Ildecler Ponce de Leão, presidente de um tal de Movimento Democrático Estudantil (MDE), se sentou à bancada de uma das salas da Câmara dos Deputados, nesta quinta-feira (12/5), para discutir a obrigatoriedade do Exame de Ordem. Foi enfático: “Vou enfrentar a questão pelo lado constitucional, não emocional”.
Em seguida, passou a desnudar o seu lado constitucional da questão: “O Exame de Ordem destrói famílias. A esposa pergunta ao marido: ‘Tu não é advogado? Então? Cadê o dinheiro?’. O marido responde: ‘Meu amor, entenda, a OAB não me deixa trabalhar’. Milhares de bacharéis sangram pelos poros por causa desse exame famigerado da Ordem dos Advogados.”
O bacharel Ponce de Leão fez a opção pessoal de jamais se submeter ao Exame de Ordem. “Nunca fiz a prova e não vou fazer”. O que não o impede de atacar a prova de barreira da Ordem com emotiva indignação: “Nossos filhos estão dizendo: ‘Pai eu quero comer! Pai, por que você não trabalha?’”, afirmou. O bacharel em Direito, que também é administrador de empresas e designer, se preocupa com a sorte dos advogados “não encarteirados que estão passando fome, muitas vezes roubando para comer e indo parar nas penitenciárias porque a OAB não os deixa trabalhar".
Ponce de Leão é coerente: a entidade que dirige no Amazonas, o MDE, oferece carteira de estudante para seus associados. E não é preciso fazer exame nenhum para ter direito à credencial que abre meia porta de cinemas, teatros e shows.
O palco das sustentações de Ponce de Leão foi o plenário número 12 do Anexo II da Câmara dos Deputados. O motivo foi a audiência pública convocada pela Comissão de Educação e Cultura para discutir o fim da obrigatoriedade do Exame de Ordem para que o bacharel em Direito possa advogar. A audiência foi feita a pedido dos deputados Domingos Dutra (PT-MA) e Antonio Carlos Biff (PT-MS).
As discussões técnicas ficaram do lado de fora do plenário 12 da Câmara. Os poucos argumentos sólidos em torno da constitucionalidade ou não do exame cederam lugar a um palanque de campanha de segunda linha, com palavras de ordem e aplausos entusiasmados que entremeavam, em regra, os mais variados ataques à obrigação de bacharéis terem de ser aprovados pela OAB para conseguir a carteira de advogado.
Em defesa do exame, falou apenas o secretário-geral do Conselho Federal da Ordem, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, que esteve na audiência acompanhado do tesoureiro da OAB, Miguel Cançado, e do assessor legislativo Maurício Neves.
Contra, representantes de diversas entidades mais ou menos conhecidas. O Movimento Nacional dos Bacharéis em Direito (MNBD), a Ordem dos Acadêmicos e Bacharéis em Direito do Brasil (OABB) e a União Nacional dos Estudantes (UNE) tiveram espaço à mesa — além do Movimento Democrático Estudantil, de Ponce de Leão. O diretor de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), Paulo Roberto Wollinger, se limitou a discorrer sobre números colhidos por seu departamento.
Modelo e atriz
Ponce de Leão citou duas dezenas de artigos, parágrafos e incisos da Constituição Federal que, segundo ele, revelam a inconstitucionalidade do Exame de Ordem. Não se estendeu sobre o conteúdo das normas citadas, mas se deu por satisfeito. “É brincadeira! É a Constituição todinha mostrando a inconstitucionalidade do exame. E a gente passando fome. Deixa a gente, trabalhar”, disse, olhando para o secretário-geral da OAB.
Ponce de Leão citou duas dezenas de artigos, parágrafos e incisos da Constituição Federal que, segundo ele, revelam a inconstitucionalidade do Exame de Ordem. Não se estendeu sobre o conteúdo das normas citadas, mas se deu por satisfeito. “É brincadeira! É a Constituição todinha mostrando a inconstitucionalidade do exame. E a gente passando fome. Deixa a gente, trabalhar”, disse, olhando para o secretário-geral da OAB.
O presidente do MDE, entidade que, de acordo com o próprio, conseguiu o feito de oferecer aos seus associados 80% de desconto em passagens aéreas pela TAM, defendeu que, se é para ter Exame, não é a OAB que deve aplicá-lo. Para Leão, “o MEC é o cara” responsável por aferir a qualidade de ensino e, assim, regular a entrada de profissionais no mercado de trabalho.
“Não vim para cá com coisas empíricas. Vim pra cá com pesquisa de mercado”, disse Ponce de Leão. Segundo o presidente do MDE, para abrir o mercado aos bacharéis será necessário chegar às últimas consequências e usar até mesmo os filhos dos formados em Direito que hoje passam fome porque a OAB os impede de trabalhar: “Vamos botar as crianças nas ruas. A OAB ouvirá o grito das criancinhas que estão nas ruas”.
Leão ressaltou que exerce as profissões de administrador e designer sem que os conselhos respectivos exijam mais do que o diploma. Como ele, diversas pessoas presentes à sessão se disseram profissionais de sucesso em outras áreas, mas discriminadas pela OAB. O farmacêutico, o economista e a servidora de um tribunal, todos bacharéis em Direito, criticaram o exame que não os permite trocar de atividade ou exercer a advocacia como segundo meio de vida.
Diante das manifestações, um advogado observou: “A advocacia agora virou atividade acessória? Já estou vendo constar de currículos que fulano é farmacêutico e advogado, algo como modelo e atriz”.
O presidente do MNBD de São Paulo, Willyan Johnes, reclamou que, em defesa do Exame de Ordem, a OAB não considera que os bacharéis em Direito também são cidadãos. “A pegada mais forte do Ophir (presidente nacional da OAB) é a seguinte: dizer que o Exame de Ordem protege os cidadãos dos maus profissionais. Ora, os bacharéis não são cidadãos?”, questionou.
“A questão não é saber se o exame é ruim ou bom. O fato é que ele é inconstitucional. Se a OAB me demonstrar, com bons argumentos, que é constitucional, eu abandono imediatamente a liderança de mais de 200 mil bacharéis porque ninguém vai me fazer rasgar a minha querida Constituição. Morro, porque sou um patriota, mas não a rasgo”, disse Johnes.
Reynaldo Arantes, presidente nacional da OABB, foi mais profissional. Defendeu o fim do Exame de Ordem com o argumento de que ele serve apenas como reserva de mercado e impede o livre exercício profissional garantido constitucionalmente. Também sustentou que a aplicação da prova não pode ser organizada e aplicada por uma entidade de classe. “A aplicação pelo MEC não seria inconstitucional”, afirmou.
O bacharel pleiteou, como medida paliativa, que o Congresso aprove o Projeto de Lei 1.284/11, de autoria do deputado federal Jorge Pinheiro (PRB-GO). Pelo texto, a OAB seria obrigada a cuidar da elaboração, aplicação e correção do Exame de Ordem em parceria com o Ministério Público, a Defensoria Pública e entidades que representam bacharéis em Direito.
“A inconstitucionalidade é inconteste. De uma forma ou de outra, o exame tem que acabar. Mas, enquanto não acaba, é necessário que tenhamos um exame que, ao menos, afira o conhecimento”, disse Arantes.
O vice-presidente da UNE, Tiago Ventura, informou que os estudantes concordam com o diagnóstico da OAB, de que o ensino é ruim, mas discorda que a medição da qualidade seja feita por meio do Exame de Ordem. “Quem tem de medir a qualidade é o MEC, que vem fazendo isso com muita defasagem”, afirmou.
Para Ventura, “hoje, o estudante entra na faculdade pensando em passar na Ordem, não em estudar, fazer pesquisas, pensar o Direito. O estudante fica estudando macetes e métodos, ao invés de se preocupar com conteúdo”.
Números do Direito
Paulo Roberto Wollinger, do MEC, afirmou que há hoje, no país, 30 mil cursos de graduação e 2.500 instituições de ensino superior, frequentadas por seis milhões de estudantes. A ideia do MEC é expandir ainda mais a oferta, diversificá-la e interiorizar o ensino superior. Diversificar é a principal meta porque cinco cursos de graduação somam quase a metade do total de vagas: Direito, administração, contabilidade, pedagogia e enfermagem.
Paulo Roberto Wollinger, do MEC, afirmou que há hoje, no país, 30 mil cursos de graduação e 2.500 instituições de ensino superior, frequentadas por seis milhões de estudantes. A ideia do MEC é expandir ainda mais a oferta, diversificá-la e interiorizar o ensino superior. Diversificar é a principal meta porque cinco cursos de graduação somam quase a metade do total de vagas: Direito, administração, contabilidade, pedagogia e enfermagem.
Parte do fenômeno se explica porque abrir cursos de contabilidade, pedagogia, administração e direito demandam pouco investimento em infra-estrutura ou laboratórios. Assim, são os cursos preferidos das faculdades caça-níqueis que se proliferam no país. Diga-se de passagem, com a autorização do MEC.
Ainda que indiretamente, Wollinger defendeu o Exame de Ordem. O diretor do MEC disse que vê o teste como um exame de acesso profissional, não como um exame de avaliação. “Há uma tendência de convergência entre dados do Enade (Exame Nacional de Desempenho Estudantil) e do Exame de Ordem”, disse.
Segundo ele, por estar em fase de consolidação, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, que abrange o Enade, ainda não é capaz de atestar a qualidade do ensino a ponto de dispensar qualquer outra forma de avaliação. De acordo com Wollinger, a mais recente avaliação do Enade em relação a cursos de Direito mostrou que cerca de 80 faculdades tiveram desempenho frágil e estarão sujeitas a redução de vagas e podem até mesmo ter de suspender novos vestibulares.
O secretário-geral da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, afirmou que, para a Ordem, seria muito mais cômodo acabar com o exame. De acordo com os dados das associações que defendem o fim da seleção feita pela OAB, elas representam 400 mil bacharéis. Com o fim das provas, se transformariam automaticamente em 400 mil advogados que pagariam a anuidade cobrada pela OAB. “Os dados mostram que o que nos move não é o interesse financeiro”, afirmou Furtado Coêlho.
No último Exame de Ordem, a Fundação Getúlio Vargas fez uma pesquisa com os bacharéis que se submeteram às provas. Foram ouvidos 7.861 bacharéis, dos quais 74,4% se declararam a favor da seleção organizada pela OAB. Números também mostram que mais de 80% dos bacharéis egressos de universidades públicas, especialmente as federais, são aprovados na primeira vez que fazem o teste.
Dados do Portal Exame de Ordem, um dos mais respeitados sites que se dedica à discussão do tema, revelam que o número de inscritos no exame nos últimos três anos cresceu muito mais do que o de candidatos aprovados. No primeiro exame de 2008, por exemplo, foram 39.357 inscritos. Do total, 11.063 foram aprovados (29%). Já o segundo exame de 2010 teve 106.041 inscritos e 16.974 aprovados (16%). Apesar de a aprovação ter crescido substancialmente em números absolutos, o percentual caiu muito.
O secretário-geral da OAB sustenta que o fim do Exame de Ordem beneficia os donos de “péssimas faculdades”, que reduzem “o ensino jurídico a mercado”. As estatísticas mostram que ele pode não estar descoberto de razão. Mesmo com o Exame de Ordem, se mantidos os números de aprovação da última seleção, entrarão no mercado, por ano, 50 mil advogados.
Furtado Coêlho citou que 92% dos pareceres da OAB são contrários à abertura de novos cursos de Direito. Garantiu também que grande parte dos países civilizados do mundo exige exame semelhante para que o bacharel tenha direito de advogar. Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Suíça, Japão, Áustria, França, Finlândia, México, Chile, entre outros, foram citados pelo conselheiro.
Os defensores do fim do exame lembraram que a Corte Constitucional de Portugal, recentemente, considerou o Exame de Ordem inconstitucional. O secretário da OAB afirmou que isso aconteceu porque a Constituição portuguesa exigia que o exame fosse criado por meio de lei. E, lá, estava regulamentado em provimento da Ordem dos Advogados.
No Brasil, segundo Furtado Coêlho, a situação é diferente da de Portugal. A Constituição aqui, como lá, autoriza a edição de lei para estabelecer critérios para o exercício de profissões. E o Exame de Ordem brasileiro é previsto na Lei 8.906, conhecida como o Estatuto da Advocacia.
“Não existe curso de advocacia. O curso é de bacharel em Direito. Todos sabem, ao se inscrever, que terão de se submeter ao exame. Não dá para querer mudar as regras do jogo depois, porque foram reprovados”, defendeu o secretário-geral da OAB.
Memória de Rui
Os argumentos da OAB não foram suficientes para convencer a maior parte dos deputados presentes à sessão. Com poucas exceções, os parlamentares se declararam contrários à aplicação do Exame de Ordem.
Os argumentos da OAB não foram suficientes para convencer a maior parte dos deputados presentes à sessão. Com poucas exceções, os parlamentares se declararam contrários à aplicação do Exame de Ordem.
Um exemplo foi o bacharel Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (PT-SP). O deputado se formou em Direito pela Uniban — faculdade que ganhou notoriedade depois que sua aluna Geyse Arruda virou celebridade. Mas não se arriscou a submeter os conhecimentos adquiridos nos bancos da escola ao crivo do Exame de Ordem: “Acho que se o Rui Barbosa fizesse agora, ele não passaria”, afirmou.
Embora não se considere um Rui Barbosa, o parlamentar está convencido de que ele, mesmo sendo um dos deputados mais atuantes do pais, também não passaria. O que, em seu juízo, revela um contrasenso. “Fiz um curso onde só havia operários. E continuam operários por conta do exame”, concluiu. Não passou por sua cabeça de que a causa da reprovação operária pode estar justamente na escola que os candidatos frequentaram.
Muitos deputados afirmaram que, com a proliferação de cursinhos preparatórios, o Exame de Ordem acaba por ferir o princípio da igualdade na disputa. Isso porque quem tem dinheiro para pagar os cursinhos leva vantagem sobre os bacharéis mais carentes.
O deputado Fábio Trad (PMDB-MS), ex-presidente da seccional de Mato Grosso do Sul da OAB, afirmou reconhecer que o exame tem de ser aperfeiçoado, mas repeliu sua extinção. “Melhorar o Exame de Ordem não pode ser usado como pretexto para extingui-lo”, disse. Para Trad, muitos advogados formados hoje não passariam no Exame de Ordem.
Ao final da audiência, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) propôs soluções para aperfeiçoar o Exame de Ordem e ajudar os bacharéis em Direito. Para ele, a OAB poderia reduzir o valor cobrado pelas inscrições, fazer mais do que os três habituais exames anuais e definir um calendário fixo para que os formados possam se preparar melhor. As sugestões serão discutidas pela Ordem.
As manifestações contrárias ao exame deixaram Ponce de Leão bastante feliz. “Ganhei o dia. Achei que os deputados iam meter o sarrafo na gente, mas não! A OAB foi massacrada, como bem disse o doutor ali”, disse o bacharel em Direito, administrador e designer, apontando para Marcus Vinicius Furtado Coêlho.
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2011
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