A história da operária gaúcha Angelina Gonçalves, morta durante uma manifestação na cidade de Rio Grande (RS), em 1950, é o primeiro relato das 434 vítimas de abusos fatais praticados por agentes do Estado brasileiro entre 1946 e 1985, apurados pela Comissão Nacional da Verdade. Assim como Angelina, há outros 11 casos do relatório divulgado pela CNV na última quarta-feira (10/12) que não podem ser debitados à ditadura militar implantada no país em 1964.
Oito dessas vítimas pré-golpe de 1964 foram mortas num episódio que ficou conhecido como o massacre da Usiminas. Trata-se de uma operação policial feita para conter 5 mil metalúrgicos e operários da construção civil que durante uma greve fizeram uma manifestação para protestar contra as condições de trabalho impostas pela siderúrgica que acabava de ser inaugurada em Ipatinga (MG). No confronto, a polícia matou 8 pessoas, incluindo um bebê de oito meses que estava no colo da mãe, e feriu 90 pessoas.
No documento publicado na internet, por um erro de redação admitido pela equipe responsável, faz-se uma relação indevida entre essas mortes e a ditadura militar de 1964. Uma outra falha é que não se identifica quem era o presidente do Brasil à época de cada fato. No caso da morte de Angelina, o presidente era Eurico Gaspar Dutra (foto), general que chegou à presidência pelo voto popular. No caso do massacre da Usiminas, a presidência era ocupada por João Goulart, que acabaria deposto pelos militares em abril de 1964.
Embora não haja, nesses casos, um aparelho de repressão especialmente orientado para agir contra a oposição ao regime, essa simples amostragem é pedagógica, na medida em que revela como o Estado brasileiro já abusava da violência contra a população civil muito antes de 1964. Se o período da pesquisa da CNV se estendesse para além de 1985, o resultado seria idêntico. Para se convencer disso, basta lembrar a atuação da polícia na repressão às manifestações de junho de 2013 ou simplesmente ler o jornal de cada dia.
Evidentemente o que aconteceu a partir de 1º de abril de 1964 é outra história e justifica plenamente todo o trabalho desenvolvido pela Comissão Nacional da Verdade. É o que salta aos olhos na leitura de cada um dos 367 perfis das vítimas da ditadura que compõem o relatório da CNV. Por ali, cai por terra, por exemplo, o mito de que na “revolução” de 1964 não tenha corrido sangue.
Repressão instantânea
O relatório cita os casos de pelo menos 12 pessoas assassinadas em 1º de abril ou nos 10 dias subsequentes ao golpe, justamente por se manifestarem contra a ação dos militares ou simplesmente por serem consideradas subversivas. No primeiro caso está Labie Elias Abduch, que no dia 1º de abril de 1964, consumado o golpe, dirigiu-se ao Clube Militar no Rio de Janeiro para saber notícias do filho que estava no Rio Grande do Sul. Acabou envolvida por uma manifestação contra o golpe que se desenrolava em frente ao local e recebeu um dos muitos tiros disparados pelos militares para repelir a multidão. Além de Labie, foi morto na mesma ação Ari de Oliveira Mendes Cunha.
No mesmo dia e nas mesmas circunstâncias, mas em Recife, outra manifestação contra o golpe custou a vida de Ivan Rocha Aguiar e Jonas José Albuquerque Barros, um garoto de apenas 17 anos.
Entre os “subversivos”, o caso mais notório talvez seja de Albertino José de Farias, líder das Ligas Camponesas de Vitória de Santo Antão (PE). Assim que tomou conhecimento do golpe, Albertino mobilizou 5 mil camponeses da região, que armados de foice, enxada e facão ocuparam a prefeitura, a delegacia de polícia, a rádio, a central telefônica, os Correios, a estação de trem, os postos de gasolina, e a Companhia de Armazéns Gerais de Pernambuco.
Três dias depois, tropas do Exército retomaram o controle da cidade. Mais alguns dias e o corpo de Albertino foi encontrado sem vida numa mata, nas proximidades do sítio onde vivia com a família. Cinco dias depois de ser comunicada da morte, a polícia recolheu o corpo de Albertino e desapareceu com ele. Na versão oficial consta que Albertino se suicidou, mas as circunstâncias de sua morte nunca foram esclarecidas.
O suicídio também foi a alegada causa da morte de outros quatro “subversivos”, nos dias que se seguiram ao golpe, sendo que três deles eram militares — o quarto era um sindicalista. No caso do sargento Edu Barreto Leite, ele inaugurou outra causa mortis que está entre as preferidas dos repressores para justificar execuções: resistência à prisão. Antes de "se atirar" do quinto andar do prédio onde morava, o sargento teria resistido à prisão atirando nos dois militares que estavam em sua captura.
Segundo o relatório, o primeiro militar morto por se opor ao golpe foi o tenente coronel Alfeu de Alcântara Monteiro (foto), abatido a tiros em seu próprio gabinete pelo oficial da aeronáutica, Roberto Hipólito da Costa.
Nesses primeiros dias de terror, aconteceu mais de um caso de morte terceirizada. Em Governador Valadares (MG), “milícias fazendeiras” foram as responsáveis pela morte do farmacêutico Otávio Soares e de seu filho Augusto Soares. O verdadeiro alvo dos algozes, era Wilson, outro filho de Otávio, médico e dono de fazenda onde queria implantar “ideias comunistas” no tratamento dispensado a seus empregados.
Segundo o relatório da CNV, “a Justiça militar entendeu que os acusados haviam sido convocados pelos chefes da revolução em Minas a integrarem os batalhões patrióticos e tinham a condição de militares quando praticaram os atos que lhe estavam sendo atribuídos”.
Casos notórios
Esse era apenas o começo de uma longa história de horrores. Entre as quase quatro centenas de casos relatados pela CNV estão os de alguns já bastante conhecidos, como o do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca e o do ex-deputado federal pelo Partido Comunista, Carlos Marighella, certamente, os mais caçados de todos os inimigos da ditadura militar.
Marighella é tratado como celebridade no relatório, elencando-se a série de livros, filmes, peças de teatro, monumentos, músicas e outras artes que ele inspirou. O relatório conta em detalhes, a emboscada armada pela polícia paulista, sob comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, na alameda Casa Branca, região da Avenida Paulista, em São Paulo no dia 4 de novembro de 1969 e que terminou com sua execução a tiros.
Com a morte de Marighella (foto), e também por ser militar, Carlos Lamarca galvanizou toda a fúria dos repressores e foi alvo de uma caçada sem tréguas que durou anos e que o levou da região de Registro, no sul do estado de São Paulo, até Brotas de Macaúbas, no sertão da Bahia.
De sua perseguição participaram mais de duzentos militares e policiais, sob o comando do então major Nilton Cerqueira. Pego de surpresa, à sombra de uma baraúna, debilitado e desarmado, Lamarca foi executado no dia 17 de setembro de 1971. Até chegar ao “Inimigo número 1 da Revolução”, Cerqueira e seus homens torturaram ou mataram outras seis pessoas. Entre os mortos estavam Zequinha Barreto, o último companheiro a seguir o capitão, e Iara Iavelberg, a mulher de Lamarca.
Outro dos casos de destaque do relatório é o de Wladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-Codi, o centro de repressão e tortura do Exército, em São Paulo. Sua morte em 25 de outubro de 1975 superou as barreiras da censura e teve grande repercussão social. Uma missa em sua memória, oficiada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, levou milhares de pessoas à Catedral da Sé.
O Exército foi forçado a abrir um Inquérito Policial Militar para apurar as circunstâncias de sua morte. A investigação confirmou a versão oficial original de que o jornalista teria se suicidado. Em 2013, a Justiça de São Paulo determinou a retificação do atestado de óbito de Herzog, admitindo que ele morreu em consequência de “lesões e maus tratos sofridos durante os interrogatórios em dependência do II Exército (DOI-Codi)".
Para cada caso, a CNV tira uma conclusão e faz uma recomendação, que com uma ou outra variação, dizem o seguinte: “Diante das investigações realizadas, conclui-se que (...) morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar implantada no país a partir de abril de 1964. Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso para a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos”.
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2014.
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