Quando se remete ao período do Velho Oeste norte-americano, duas são as imagens mais comuns irrompidas no imaginário popular: a do saloon, bar típico da época em que os clientes da região bebiam, jogavam cartas, se divertiam com mulheres e duelavam; e a dos clássicos pôsteres de criminosos procurados pregados em postes com a inscrição Wanted: Dead or Alive (Procurado: Vivo ou Morto), com atribuição do valor de um prêmio para o responsável pela captura. Esta figura clássica, denominado “caçador de recompensas”, fez (e ainda faz) parte da história dos Estados Unidos[1]. Nos últimos anos, no entanto, tal elemento vem assumindo curiosamente a sua mais nova versão: a do delator que denuncia fraudes na Justiça e recebe uma remuneração pela contribuição fornecida.
Os whistleblowers contemporâneos (“sopradores de apito”, em sentido literal), como são lá chamados, consistem naqueles indivíduos responsáveis por trazer a conhecimento das autoridades ou do público informações relevantes para investigação de casos de corrupção, de má gestão, de ilegalidades ou de algum outro tipo de delito cometido no âmbito da atividade empresarial. A expressão, em verdade, é uma referência ao árbitro, cuja função diz respeito a coibir as jogadas ilegais praticadas pelos jogadores por meio do sopro do apito. À semelhança dessa figura, oswhistleblowers, ao verificar quaisquer irregularidades ou mesmo infrações perpetradas no seio empresarial, “soprariam o apito”, divulgando tais práticas para que as devidas providências fossem tomadas.
A exemplo dos Estados Unidos, que regulamenta e protege a atuação doswhistleblowers[2], o Brasil vem demonstrando, recentemente, preocupação com o tema. Nos últimos três anos, foram apresentados projetos legislativos que tratam sobre a criação de mecanismos para recompensar aquelas pessoas que comunicam as autoridades sobre crimes praticados contra a administração pública.
O PLS 664/2011, de autoria do senador Walter Pinheiro (PT-BA), altera o artigo 5º, parágrafo 3º, do CPP, para garantir àquelas pessoas que noticiam crimes às autoridades, como a prática de crimes tributários ou contra a Administração Pública, retribuição pecuniária de 10% do valor que vier a ser recuperado. O projeto encontra-se atualmente no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, tendo sido recentemente emitido parecer favorável pelo senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AM), que louvou a iniciativa de premiar pessoas pela comunicação de crimes praticados contra a Administração Pública e se manifestou pela sua aprovação: “somos favoráveis ao pagamento de recompensa aos cidadãos que denunciarem crimes contra a ordem tributária e a administração pública, nos termos preconizados pelo ilustre Autor do PLS 664, de 2011, a quem louvamos pela importante iniciativa.”
Outro projeto é o PL 1.701/2011, do deputado federal Carlos Manato (PDT-ES), o qual institui o Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção. Em seu artigo 4º, o projeto concede ao cidadão que oferecer informações imprescindíveis para a apuração do ilícito, punição dos acusados e recuperação dos bens e valores desviados uma recompensa em moeda nacional correspondente a 10% sobre o total apurado dos valores e bens apreendidos. O projeto assegura ainda o anonimato ao informante no artigo 3º, parágrafo único (“O informante deverá ser maior de 18 anos de idade e ter capacidade civil plena, cabendo ao órgão que receber a denúncia assegurar-lhe o anonimato e o sigilo da fonte.”), e menciona que será criado pela União o Fundo de Recepção e Administração de bens e valores recuperados em ações transitadas em julgado, de onde adviriam os recursos para recompensar os informantes. O projeto foi apensado, em 02/09/2013, ao PL 6.132/2013, do Deputado Federal Enio Bacci (PDT/RS), o qual concede prêmio àqueles que comunicarem às autoridades competentes a prática de crime contra a Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, de que resulte a efetiva recuperação de valores ao erário.
Por fim, o PL 3.506/2012, de autoria do deputado federal João Campos (PSDB-GO), insere os crimes de peculato (artigo 312, CP), concussão (artigo 316, CP), corrupção passiva (artigo 317, CP) e corrupção ativa (artigo 333, CP) como crimes hediondos, modificando o artigo 1º da Lei 8.072/90. O projeto também cria o programa de recompensa a delatores de crimes cometidos contra a Administração Pública. Em virtude da proposta de alterar a Lei de Crimes Hediondos, o PL foi apensado atualmente ao PL 5.900/2013, que compilou outros projetos que tratavam da mesma matéria, de modo a possibilitar a apreciação conjunta.
Em leitura aos PLs mencionados, afere-se inexistir consenso em relação ao termo que será adotado no Brasil para representar a figura dowhistleblower. Cada um dos projetos adota uma expressão diversa para se referir àquele indivíduo que relata às autoridades a prática de crime contra a Administração Pública. O PL 1.701/2011, por exemplo, emprega o termo “informante”, ao passo que o PLS 664/2011 utiliza o verbete “comunicante” e o PL 3.506/2012, por sua vez, adota a expressão “delator”. Tal diversidade terminológica acaba causando nebulosidade ao não indicar expressamente a quem se destina(ria) o programa de recompensas. Portanto cabe aqui se questionar: o benefício seria concedido aos autores (e participantes) da infração ou, por outro lado, aos indivíduos que não possuam qualquer relação com o episódio e que o comunicam às autoridades?
Ao mesmo tempo em que a adoção de um termo único se faz imperiosa, cabe destacar que a expressão “delator” não nos parece recomendada, eis que é utilizada comumente em referência àquele indivíduo que teve participação na prática delituosa e entrega os demais participantes, visando a reduzir sua pena posteriormente (delação ou colaboração premiada, nos moldes dos artigos 13 e 14, da Lei 9.807/99). Entretanto, sendo uma parte externa, que não teve qualquer participação no crime, poderia ela receber outra denominação, como “informante”, “comunicante” ou, ainda, “denunciante”.
A despeito da iniciativa da criação do programa de recompensas pelos projetos, impende que seja ainda definido um único critério para efetivar a remuneração. Deve-se atentar para a contradição operada na redação do PL 1.701/2011, por exemplo, em que num primeiro momento (artigo 4º) estabelece ao comunicante a recompensa de 10% sobre o total apurado dos valores e bens apreendidos e, logo em seguida (artigo 4º, parágrafo único), institui que a recompensa não poderá ser superior a 100 salários mínimos vigentes à época do pagamento da recompensa ao informante. Ainda que o informante comunicasse um ato de corrupção de bilhões de reais, o valor máximo que poderia receber pela sua contribuição, atualmente, seria o de R$ 72,4 mil[3].
De todo modo, os projetos legislativos mencionados indubitavelmente fomentam o debate sobre esta ferramenta tão utilizada atualmente nos programas de compliance em todo o mundo. A discussão é necessária tanto para o fortalecimento e amadurecimento da figura do whistleblower quanto para possibilitar melhor aplicabilidade e efetividade a sua atuação em nosso país.
Outro ponto que merece ser amplamente debatido diz respeito à segurança jurídica do instituto, seja para viabilizar a proteção e tutela dos direitos e garantias fundamentais do denunciante e do denunciado (direito à intimidade, à privacidade, etc.), seja para que a ferramenta possa ser corretamente aplicada pelo Poder Judiciário, de modo a evitar a indevida responsabilização cível, administrativa e criminal de pessoas físicas e jurídicas ou mesmo a decretação de prisões cautelares como “resposta” a anseios sociais, frutos de uma atuação desmedida e irresponsável de caçadores de recompensas.
O não enfrentamento técnico-jurídico do tema seguramente enfraquecerá esta importante ferramenta para a apuração de atos ilícitos internos, praticados dentro de determinada atividade empresarial, cujos reflexos não apenas atinjam a estrutura e a transparência da empresa, como também ofereçam danos a terceiros.
[1] Nos Estados Unidos existem diversas leis estaduais responsáveis pela regulamentação da figura do caçador de recompensas. Há organizações profissionais que inclusive representam esta indústria, tais como a NAFRA –National Association of Fugitive Recovery Agents.
[2] Nesse sentido: Whistleblower Protection Act of 1989 (WPA).
[3] Com base no valor do salário mínimo nacional em vigor a partir de 01/01/2014.
Ricardo Breier é advogado titular do Escritório Ricardo Breier Advogados Associados e professor com doutorado em Direito Penal.
Bernardo de Azevedo e Souza é advogado criminalista e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2014.
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