O Procurador de Justiça Gilberto Callado de Oliveira faz profunda análise do garantismo penal, através dos seus pressupostos teóricos e dos seus trágicos efeitos na sociedade brasileira.
O Procurador de Justiça Gilberto Callado de Oliveira concede esta entrevista exclusiva para Catolicismo sobre uma ação ideológica pouco percebida pela comunidade do pensamento jurídico brasileiro, e que vem baldeando as mentalidades dos juristas para uma progressiva esquerdização da doutrina do direito penal e do processo penal. Trata-se da perigosa voga ideológica do garantismo penal — expressão-talismã de fundo marxista e com retoques gramscianos —, um conjunto de teorias visando apresentar os criminosos como verdadeiras vítimas, e estas como os verdadeiros opressores.
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Dr. Gilberto Callado: “O Direito Penal no Brasil está péssimo. Pune-se com a mesma intensidade o agricultor que derruba uma árvore nativa e uma mãe que mata o filho no ventre”. |
Catolicismo — Por que o seu interesse sobre a evolução ideológica do Direito Penal e do processo penal?
Dr. Gilberto Callado — O problema da criminalidade no Brasil atual é assaz preocupante. Os incontáveis crimes sem resposta penal e a consectária sensação de insegurança que vem se intensificando na alma dos brasileiros desafiam a inteligência dos estudiosos da matéria, para verem não só as causas, mas também apontar soluções para esse drama da violência criminosa sem fim. Como venho estudando há muitos anos a decadência multissecular do Direito natural e de seus reflexos no Direito positivo, cheguei impreterivelmente ao campo penal, até pela inevitável conexão dele com a minha atuação no Ministério Público.
Catolicismo — Em que estado se encontra o Direito Penal no Brasil?
Dr. Gilberto Callado — Péssimo, para não dizer caótico. Os erros manifestam-se em duas linhas de atuação do Estado: como legislador e como juiz. Criam-se leis ineficientes e muitas vezes contraditórias, e depois essas mesmas leis são aplicadas de maneira amerceadora — tendente a conceder mercê. Não há critérios reais de tutela dos bens jurídicos, nem uma verdadeira política de eficiência processual. A política criminal está na contramão da sistematização eficiente das leis penais. Vou dar alguns exemplos. Pune-se com a mesma intensidade o agricultor que derruba uma árvore nativa e uma mãe que mata o filho no ventre; pune-se o indivíduo que comete um roubo simples com o dobro da pena que ele receberia se tivesse mutilado os dois olhos de seu desafeto. Qualquer brasileiro pode hoje entrar nas dependências do Supremo Tribunal Federal e agredir um de seus ministros sem sofrer por isso prisão em flagrante, por se tratar de “infração de menor potencial ofensivo”. Com todas as benesses de progressão prisional e de remissão da pena, quem comete um homicídio no seu tipo fundamental não ultrapassa um ano de cárcere. Na Lei de Execuções Penais os sentenciados têm muito mais direitos do que deveres, além de ela tornar-se impraticável, pela desordenada situação carcerária do País. Tudo isso reflete um processo de desmonte do Direito Penal, e da correlata materialização de dificuldades para a Justiça Penal em concluir eficazmente os processos.
Catolicismo — Qual a razão de chegarmos a esse estado?
Dr. Gilberto Callado — Os motivos são vários, mas destaco a contaminação ideológica nas universidades, que vêm formando juristas e políticos com mentalidade cada vez mais liberal e esquerdizante. Vejam-se os constituintes de 1988. Estavam desiludidos com os instrumentos legais usados pelos governos militares contra os presos políticos, e por isso criaram extenso rol de franquias para os acusados, sem dar a devida atenção às vítimas e à própria sociedade. Curiosamente, foi na época do governo Geisel que a Lei 6416/77 concedeu um favor inédito no sistema processual: a liberdade provisória sem fiança. Infelizmente, essa dogmática evoluiu para a ideologia garantista, que vinha sendo gestada havia quase uma década pelos teóricos do Direito alternativo, começado na Itália e assimilado por alguns juristas brasileiros, como uma sutil forma de obliterar o seu pano de fundo marxista com as tintas suaves do gramscismo.
Catolicismo — O Sr. poderia nos explicar o que é o garantismo?
Dr. Gilberto Callado — O garantismo compreende um conjunto de teorias sobre o direito e o processo penal com vistas a um modelo revolucionário de Justiça penal, em que os criminosos são as verdadeiras vítimas, e estas os verdadeiros opressores. Esse modelo compreende determinado tipo de luta política de cidadania, isto é, uma idéia inicial de oposição do cidadão ao arbítrio do Estado. Mas o pano de fundo é a criminalidade dialética, direcionada a bipolaridades do tipo "cidadão contra o Estado" e "bandido contra a vítima". O Direito Penal perde a sua finalidade retributiva, para ser apenas uma medida terapêutica; o processo penal, a sua finalidade instrumental de punibilidade, para ser apenas instrumento de todas as franquias e garantias voltadas à infeliz personagem do réu. Algumas de suas propostas chegam a ser risíveis, como as do jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli — inventivo da doutrina garantista — que advoga a eliminação da prisão cautelar ou, alternativamente, a sua aplicação com todas as comodidades de um bom albergue.
Catolicismo — Portanto, o garantismo não é a defesa do cidadão contra as arbitrariedades do Estado...
Dr. Gilberto Callado — Esse é o artifício ideológico da doutrina garantista. Os seus defensores têm a mesma consciência ideológica dos juristas que defendiam no passado o Direito alternativo. Eles assumem para si um modelo hermenêutico de permanente resistência ao Estado atual, que consideram Estado-burguês-capitalista. Todas as leis penais e processuais que dele provêm são intrinsecamente injustas, e por isso é preciso opor-lhes resistência, interpretando-as de modo a favorecer o processo revolucionário alternativo.
Catolicismo — Como o Sr. vê a ligação entre o garantismo e o Direito alternativo?
Dr. Gilberto Callado — Embora os garantistas se considerem herdeiros da filosofia iluminista do século XVIII, não passam de discípulos da filosofia de Marx adaptada à de Gramsci. Eles são na verdade sucessores da doutrina do Direito alternativo, mas numa linha ideológica de atuação diferente, porque suas idéias práticas são preferentemente legalistas e menos filosóficas. Sua nova doutrina é mais sutil, falaciosa e enganosa e, portanto, mais fácil de ser assumida pelos juristas inadvertidos do que a do Direito alternativo. Seus objetivos são uma conciliação possível, mais atenuada, do marxismo intransigente da luta de classes com o direito vigente. Muitos dos intelectuais que no passado foram adeptos do Direito alternativo, quando propagavam a explícita ruptura com a legalidade, migraram depois para o garantismo, e hoje sustentam uma estratégia gradualista de acordo com o pensamento do ideólogo marxista Antonio Gramsci. Há nisso disciplinada organicidade teórica para reduzir as imposições do Estado-legal a um estágio quase imperceptível, e deixar às mãos dos juristas o papel criador do direito, já impregnados evidentemente da nova cultura garantista. Eles estão na verdade pondo em prática a primeira fase do processo revolucionário alternativo, processo dialético e sectário em que a utilização de alguns princípios constitucionais – e só aqueles princípios que lhes permitem uma hermenêutica de ruptura com as leis indesejáveis – prepara a segunda e definitiva fase daquele processo, que é o alternativismo total. No fundo eles desejam edificar a legalidade socialista, a autogestão integral das leis e de sua aplicação.
Catolicismo — O Sr. explicou que, para esse desiderato, não há uma ruptura explícita com a velha ordem positivada, mas uma astuta teorização dos princípios legais. Como seria esse objetivo de cultura autogestionária aplicada ao mundo do direito?
Dr. Gilberto Callado — Seria a barbárie. É para isso que leva o garantismo. Quanto mais impunidade, maior a ousadia dos criminosos e maior a desordem. Recordo-me de uma máxima do Papa Leão XIII: “A covardia dos bons fomenta a audácia dos maus”. Quanto mais ousadia e desordem, mais estaremos próximos da barbárie. Estamos caminhando a passos largos para ela, com as roupagens de ditadura dos chamados “grupos de resistência”. Temos assistido a diversas manifestações dessas “resistências”, com ações criminosas dirigidas por poderosas quadrilhas e grupos armados, como o conhecido PCC. Diversos são os setores da luta ideológica, cada um no seu terreno próprio: o terrorista maneja o explosivo e a pistola; o jurista, engajado nessa luta, a caneta. Está claro que o alcance teórico do garantismo penal tem a amplitude do próprio mundo jurídico, porque o garantismo não se resume aos espasmos ideológicos em favor dos acusados, considerados os oprimidos; ele representa um modelo de fundamentação do Estado de Direito vicioso, com todas as suas vertentes políticas e jurídicas de interpretar as normas na conformidade e exclusividade de princípios formadores e garantidores da luta de classes. É a legalidade alternativa, que vai se alimentando do antigo direito até formar o “novo direito”. O saudoso Prof. Plinio Corrêa de Oliveira sempre advertiu sobre o “farrapo de direitos” que restará para as pessoas quando os grupos de resistência tomarem o poder. A História nos mostrou isso. E nos tem mostrado.
O entrevistado é atualmente Coordenador do Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade (CECCON) do Ministério Público de Santa Catarina.
Obteve o título de Doutor em Filosofia do Direito na Universidade de Navarra (Espanha) em 1987, com pós-doutorado na mesma instituição.
Exerce o magistério na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e na Escola de Preparação e Aperfeiçoamento do Ministério Público de Santa Catarina, tendo proferido palestras em inúmeros eventos acadêmicos de universidades no Brasil e no exterior.
Tem publicado vários artigos em revistas científicas e diversos livros no campo da Filosofia do Direito, da Política Jurídica e da Teologia, dos quais se destacam: O Conceito de Acusação, Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1996; Filosofia da Política Jurídica, Univali, Itajaí, 2001; A Verdadeira face do Direito Alternativo, 4ª ed., Juruá, 2006; Princípios Básicos de Política Jurídica, Obra Jurídica, Florianópolis, 2005 (este último prefaciado pelo Príncipe Imperial do Brasil, D. Bertrand de Orleans e Bragança).
É membro da Academia Catarinense de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.
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