Ex-detentos contam a ajuda de projetos para voltar ao mercado de trabalho
O coordenador pedagógico e professor Aldo* tem uma vida longe de qualquer irregularidade: nem multas de trânsito ele possui. Não compra produtos falsificados e, quando dirige, não ultrapassa a velocidade máxima permitida em hipótese alguma. Mas guarda um segredo que apenas o filho mais velho conhece: há 15 anos, ele cometeu um crime e teve de cumprir cinco anos de pena. Atrás das grades, repensou o que havia feito e reestruturou toda a vida. Formou-se em filosofia e sociologia. Hoje, aos 37 anos, trabalha com a Carteira de Trabalho assinada em uma escola particular do Distrito Federal.
O caminho para essa nova realidade não foi fácil e, até hoje, Aldo não se sente completamente seguro de si. “Vou ser sempre um ex-presidiário. Por exemplo, tenho medo de estar em um banco, acontecer um assalto e eu ser o primeiro suspeito da lista da polícia, mesmo não tendo feito nada”, desabafa. Em 1996, o rapaz comprou um carro roubado, alterou o chassi e andou com o veículo durante um ano até resolver vendê-lo. Foi aí que o Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) notou uma irregularidade e, descoberto o crime, Aldo foi a julgamento. A condenação a cinco anos de regime semiaberto — execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, com trabalho em comum — foi em 2001, mas ele só recebeu voz de prisão em 2003: “Não ofereci resistência. Queria pagar a pena logo, me ver livre daquilo e conseguir dormir tranquilo”.
À época, Aldo tinha 29 anos, havia estudado até a sexta série do ensino fundamental e atuava como vigia noturno. Como o trabalho externo é admissível no regime em que cumpria a pena, ele manteve o emprego. Três meses depois, contudo, acabou pedindo demissão por medo de se envolver em alguma situação na qual pudesse ser acusado injustamente. Conseguiu então uma vaga na Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do Distrito Federal (Funap-DF), que oferece emprego a detentos no próprio órgão e em empresas parceiras. Foi ali, com o amparo dos patrões, a ajuda psicológica oferecida e a noção de que o trabalho lhe traria boas oportunidades de vida, que o hoje profissional da educação começou a pensar melhor no futuro.
A vontade de mudar a sorte não é exclusiva de Aldo. De acordo com José Pastore, professor de relações do trabalho na Universidade de São Paulo (USP), muitos presidiários querem outra vida mesmo parecendo que na criminalidade tudo é mais fácil. “A grande maioria dos egressos quer trabalhar. Eu provoco bastante o pessoal nos presídios. Digo a eles que vão ganhar R$ 700, R$ 800 por mês, e que eles conseguiam R$ 5 mil por assalto. Ainda assim, a maior parte deles quer reconstruir a vida”, relata. O estímulo para essa busca vem no formato de redução de pena: para cada três dias de trabalho ou 12 horas em sala de aula, o detento fica um dia a menos no cárcere.
De acordo com a Funap, dos cerca de 9,8 mil presos no DF, 1,5 mil estão estudando e outros 1,3 mil têm emprego. A formação profissional se dá, geralmente, pela ajuda do governo, como nos cursos de capacitação para a área de informática do Ponto de Inclusão, que atendem a população em geral. Além da qualificação da mão de obra em aulas pontuais, os detentos têm a oportunidade de concluir os estudos até o ensino médio. Alguns deles conseguem entrar para uma graduação. Foi o caso de Aldo, que, depois de completar o ensino fundamental graças a um curso supletivo, foi um dos 30 detentos selecionados em um vestibular especial da Universidade Católica de Brasília (UCB). Para passar na prova, ele estudava no presídio até depois das 22h, quando as luzes eram apagadas. Aldo pedia para ir ao banheiro, ficava em pé e só conseguia enxergar os livros por uma fresta de luz que entrava pela janela, de um poste de iluminação pública. Hoje, acumula três pós-graduações e está se preparando para cursar um mestrado. “Prefiro pensar que eu nasci no dia em que fui solto. Minha vida começou ali.”
Mas por que contratar um egresso do sistema prisional ou até mesmo alguém que ainda esteja pagando pelo crime que cometeu? O primeiro ponto abordado pelos especialistas é a contribuição para a segurança e o bem-estar da sociedade. “A reincidência dos ex-detentos na criminalidade é de 70% para os que não conseguem emprego. Quando eles trabalham, esse número cai para 20%”, expõe o professor Pastore. Além disso, no caso dos presos, existe a questão financeira, que é atrativa para o patrão. “É importante porque o empregador não tem encargos
sociais, apenas salário, vale-transporte e vale-alimentação”, explica o diretor executivo da Funap-DF, Adalberto Monteiro. O detento começa com pelo menos 75% de um salário mínimo, sendo que um terço da quantia deve ser para a família, outro para ele mesmo, e o restante fica guardado para quando ele tiver a liberdade.
É segredo
Como morava sozinho e tinha a permissão de sair do cárcere aos fins de semana a cada 15 dias, Aldo conseguiu manter o sigilo. A família dele não ficou sabendo da prisão nem mesmo quando ele estava cumprindo pena. Embora todos na Funap o conheçam e saibam da história, fora dali ninguém imagina o passado dele, muito menos os empregadores atuais. Ele não quis contar nada na entrevista de emprego e não deixou o segredo escapar para nenhum colega de trabalho. “Acho que não tem necessidade de expor minha vida desse jeito, isso só diz respeito a mim. A sociedade é muito preconceituosa”, opina.
De fato, não existe necessidade de comentar o fato com ninguém, de acordo com o diretor de novos serviços e produtos da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), Cezar Tegon. “Há coisas da vida privada que não necessariamente precisam ser faladas. Depois de um tempo, se o assunto surgir e a pessoa se sentir à vontade para conversar, ótimo. Se não, não precisa sair falando. O que o ex-presidiário fez não é algo que tenha que ser compartilhado com alguém”, defende. Mais que isso, segundo o especialista, se o patrão souber do passado do funcionário, deve protegê-lo em sigilo absoluto e não dizer nada aos outros empregados.
* Nome fictício para preservar a identidade do entrevistado
Palavra de especialista
Perguntar ofende
Exigir a certidão de antecedentes criminais para a entrevista de emprego é discriminação, o empregador não pode fazer isso. Se for requerido esse nada consta, a pessoa deve denunciar, porque o Ministério Público do Trabalho vai fiscalizar e até mesmo multar essa empresa. A atitude é inconstitucional e discriminatória. É a mesma coisa que pedir para o candidato mostrar um teste de HIV. Também não pode ter assédio moral no ambiente de trabalho. Se os colegas descobrirem e começarem a ter algum tipo de discriminação em relação a isso, a empresa deve advertir, punir e até mesmo demitir esses funcionários. Caso o empregador saiba que esse tipo de assédio vem acontecendo e não fizer nada, responderá pelo ato.
Clarisse Dinelly, advogada especializada em direito trabalhista
Fonte: Correio Brasiliense
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