quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O que você não sabe sobre os Manicômios Judiciários brasileiros

O que você não sabe sobre os Manicômios Judiciários brasileiros
Os manicômios judiciários foram construídos no Brasil aos poucos, como interseção ativa dos poderes disciplinares (médico e jurídico), e em 1921 inaugurou-se o primeiro deles, na cidade do Rio de Janeiro. “Foi a vitória da abordagem biossocial acerca da anormalidade e, de certo ponto, a subordinação do direito ao saber médico”[1].
O reconhecimento do delito cometido passou a garantir única e exclusivamente a manutenção de um processo penal até a sua fase de execução, que será via de implantação da medida de segurança (detentiva ou ambulatorial). Em casos de medida de internação, a pessoa em sofrimento ao ser submetida (quando possível) ao hospital de custódia para o tratamento (?), está sujeita a todas as mazelas típicas do sistema público de saúde mental brasileiro, assim, “o crime já não é mais um problema de Direito e Moral, mas da medicina e dos terapeutas”[2], afirma Szasz.
Aqui, frisa-se, o paciente/preso, uma vez rotulado de paciente mental, é obrigado a assumir o papel não só de criminoso, mas de doente. Ele é duplamente violentado, coisificado, até converter-se no objeto híbrido em que o processo patológico e penalógico elabora. No transcurso penal-psiquiátrico, “o sujeito é dispensado como pessoa e, por conseguinte, dispensado”[3].
Para assegurar tal análise, investe-se na apresentação do recente relatório elaborado no Brasil sobre Manicômios Judiciários, publicizado em novembro de 2015[4]. O Conselho Federal de Psicologia junto com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde (AMPASA) uniram-se para a realização de inspeção nacional aos manicômios judiciários, hospitais de custódia, alas psiquiátricas e similares. As Comissões de Psicologia Jurídica e de Direitos Humanos do Conselho Federal juntamente com os Conselhos Regionais de Psicologia, deram inicio às articulações nos estados, realizando as inspeções em todas as regiões do país, entre os meses de abril e junho de 2015. As inspeções foram realizadas por 18 Conselhos Regionais em 17 estados[5] do país e no Distrito Federal, em instituições (no mínimo um estabelecimento representativo para cada estado) onde havia cumprimento/execução de Medida de Segurança de pacientes judiciários ou portadores de sofrimento mental em conflito com a lei. O estudo buscou
“evidenciar os impasses encontrados nessas instituições, o desrespeito aos direitos humanos, a falta de tratamento, as condições físicas, técnicas e de trabalho (sempre muito ruins), a ineficácia do dispositivo hospitalar/manicomial (um híbrido do “pior da prisão com o pior do hospital”), o instituto da Medida de Segurança enquanto pena perpétua, o mito da periculosidade presumida (nos exames de cessação de periculosidade, ainda que a presunção de periculosidade tenha sido varrida legalmente desde 1984) e, sobretudo, o descompasso entre as novas formas de abordagem, tratamento e responsabilização do louco infrator, amparadas nos pressupostos da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, e outras legislações, portarias, etc.; e também em novos modelos assistenciais exitosos, PAI-PJ (MG) , ligado ao Tribunal de Justiça do Estado e PAILI (GO) , ligado à Secretaria de Estado da Saúde”[6].
Dentre os pontos mais graves, está a questão da falta de advogados para acompanhamento processual. Em um meio no qual se reúne “o pior da segregação, com o pior do estigma, de todo o universo pesquisado, em apenas três deles (Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul) temos a presença de um advogado no universo das 18 (dezoito) unidades inspecionadas nos estados”[7]. Esse quadro revela a precariedade do acesso à justiça por parte das pessoas em sofrimento psíquico submetidas ao Sistema de Justiça Criminal. Além dos fatores biopsicopatológicos (exaltados pela criminologia positivista) que consubstanciam a permanência no sistema prisional/manicomial, a ausência de assistência judiciária adequada, torna quase totalmente inviabilizado o vetor de saída dessa tecnologia de contenção.
Outro quesito em destaque é a escassez de psicólogos nas unidades visitadas, tanto em números absolutos (45 no total, contabilizando-se as 18 unidades), quanto em percentual frente ao total de trabalhadores. “Na unidade em que há a menor relação psicólogo/paciente, temos um profissional da psicologia para cada 21 presos/pacientes e, na maior relação temos, inacreditáveis 104 presos/pacientes por profissional da psicologia”[8]. É preocupante também a ausência de psicólogos nas juntas periciais, igualmente, “a inexistência, em 100% dos casos dos exames, de um advogado”[9].
Nas 18 unidades avaliadas, encontrou-se 2.864 pacientes/presose desse total, 61% estavam recolhidos em celas comuns. “Em sete, dos dezessete manicômios pesquisados, há superlotação, que varia de 110% da capacidade de vagas instaladas a 410%”[10]. No que tange à avaliação estrutural dos espaços asilares, todos refletem a marca da invalidação do status de ser humano, como local degradante, de tortura[11] e de aniquilamento da individualidade e da liberdade. Assim descreve o relatório:
Chuveiros insuficientes e com apenas água fria, os presos/pacientes não têm acesso sequer à válvula de descarga dos banheiros. As celas de isolamento possuem um vaso sanitário, mas sem válvula de descarga. Foi-nos informado que, externamente, um funcionário dava descarga três vezes ao dia (por segurança – sic), regra geral “fossa turca” (buraco no chão, como nas cadeias). Além das péssimas condições de limpeza (mesmo quando “preparados” para a inspeção), o cheiro é repugnante em todas as unidades visitadas, não há equipe específica para limpeza, os banheiros e alojamentos são imundos, os pacientes também sofrem com as vestes muito sujas da instituição, pouco dadas a lavagem periódica. Em 70,59% dos manicômios inspecionados não há espaço para convivência íntima e, em 100% deles, não há visita íntima [12].
A ausência de perspectiva de futuro, a condição permanente de estar à mercê dos outros sem a mínima iniciativa pessoal, com seus dias fracionados, ordenados e controlados segundo regras de comportamento e horários ditados unicamente por exigências organizacionais que não levam em conta o indivíduo singular e as circunstâncias de cada um, tudo isso, compõe essa estrutura institucionalizante sobre a qual se articula a vida asilar (penal/psiquiátrica). O “preso/doente” é impelido por esse poder punitivo a objetificar-se nas próprias regras que o determinam, num processo de diminuição e de restrição de si mesmo[13].
O relatório também revelou que os registros em prontuários são praticamente inexistentes, excetuando-se fatos pontuais. A prática diária é registrada em livro ata de passagem de plantão. Muitos prontuários sequer têm os dados completos dos usuários. Não há comprometimento, nem interesse em oficializar os registros adequadamente, com um monitoramento apropriado, capaz de garantir o devido processo penal. “Os presos/pacientes são atendidos através da grade, com pouquíssima ou nenhuma frequência. Não têm conhecimento de seu plano terapêutico, nem tampouco qual a previsão de saída da unidade”[14].
Em decorrência da fortalecida permanência do conceito de periculosidade e do populismo punitivo, há uma resistência evidente − em especial por parte do Poder Judiciário − quanto à concessão de liberdade (em caráter provisório e/ou definitivo) do sujeito em sofrimento psíquico. Isso se comprova com a grande quantidade de “pacientes/presos” com laudo de cessação de periculosidade positivo, e que mesmo assim, permanecem segregados: mais de 41% dentre os Estados analisados. Em apenas 17% dos casos são cumpridos os prazos de periodicidade para os exames de cessação de periculosidade, que é anual, segundo os artigos 97, §§ 1º e 2º do Código Penal e artigos 175 e 176 da Lei de Execução Penal. Em 35,29%, ou em mais de um a cada três casos, não é cumprida a periodicidade estabelecida em lei[15].
O “Relatório Brasil” de 2015 retrata, cirurgicamente, que na dinâmica de “racionalização da vingança”[16] pelo poder punitivo, toda violência (de forma velada ou explícita) torna-se legítima pelo discurso da “pretensa” necessidade de defesa social, assepsia urbana, normalização e inocuização. Quando se fala toda, entendem-se os mecanismos de neutralização (para)estatais, (i)legais e (des)autorizados.
Assim, o manicômio judiciário ou hospital de custódia e tratamento psiquiátrico é o reflexo da desumanização do doente e sua mortificação; passa a ser a representação de todos os excessos de um sistema penal deslegitimado[17] egenocida: é o casamento do pior da prisão com o pior do hospital psiquiátrico. Os dois sistemas disciplinares, isoladamente, já exprimem potencialidades violentas avassaladoras e quando unidos, além de opressivos, são trágicos eexterminadores, em definitivo.
Thayara Castelo Branco é Advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA. Doutora e mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, Crime e Segurança Pública. Professora da Graduação e da pós-graduação da Universidade Ceuma. Coordenadora da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Universidade Ceuma. Email: thaybranco@yahoo.com.br

[1] SILVA, Mozart Linhares da (org.). Direito e medicina no processo de invenção do anormal no Brasil. In:_. História, medicina e sociedade no Brasil. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 55.
[2] SZASZ, Thomas. Ideologia e doença mental…, P. 15.
[3] COOPER, David. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo: Perspectiva, 1989,p. 45.
[4] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 15.
[5] Os Estados que participaram foram: Pará (PA), Maranhão (MA), Piauí (PI), Rio Grande do Norte (RN), Paraíba (PB), Sergipe (SE), Alagoas (AL), Pernambuco (PE), Bahia (BA), Espírito Santo (ES), Rio de Janeiro (RJ), Santa Catarina (SC), Mato Grosso do Sul (MS), Goiás (GO), Mato Grosso (MT), Acre (AC) e Distrito Federal (DF).
[6] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 15.
[7] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 17.
[8] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 17.
[9] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 19.
[10] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 17.
[11] A Lei n° 9.455/97 determina expressamente que na mesma pena do crime de tortura incorre “quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”. Diante da Lei 10.216/01, torna-se terminantemente proibido o recolhimento em cadeia pública ou qualquer outro estabelecimento prisional, de pessoa em sofrimento psíquico, submetida à medida de segurança. Tal prática, ocasionada muita das vezes pela ausência de políticas públicas voltadas à saúde mental, além de violar o modelo assistencial atribuído pela Lei antimanicomial, constitui crime de tortura, conforme art. 1°, §1° da Lei 9455/97, por ele também respondendo quem se omite quando tinha o dever de apurar ou evitar tais situações, agravado quando cometido por agente público (§4°, III).
[12] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 18.
[13] BASAGLIA, Franco. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Organização Paulo Amarante. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, pp. 24-25.
[14] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 19.
[15] CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios. Relatório Brasil 2015. Brasília: CFP, 2015, p. 19.
[16] Sobre o assunto ver: GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
[17] “Os sistema penal e, sobretudo, a pena de prisão está deslegitimada, não cumpre as funções oficialmente declaradas, mas as funções declaradas seguem produzindo efeitos simbólicos, gerando a ilusão de que por meio dela se pode combater a criminalidade: logo, segue-se acreditando em Papai Noel e pedindo mais sistema penal e prisão, mais do mesmo.” (ANDRADE, Vera Regina. Pelas mãos da criminologia… p. 315.). Zaffaroni reitera a observação da prof. Vera Regina e explica sob outro prisma que “quando as tensões sociais e a violência coletiva excedem a capacidade manipuladora do sistema penal e a vingança o ultrapassa, ele é deslegitimado, pois perde-se a confiança em seu canalizador potencial da violência. Nessa emergência, as agências do poder punitivo procuram reter ou recuperar sua legitimidade canalizadora (que equivale a seu poder), pelo qual se colocam à frente da execução da vingança sacrificial, com a pretensão de canalizar o mérito do restabelecimento da paz.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos… p. 402.).
Quarta-feira, 5 de outubro de 2016

SOBRE O AUTOR

Thayara Castelo Branco
Thayara
//Coluna Liberdades Advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA. Doutora e mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, Crime e Segurança Pública. Professora da Graduação e da pós-graduação da Universidade Ceuma.
Fonte: Justificando. 05.10.2016.

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