Policial. Cuida-se de garantia do cidadão, no sentido de que na investigação criminal os fins não podem justificar os meios e a pessoa investigada não pode ser colocada na condição de objeto".
Hoffmann finaliza pontuando que "A investigação de crime comum realizada pelo policial militar, além de acarretar ineficiência do Estado, gera ilicitude das eventuais provas colhidas, bem como todos os elementos dela decorrentes, possibilitando a futura condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos[7]".
O eminente Procurador de Justiça da Bahia, Dr. Rômulo de Andrade Moreira[8], em referência à doutrina de Cezar Bitencourt, assevera a inconstitucionalidade da lavratura de TCO pela PRF:
"Cezar Roberto Bitencourt, com o qual concordamos, vai mais além, afirmando ser inconstitucional a permissão da lavratura do Termo Circunstanciado pela Polícia Militar, além de consistir em abuso de autoridade e usurpação de função pública[9]. (...)
Termo Circunstanciado lavrado por um policial rodoviário federal é um procedimento inexistente juridicamente (pois produzido em flagrante inconstitucionalidade), não se prestando para dar justa causa ao Ministério Público, seja para propor a transação penal, seja para oferecer a peça acusatória".
Lopes (2008[10]) preleciona que a questão não se restringe ao aspecto jurídico:
"No Rio Grande do Sul, por exemplo, onde se autorizou através de um termo de cooperação tal circunstância, brigadianos foram retirados das ruas para, aquartelados e em estruturas cartorárias que concorrem com as das Delegacias de Polícia, confeccionarem, 'revisarem? e cadastrarem no sistema informatizado os procedimentos preenchidos a mão, deixando de lado a sua principal e relevante atribuição constitucional, que seria a realização do policiamento preventivo. Apenas para ilustrar o que se acaba de afirmar, existem cidades do Rio Grande do Sul que possuem mais policiais aquartelados do que nas ruas realizando policiamento. Conforme noticia a imprensa, em Passo Fundo[11], por exemplo, são 154 em funções administrativas e apenas 38 nas ruas; em Santo Ângelo, 97 nos quartéis e somente 20 no patrulhamento".
Do ponto de vista legal e constitucional, o PLS 395/2005 e a lavratura de TC pela PM e PRF estão eivados de inconstitucionalidade por violação ao art. 144, § 2º e § 4º da Constituição Federal. A ilegalidade de ambos é patente por afronta ao art. 2º. da Lei n. 12.830/2013 (atribuição da polícia judiciária para investigação criminal a ser conduzida pelo Delegado de Polícia), ao art. 4º. do CPP e por exorbitância dos limites do art. 20 da Lei n. 9503/97 e do art. 1º. do Decreto 1655/95 que elenca a competência da Polícia Rodoviária Federal.
Há, ainda, quebra do devido processo legal e usurpação das atividades de polícia judiciária.
Do ponto de vista logístico, há redundância de estrutura cartorária; falta de unidade pericial da PM/PRF que, por fim, acaba por encaminhar o procedimento à Polícia Judiciária, bem como falta de depósito de prova e contraprova.
Do ponto de vista probatório, é praticamente impossível a reavaliação ou impugnação da colheita de prova pela PM/PRF, depois de liberados os envolvidos, sem a prévia submissão à Polícia Judiciária e a manutenção da cadeia de custódia de provas.
Do ponto de vista de controles, percebe-se a ausência de correição parcial e ordinária, e de controle externo dos procedimentos lavrados pela PM/PRF.
Do ponto de vista de recursos pessoais, há agravamento do crônico problema de falta de recursos humanos da PRF e da PM, ao buscar ocupar o espaço de polícia judiciária para o qual não possuem atribuição e habilitação legal, ao tempo que deixam de proteger cidadãos, ruas e rodovias e de atuar no policiamento preventivo e ostensivo.
Outros inconvenientes na condução de TC por não integrantes da polícia judiciária são patentes.
Em 5 de julho de 2012, a Ajuris (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul) divulgou nota de desagravo[12] a magistrado associado, autuado por desacato e que teve contra si lavrado termo circunstanciado por Policial Militar, em ocorrência de trânsito, situação, a princípio, sujeita ao filtro de legalidade e regularidade procedimental do Delegado de Polícia, o que revela a necessidade de formação jurídica para subsunção jurídica do fato ocorrido à legislação pátria. O evento revelou que há excessiva concentração de poderes em um único servidor do Estado que fiscaliza, registra ato administrativo de ocorrência policial (boletim de ocorrência) e deflagra o procedimento persecutório penal por termo circunstanciado, sem o devido processo legal de apreciação pelo Delegado de Polícia e o pior, sem a possibilidade de participação do advogado e paridade de armas.
A perpetuação desse estado aparente de eficiência e economicidade do TC por PRF ou PM leva a uma falsa teoria do fato consumado, em que se tenta defender seu acerto pelo estabelecimento de convênios e acordos de cooperação técnica entre polícias ostensivas e de patrulhamento com Ministérios Públicos. Note-se que a falta de estrutura do MP e do Poder Judiciário para atendimento de pronto das ocorrências de TC, cujas audiências preliminares têm sido "agendadas", em regra, depois de alguns meses, autoriza que PM e a PRF passem a ter a palavra final ao fim da sua lavratura.
Independentemente da posição a ser adotada pelo Congresso Nacional, eventual alteração legislativa nem de longe pacificará o tema e sequer trará segurança jurídica para o seu trato.
A sociedade não pode fechar os olhos para a elaboração de termo circunstanciado sem a possibilidade de exame imediato pela Polícia Judiciária, Ministério Público ou Poder Judiciário, como forma de assegurar o pleno exercício do rol de garantias constitucionais que lhe são afetados.

[1] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/121976.
[2] http://www.conjur.com.br/2015-set-29/academia-policia-termo-circunstanciado-lavrado-delegado
[3] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz.Legislação Penal Especial. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 480; LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 1444; MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Polícia Rodoviária Federal Pode Lavrar o Termo Circunstanciado? JusBrasil. Abr. 2015.
[4] Art. 5º, LXXVIII: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação."
[5] http://www.adepoldf.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2082:nota-de-esclarecimento-termo-circunstanciado&catid=145:noticias&Itemid=107
[6] Parecer nº. 3/2015-Fendepol, de 2/06/2015.
[7] Idem.
[8] http://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/183091406/a-policia-rodoviaria-federal-pode-lavrar-o-termo-circunstanciado
[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3a. Ed., 1997, p. 58.
[10] LOPES, Fábio Mota. Termo Circunstanciado: atribuição exclusiva das polícias judiciárias. São Paulo: Fiuza, 2008, v.3.
[11] Jornal Zero Hora de 13/3/2008, p. 43.
[12] http://www.ajuris.org.br/2012/07/06/06-de-julho-de-2012-sexta-feira/


 é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.
Revista Consultor Jurídico, 22 de dezembro de 2015.

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