quarta-feira, 2 de março de 2011

Desaparecimento forçado de pessoas, verdade e memória

Por Camila Akemi Perruso
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O Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIntDH), em sentença proferida em 14 de dezembro de 2010, no caso da Guerrilha do Araguaia, pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas. Considerou esse tribunal internacional que o Brasil descumpriu sua responsabilidade internacional por graves violações de direitos humanos empreendidas durante o regime ditatorial e pela consequente falta de processamento e apuração dos fatos até os dias atuais.
O desaparecimento forçado de pessoas constitui-se em uma das mais graves violações de direitos humanos e caracterizou-se como tal a partir de sua prática sistemática durante as ditaduras da América Latina. Ele é definido pelo sequestro, detenção ilegal e arbitrária, realizado por agentes estatais ou com sua aquiescência, e a consequente privação de informações acerca do paradeiro da vítima, geralmente culminando na morte e ocultação de seus restos mortais, violando o direito à liberdade e à segurança pessoal, o direito de não ser preso arbitrariamente, o direito a um julgamento justo, o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei, o direito a condições mínimas de tratamento na prisão e de não ser submetido à tortura e a outros tratamentos cruéis e degradantes e o direito à vida.(1) Ademais, viola a integridade da família do desaparecido, seu direito ao luto, na medida em que a obriga a ficar em um estado de espera interminável, sendo que geralmente a verdade relativa aos fatos acontecidos não aparece na cena pública.
O direito à verdade está intrinsecamente relacionado ao desaparecimento forçado de pessoas, e, ao longo dos anos, passou a se considerar a necessidade de que ele seja garantido em todas as situações de graves violações de direitos humanos. Isso porque, quando se trata de crimes de direitos humanos, a verdade deve ser entendida de modo diferente dos crimes comuns, pois nesses o objetivo é verificar a culpa ou a inocência de algum indivíduo pela prática de um ato, configurando uma justiça retributiva a um ato proibido e sancionado por uma lei penal. Já os objetivos de se encontrar a verdade quando se trata dos crimes de direitos humanos dizem respeito à restauração e à manutenção da paz e ao processo de reconciliação nacional.(2)
Dessa maneira, há mais interesse por trás de seu desvelamento que a mera declaração da culpa ou inocência do agente violador de direitos humanos. Isso porque tal declaração está muito mais relacionada à justiça restaurativa que à retributiva. Não se trata, desse modo, de revelar a verdade para punir o culpado apenas, mas de conhecer os fatos, as circunstâncias das violações de direitos, para que o tecido social possa se reconciliar. O direito à verdade divide os princípios e valores de um direito internacional penal, pois favorece a restauração e manutenção da paz, facilita o processo de reconciliação, contribui para a erradicação da impunidade, reconstrói a identidade nacional(3) e possibilita a construção de uma verdade histórica ou oficial a partir de um debate público, e não imposta por algum “vencedor”.
Outra questão que prejudica diretamente na promoção do direito à verdade diz respeito à aplicação da anistia quando ela exclui a possibilidade de julgar os perpetradores de graves violações de direitos humanos. Ela é proibida pelo Direito Internacional justamente porque impossibilita a verdade e a responsabilização dos culpados pelas violações. Casos em que a anistia é legítima, como um recurso para a responsabilização e reconciliação, como instrumento de uma justiça restaurativa – a exemplo da África do Sul – a verdade assume um valor jurídico e não meramente moral ou individual.(4)
Nessa perspectiva, a sentença da CIntDH, que condena o Brasil pelo desaparecimento forçado de pessoas no caso da Guerrilha do Araguaia, que obriga o Estado a adotar medidas reparatórias às vítimas, especialmente no sentido de esclarecimento da verdade, contribui não só para o desenvolvimento e a qualificação dos instrumentos jurídicos e políticos do País relativos ao respeito aos direitos humanos, mas, sobretudo, organiza uma apuração dos fatos, dando publicidade e esclarecendo o ocorrido por meio do processo e julgamento.
Assim, para além do âmbito privado – aqui constituído pelos grupos de familiares que portam a preservação e a constituição de suas memórias em cena pública – é necessário tratar do possível impacto dessas memórias em toda a sociedade. É relevante para todos saber dos fatos relacionados a graves violações de direitos humanos, das estratégias empreendidas no cometimento de tais violações, de seus fundamentos e características, com vistas a uma não repetição. Saber pelo que passaram as vítimas do passado é atividade importante, não só devido à solidariedade humana, mas, sobretudo, porque é maneira de se reconhecer em situação pela qual não se quer passar no presente, considerando o marco valorativo de uma existência humana alinhado aos princípios de direitos humanos. Desse modo, lembrar do passado não se configura tão somente rememorar as atrocidades para que estas não caiam no esquecimento e para que os sujeitos se mantenham em seus papéis de vítimas ou algozes, mas para transcender e fazer com que algo semelhante não aconteça, para que algo assim não se repita.(5)

NOTAS
(1) De acordo com a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada em âmbito da OEA em 1994, em seu art. 2º, “entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes”.
(2) NAQVI, Yasmin. The right to the truth in international law: fact or fiction?, in International Review of the Red Cross, vol. 88, n. 862, jun. 2006, p. 246.
(3) Idem, p. 247.
(4) Idem, p. 267.
(5) GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006, p. 100.


Camila Akemi Perruso, Mestre em Direito Internacional pela USP. Pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio – Cultura, democracia e direitos humanos. 

Como citar este artigo: PERRUSO, Camila Akemi. Desaparecimento forçado de pessoas, verdade e memóriaIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 219, p. 17, fev., 2011.

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