O artigo 385 do CPP vem sendo há décadas aplicado sem maior reflexão e, o que é mais grave, contribuindo para a manutenção da cultura inquisitória e a desconsideração do objeto do processo penal, um tema árido, pouco discutido, mas fundamental. Partindo de Guasp[1] entendemos que “objeto do processo é a matéria sobre a qual recai o complexo de elementos que integram o processo e não se confunde com a causa ou princípio, nem com o seu fim”.Por isso, não é objeto do processo o fundamento a que deve sua existência (instrumentalidade constitucional) nem a função ou fim a que, ainda que de forma imediata, está chamado a realizar (a satisfação jurídica da pretensão ou resistência). Também não se confunde com sua natureza jurídica —situação processual (ou relação jurídica, para os que ainda são adeptos da teoria de Bülow).
Há um grave erro histórico da concepção de Karl Binding, que aponta para a “pretensão punitiva” como objeto do processo penal, pois transporta categorias do processo civil para o processo penal, colocando o Ministério Público como verdadeiro “credor” de uma pena, como se fosse um credor do processo civil.
É importante sublinhar que adotamos o conceito de pretensão, mas nunca na acepção civilista de Carnelutti, senão na linha de Guasp e J. Goldschmidt, que dando um giro no conceito de pretensão o concebe apenas como umapotestas agendi, ou de ius ut procedatur (Gomez Orbaneja). O Estado possui um poder condicionado de punir, que somente pode ser exercido após a submissão ao processo penal (princípio da necessidade). Então, o acusador exerce é um poder de proceder contra alguém, submetendo-o ao processo penal, ao juízo cognitivo.
O erro da concepção da ‘pretensão punitiva’ está em pensar que o Estado comparece no processo penal através do MP da mesma forma que o particular no processo civil, como se a exigência punitiva fosse exercida no processo penal de igual modo que no processo civil atua o titular de um Direito privado. Aqui está o núcleo do erro: pensar o acusador como credor. Se no Direito Civil existe a “exigência jurídica”, pois existe a possibilidade de efetivação do Direito Civil fora do processo civil (ao contrário do Direito Penal, que só possui realidade concreta através do processo penal) e a pretensão só nasce quando há a resistência, a lide. Logo, o autor no processo civil (verdadeiro credor na relação de direito material) pede ao juiz a adjudicação de um direito próprio, que diante da resistência ele não pode obter. Essa exigência jurídica existe antes do processo civil e nasce da relação do sujeito como bem da vida.
Isso não existe no processo penal. Não há tal “exigência jurídica” que possa ser efetivada fora do processo penal. O Direito Penal não tem realidade concreta fora do processo penal. Logo, não pré-existe nenhuma exigência punitiva que possa ser realizada fora do processo.
E o Ministério Público (ou querelante) não pede a adjudicação de um direito próprio, porque esse direito (potestativo) de punir não lhe corresponde, está nas mãos do juiz. O Estado realiza seu poder de punir não como parte, mas como juiz. Não existe relação jurídica entre o Estado-acusador e o imputado, simplesmente porque não existe uma exigência punitiva nas mãos do acusador e que eventualmente pudesse ser efetivada fora do processo penal (o que existe é um poder de penar e dentro do processo). Aqui está o erro de pensar a pretensão punitiva como objeto do processo penal, como se aqui o fenômeno fosse igual ao do processo civil. Por isso, o acusador detém o poder de acusar, não de penar. Logo, jamais poderia ser uma pretensão punitiva. Como disse Carnelutti[2], “ao acusador não lhe compete a potestas de castigar, mas só de promover o castigo”.
O acusador tem, portanto, a pretensão acusatória (ius ut procedatur) cujo exercício é fundamental para dar inicio e desenvolvimento ao processo. O poder de punir — que é do juiz e não do MP › somente poderá ser exercido após o pleno e exitoso exercício da pretensão acusatória. É o juiz quem detém o poder condicionado de punir.
E por que, então, o juiz não pode condenar quando o Ministério Púbico pedir a absolvição?
Exatamente porque o poder punitivo estatal — nas mãos do juiz — está condicionado à invocação feita pelo Ministério Público através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio. Também é rasgar o Princípio da Correlação, na medida em que o espaço decisório vem demarcado pelo espaço acusatório e, por decorrência, do espaço ocupado pelo contraditório, na medida em que a decisão deve ser construída em contraditório (Fazzalari).
O poder punitivo é condicionado à existência de uma acusação. Essa construção é inexorável, se realmente se quer efetivar o projeto acusatório da Constituição. Significa dizer: aqui está um elemento fundante do sistema acusatório.
Portanto, é incompatível com o modelo constitucional a regra prevista no atual artigo 385 do CPP . No mesmo sentido, ainda que fazendo um caminho diferente, Geraldo Prado[3] afirma que “isso não significa dizer que o juiz está autorizado a condenar naqueles processos em que o Ministério Público haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo 385 do Código de Processo Penal Brasileiro. Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).”
Também não se pode admitir, por outro lado, que se presuma serem os Promotores de Justiça ou Procuradores da República despreparados, prevaricadores ou incapazes de levar a cabo a acusação, a ponto de justificar-se a figura de um juiz-inquisidor que vai substituí-los no final do processo, para condenar sem acusação. Em democracia, a distinção de papéis e poderes exige responsabilidade, ou seja, ônus e bônus.
Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. Processualmente falando, o correto (diante de tal situação) seria que o juiz proferisse uma decisão de extinção do processo sem julgamento do mérito. Na falta de previsão legal, só nos resta a absolvição.
Concluindo, se no processo civil o conteúdo da pretensão é a alegação de um direito próprio e o pedido de adjudicação, no processo penal é a afirmação do nascimento de um direito judicial de punir e a solicitação de que o Estado exerça esse direito (potestas). O acusador tem exclusivamente um poder de acusar (ius ut procedatur), afirmando a existência de um delito e, em decorrência disso, pede ao juiz (Estado-Tribunal) que exercite o seu poder de condenar o culpado e executar a pena.
O Estado realiza seu poder de punir no processo penal não como parte, mas como juiz, e esse poder punitivo está condicionado ao prévio exercício da pretensão acusatória. A pretensão social que nasceu com o delito, é elevada ao status de pretensão jurídica de acusar, para possibilitar o nascimento do processo. Nesse momento também nasce para Estado o poder de punir, mas seu exercício está condicionado à existência prévia e total do processo penal.
Se o acusador deixar de exercer a pretensão acusatória (pedindo a absolvição na manifestação final), cai por terra a possibilidade de o Estado-Juiz atuar o poder punitivo, sob pena de grave retrocesso a um sistema inquisitório, de juízes atuando de ofício, condenando sem acusação, rasgando o princípio da correlação e desprezando a importância e complexidade da imparcialidade.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Revista Consultor Jurídico, 5 de dezembro de 2014.
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