Ultimamente, relatos de pessoas perseguidas e/ou agredidas em estabelecimentos comerciais, em função de sua cor de pele ou aparente situação sócio-econômica, têm sido comuns. Nesses casos, as notícias de maior repercussão envolvem grandes redes de supermercados, mas passam de meros exemplos do que se vê todos os dias, seja em uma gigante magazine, seja na vendinha da esquina. Dizer que não há preconceito racial no Brasil não passa de uma grande hipocrisia.
Um caso emblemático envolveu o vigilante Januário Alves Santana, que, em agosto de 2009, foi brutalmente agredido no estacionamento do supermercado Carrefour, em Osasco, por seguranças terceirizados. Santana foi acusado de estar roubando um automóvel, um EcoSport de cor prata, e por isso foi submetido a sofrimento físico e mental a fim de obter a confissão. Os seguranças terceirizados não acreditaram que o carro, comprado em 72 prestações de pouco menos de R$790,00, era dele. Alegavam que era “impossível um neguinho ter um EcoSport”.
Na sessão de tortura, que durou aproximadamente 20 minutos, Santana foi agredido com cabeçadas, coronhadas, socos e tentativas de esganadura que resultaram em fraturas na face, na perda de um dente e na necessidade de uma cirurgia no maxilar. Depois de um escândalo como esse, a rede de supermercados rapidamente publicou nota comunicando que a empresa de segurança e a gerência foram substituídos e que um pedido formal de desculpas foi feito. Em 2010, houve um acordo extrajudicial em que Santana recebeu uma indenização cujo valor não pôde ser divulgado.
Este triste episódio de racismo foi apontado por entidades de Direitos Humanos como exemplo de intolerância contra negros no país. Na época do ocorrido, a Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) divulgou nota de repúdio, através da Comissão do Negro e de Assuntos Antidiscriminatórios (CONAD), e apontou que "é necessário que a sociedade repudie todo tipo de intolerância racial, especialmente quando o ato de racismo busca fazer a associação entre o componente étnico e o banditismo".
A princípio a Polícia Civil tratou o caso como “lesão corporal dolosa”, mas conforme a investigação avançou, a tipificação foi alterada. Após um ano e meio de inquérito, cinco seguranças envolvidos no espancamento foram indiciados por tortura. O indiciamento é considerado inédito entre os casos de discriminação racial no Brasil. Há ainda um sexto participante que impetrou habeas corpus e, de acordo com o delegado responsável, resta apenas a decisão judicial a respeito dessa ação para conclusão do inquérito.
Em mais de 1,2 mil processos judiciais de discriminação racial analisados pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), entre 1997 e 2010, não há sequer um caso de inquérito policial baseado na lei federal n. 9.455/97, Lei da Tortura. De acordo com Hédio Silva Junior, ex-secretário de Justiça de São Paulo e membro do CEERT, o caso é emblemático e “sinaliza que as autoridades começaram a reconhecer a gravidade dos casos de racismo e das o tratamento merecido a eles. Não foi ‘constrangimento ilegal’ nem ‘lesão corporal dolosa’. Foi tortura.”.
No indiciamento são citados três policiais militares que, supostamente, atenderam a presumida ocorrência de roubo de veículo e negligenciaram prestação de socorros a Santana após a agressão. A Polícia Militar abriu procedimento interno para apurar as acusações contra os agentes.
O fato de os seguranças de empresa terceirizada terem torturado o vigilante é, em si, absurdo. A situação fica pior ainda quando se percebe que a motivação para supor que Santana estivesse roubando o automóvel e agredi-lo foi o simples fato de ele ser negro. Este não foi o primeiro nem vai ser o último episódio do gênero. Infelizmente. Há ainda muitos outros casos de violência e desproporcional tratamento a pessoas suspeitas de furtar itens; situações em que o indivíduo torna-se um suspeito “padrão” por conta de sua cor de pele ou por parecer ter condições de vida mais humildes.
Um dos exemplos de abuso ocorreu com Franciely Marques que, mesmo depois de ter apresentado o comprovante de pagamento, foi acusada injustamente de ter furtado duas canetas em uma loja da rede Sendas, no Rio de Janeiro. A vítima foi indenizada.
Outra cena de tratamento extremamente desproporcional foi vivenciada por Ademir Perano, o qual furtou coxinhas, pães de queijo e creme de cabelo, itens que somavam o valor de R$26,00. O delito foi praticado em um mercado da empresa Dia%, em São Carlos. Perano foi conduzido a um banheiro, onde foi agredido com chutes, socos e um rodo e ficou trancado até às 22h. Buscou socorro, mas não foi suficiente: morreu por causa de hemorragia interna e uma série de traumatismos.
Em maio de 2010, o aposentado Domingos da Conceição dos Santos tentou entrar em uma agência bancária e foi baleado na cabeça. A porta giratória emitiu sinal de alerta porque o cliente usava marca-passo; ele mostrou o documento que comprovava o uso do aparelho e, mesmo assim, o segurança não o deixou entrar. Os dois discutiram até que o segurança sacou a arma e efetuou um disparo que atingiu a cabeça de Santos. Na época, a família alegou que o aposentado fora vítima de racismo.
Outro caso de racismo que está sendo investigado pela polícia ocorreu em janeiro deste ano. Um menino de apenas 11 anos alegou ter sido conduzido a uma “salinha” nos fundos de um Hipermercado Extra, em São Paulo, quando se dirigia à saída do estabelecimento. O garoto foi abordado pelos seguranças e acusado de ter furtado os biscoitos, salgadinhos e refrigerantes que levava consigo. Na referida sala reservada, segundo relato do menino, foi obrigado a tirar as roupas e chamado de “negrinho sujo e fedido”. Depois de revistar e insultar a criança, os seguranças verificaram a nota fiscal que comprovava a compra dos itens no valor de R$14,65. “Não acreditavam que eu não tinha roubado nada”, conta o menino.
Mais recentemente, em fevereiro, a dona de casa Clécia Maria da Silva teve uma crise de hipertensão e quase sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) depois de ter sido acusada de furto e ter sua bolsa revistada em uma unidade da rede Walmart. Mais uma vez, a vítima tinha como comprovar que pagou pelos produtos. De acordo com Silva, a pessoa que a revistou teria dito que “isso acontece mesmo com os pretos”. O ocorrido foi registrado como calúnia.
Não só pelos lamentáveis exemplos expostos acima, é fácil perceber que o preconceito racial ainda está fortemente arraigado à sociedade brasileira. De tal forma que gera uma estigmatização social, a qual exerce, inclusive, forte influência sobre escolhas relativas à política criminal. Como visto, na esfera da segurança privada, essa estigmatização também interfere na determinação de quem será o “suspeito padrão”, aquele que, inconscientemente até, passará a ser monitorado ao entrar em algum estabelecimento comercial. Mas, evidentemente, esse tipo de atitude não é exclusivo de ambientes como os mencionados; está em todos os lugares, parte de pessoas das mais diversas etnias, condições sócio-econômico-culturais, orientações políticas e independe de gênero, faixa etária ou opção sexual.
Frente aos escândalos que apontam para condutas racistas, as empresas que levam os nomes dos locais onde acontecerem episódios vergonhosos como os expostos aqui logo asseguram colaborar no que puderem e anunciam a implementação de ações que auxiliem na difusão de conceitos de diversidade e promoção da inclusão social. O que já significa alguma coisa, mas não é suficiente. Admitindo ou não, no Brasil há, ainda, significativa discriminação e, para que cenas como estas não se repitam, é preciso mudar não só o treinamento de empregados que trabalham com vendas, segurança ou prestação de serviços, mas extinguir certos pré-conceitos, certas pré-disposições da sociedade como um todo.
(Érica Akie Hashimoto). IBCCRIM.
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