Uma nova lei da Califórnia estabelece que o promotor que esconder ou alterar intencionalmente provas que poderiam beneficiar o réu, só para o condenar, cometerá um crime que pode ser punido com até três anos de prisão. A lei antiga qualificava essa “má conduta” como contravenção.
O problema existe há tempos. Mas a Assembleia Legislativa do estado só decidiu criar uma lei para corrigi-lo em março de 2015, quando foi descoberto um outro problema, que também já existia a tempos: a Promotoria do Condado de Orange, ao sul de Los Angeles, mantinha um programa com a prisão local, que consistia em colocar um informante na cela ao lado da cela de um réu, para fazer amizade e obter confissões.
Os informantes de fato obtinham informações comprometedoras dos réus, as passavam aos promotores. Segundo a legislação vigente e as jurisprudências emitidas pela Suprema Corte do país, deveriam repassá-las aos advogados de defesa. Mas não o faziam.
O esquema foi denunciado pelo defensor público Scott Sanders, cujo cliente contou seu caso a um informante da Promotoria e as informações obtidas não lhe foram repassadas. O juiz Thomas Goethals, que presidia o caso, removeu toda a Promotoria do Condado de Orange do processo e buscou promotores de outro condado para dar andamento à ação criminal.
A denúncia estourou no país como um escândalo e estimulou os senadores estaduais a aprovar a nova lei. A porta-voz da Promotoria do Condado de Orange, Susan Schroeder, disse ao jornal Los Angeles Times que seu chefe Tony Rackauckas aprovou a nova lei. Só lamentava o fato de que os advogados de defesa não fossem sujeitos à mesma lei.
Centenas de condenações terão de ser revistas pela Justiça, após a denúncia do escândalo, o que, obviamente, trará uma carga de trabalho extra para os tribunais do estado.
Provas exculpatórias
A lógica por trás da exigência, estabelecida em leis e em jurisprudências, de os promotores fornecerem aos advogados de defesa provas que dispõem que podem inocentar seus clientes — ou pelo menos amenizar a acusação criminal contra eles — é a de que a obrigação fundamental do promotor é busca a Justiça e não a condenação.
“A sociedade ganha não apenas quando o culpado é condenado, mas quando os julgamentos criminais são justos. Nosso sistema de administração da Justiça sofre quando qualquer acusado é tratado injustamente”, diz uma das jurisprudências.
“O promotor tem o dever de buscar justiça [acima da condenação] porque ele(a) não atua como um indivíduo, mas como um(a) representante do governo e da sociedade como um todo”, diz outra jurisprudência.
O Código de Ética dos advogados americanos também diz algo semelhante: “O dever primário de um advogado que atua como promotor público não é condenar; é fazer com que a Justiça seja feita. A supressão de provas que podem estabelecer a inocência de um réu é altamente repreensível”.
A obrigatoriedade de fornecer provas exculpatórias à defesa se baseia, também, na ideia de que os promotores, advogados e juízes têm a obrigação ética de assegurar um processo justo. Isso implica minimizar a disparidade de recursos da promotoria e da defesa no sistema de justiça criminal.
Um documento da Fordham Law Review diz, com base em estudo das jurisprudências relevantes:
“Como representante do estado, o promotor tem poderes que outros advogados não têm. Por exemplo, os promotores têm um amplo arbítrio para decidir que devem processar e que acusações vão apresentar”.
“Além disso, os promotores têm o benefício da força policial que investiga seus casos e obtêm provas para eles. Esse amplo acesso [a esse recurso] coloca a defesa em grande desvantagem na preparação de seus casos”.
“Nesse sistema de contraditório em que o promotor opera, a disponibilidade desses poderes resulta em uma grande injustiça entre a acusação e a defesa em um julgamento criminal”.
Em sua decisão mais famosa, Brady vs. Maryland, a Suprema Corte declarou que o promotor viola o direito do réu ao devido processo, garantido pela Constituição do país, quando esconde provas para facilitar a condenação. Essa é uma prática que, além de ilegal, resulta em anulação do julgamento.
A decisão do caso Brady vs. Maryland hoje é conhecida como a “Regra de Brady”. Posteriormente, a corte decidiu que a Regra de Brady se aplica mesmo quando um pedido específico para receber informações sobre provas tenha sido feito.
No entanto, a corte esclareceu que os promotores só são obrigados a disponibilizar à defesa provas materiais — entendo como provas matérias aquelas que apresentam uma probabilidade razoável de que, uma vez divulgadas à defesa, irão afetar o resultado dos procedimentos”.
A nova lei da Califórnia não se sintoniza inteiramente com as decisões da Suprema Corte, que determinou a obrigação de os promotores revelarem as provas exculpatórias à defesa, mas não prevê qualquer consequência para eles, se não o fazem, no âmbito criminal.
No âmbito civil, a Suprema Corte já decidiu que os promotores têm imunidade absoluta à responsabilização civil, caso falhem em divulgar prova exculpatórias à defesa.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016.
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