Coloco um ponto de interrogação no título deste artigo porque a resposta deve ser dada pelo leitor. Eu acreditei nessa possibilidade e assim agi como Juiz de Direito, conforme relato neste texto, mas não obrigo ninguém a concordar comigo. Creio, entretanto, que o depoimento sincero de um magistrado é útil para o debate do tema.
Desde o início de minha carreira de juiz, fui sensível ao drama do preso. No interior, procurei sempre assegurar trabalho aos detentos, respeito a sua integridade física e moral, assistência social à família e ajuda ao condenado, no seu itinerário de volta à vida livre. Nas diversas comarcas percorridas (Espírito Santo), contamos com o apoio de numerosos cidadãos e cidadãs que se entregaram a essa causa com extrema generosidade.
À medida que exercia a judicatura e reavaliava o meu próprio empenho em favor da readaptação do preso, convencia-me cada vez mais da falência da prisão e da modesta valia de todo esforço para salvar essa brutal instituição.
Se, na cidade pequena, um raio de humanidade ainda podia penetrar nas cadeias, na grande cidade a prisão é lugar de onde se proscreveu inteiramente qualquer traço humano.
Assim é que reduzir o aprisionamento a casos absolutamente extremos tornou-se para mim uma questão de consciência.
Na prática dessa orientação jurisdicional, entendi que não bastava evitar o cárcere, mas era preciso também, com os limitados recursos disponíveis, fazer do fórum uma escola, da toga, estola, do encontro do réu com o juiz, um encontro de vida.
Já pensando em realizar uma pesquisa científica em cima da própria experiência de juiz criminal, adotei um diário de fórum que foi o primeiro elemento, acrescido depois de outros, para a realização da pesquisa “Crime, tratamento sem prisão”.
Os dados da pesquisa demonstraram que, no grupo dos réus que estiveram presos, a ocorrência de resposta a novo processo correspondeu a uma taxa que é mais do triplo da observada no grupo dos réus que não chegaram, em nenhum momento, a ser encarcerados.
A resposta a novo processo, no conjunto dos duzentos e sete casos que compreenderam todos os indivíduos beneficiados por medidas liberalizantes, apresentou um percentual (15,4%) bastante inferior à reincidência dos egressos de prisões fechadas (67%), conforme estudos realizados no Brasil e no Exterior. A ocorrência de novo processo, no grupo dos que não estiveram presos, apresentou o baixo percentual de 7,7%, correspondendo a um terço do verificado no grupo dos que tinham sido encarcerados.
Dos cento e vinte sete casos em que determinei que os beneficiados comparecessem perante o Juízo, em 89,8% deu-se o cumprimento da condição. Nesse grupo de pessoas que honraram seu compromisso, o índice de resposta a novo processo foi de 10,5%.
Acusados e réus responderam a novo processo, segundo a própria percepção, como consequência do estigma social causado pelo primeiro processo. Em segundo lugar apareceram os motivos psicológicos ou ligados à deterioração da personalidade.
A não-submissão a novo processo, a partir da percepção dos agentes envolvidos, resultou, preponderantemente, de fatores ligados ao relacionamento, em nível de pessoa, dispensado aos entrevistados pelo juiz, ou pelo advogado. Em segundo lugar apareceram os motivos ligados ao caráter fortuito ou à injustiça do primeiro processo.
Nem tudo que verifiquei pôde ser estatisticamente controlado.
O reencontro com acusados que eu havia julgado, já na condição de juiz aposentado, foi uma experiência do mais alto sentido existencial. Desvestido de autoridade, retomei um caminho, ouvi histórias recontadas, testemunhei gestos profundamente nobres de homens e mulheres que cruzaram minha vida de juiz, como réus.
Esmagados pelo estigma da prisão e mesmo pelo estigma do simples processo criminal, a valorização da auto-imagem é uma constante nos depoimentos que colhi.
Muitos dos entrevistados tiveram prazer de dar notícias pormenorizadas do seu trabalho, vida familiar e vida social.
As dificuldades de reinserção social foram descritas e a marca de ex-detento foi assinalada como perpétua e terrível.
A completa ausência de direitos, dentro da prisão, foi outra queixa permanente.
Um sentimento de profunda gratidão é a nota marcante nos depoimentos, relativamente a qualquer ajuda recebida no período de prisão.
Frequentemente, a avaliação da gravidade dos crimes exclui aquele tipo de delito praticado pela pessoa que avalia.
As maiores reclamações contra a Justiça dizem respeito a sua morosidade e seu caráter de discriminação classista.
A importância do papel do advogado é bastante percebida pelos entrevistados, presos ou não-presos.
A resposta ao processo, tendo havido ou não prisão, é sempre vista como um mal.
Nas entrevistas com ex-presos, a recuperação da liberdade foi sempre percebida como um grande desafogo, uma “saída do Inferno”, na expressão de um dos entrevistados.
Esta pesquisa que fiz foi publicada no livro ”Crime: Tratamento sem Prisão”, presentemente esgotado. A Livraria do Advogado Editora, de Porto Alegre, não vê viabilidade econômica numa reedição da obra, no que provavelmente está certa pois quem sabe destas coisas são os editores, e não os autores. Entretanto, muitas bibliotecas espalhadas pelo Brasil possuem este livro.
João Baptista Herkenhoff é professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br Autor do livro Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória (Editora GZ, Rio de Janeiro).
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