Debate na PGR discutiu a possibilidade de implementação de nova metodologia na Polícia Militar sob a ótica dos direitos humanos
Foto: Antonio Augusto/Secom/PGR
Qual polícia temos? Qual queremos? E de qual precisamos? Avançar na resposta a esses questionamentos foi o principal objetivo do debate "Desmilitarizar a polícia: segurança pública e direitos humanos", realizado na Procuradoria-Geral da República (PGR) nessa terça-feira (13). A discussão envolveu especialistas da área de segurança pública, policiais militares, autoridades com experiência na temática e representantes da sociedade civil. O encontro foi promovido pela Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público Federal (7CCR/MPF) em parceria com a Organização Não Governamental (ONG) Justiça Global.
O debate contou com a participação do especialista em segurança pública, escritor e professor Luiz Eduardo Soares; do coordenador da 7CCR, subprocurador-geral da República Domingos da Silveira; de Sandra Carvalho, socióloga, coordenadora da Organização Não Governamental Justiça Global e integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos; e de Elias Miller, coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e diretor da Federação Nacional de Oficiais Militares Estaduais. A mesa também contou com a presença da subprocuradora-geral da República Sandra Cureau, integrante da 7CCR que, na abertura do evento, leu nota de apoio ao debate enviada ao órgão pela Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência, subscrita por 45 entidades da sociedade civil (veja a íntegra abaixo).
Modelo ineficaz – Para o especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares, participante do debate, é necessário admitir que o modelo de polícia militarizada atuante no Brasil é, em essência, ineficaz. Ele argumenta que a vedação constitucional que impede a polícia militar de investigar um delito gera um ciclo incompleto na solução de crimes. De acordo com Luiz Eduardo, policiais militares que estão na rua trabalham muitas vezes de forma precária e suportam a enorme cobrança da sociedade, da mídia e até mesmo de seus superiores para entregarem resultados práticos. Para isso, recorrem ao único meio à sua disposição: a prisão em flagrante. O resultado é uma polícia que prende muito e prende mal. O principal alvo, segundo o especialista, são indivíduos flagrados em conduta tipificada como tráfico de drogas.
Ainda de acordo com Luiz Eduardo, esse quadro revela um método de encarceramento que atinge diretamente o jovem negro e pobre de comunidades periféricas, classificado por ele como mero “varejista do tráfico”. O grande traficante, por sua vez, permanece impune. O especialista narra que, uma vez dentro do sistema prisional, esse jovem se vê obrigado a entrar para facções criminosas como forma de se proteger. Ao regressar ao convívio em sociedade, passa a dever lealdade às facções, em um ciclo que se retroalimenta diariamente, condenando uma juventude “perfeitamente recuperável” a uma vida de crime. “A segurança pública tem servido para reproduzir e aprofundar o sofrimento humano em uma guerra fratricida que vitimiza jovens dos dois lados, tanto das comunidades quanto policiais militares. Não podemos admitir a intensificação das mesmas atitudes que nos trouxeram a esse quadro”, ponderou.
Para o coronel Elias Miler, é preciso esclarecer o que se propõe com desmilitarização e as medidas necessárias para que se estabeleça um novo modelo que seja mais efetivo que o atual. De acordo com ele, é preciso realizar uma discussão ampla e que envolva toda a sociedade. O coronel defende que o problema não está na organização militar em si, que, de acordo com ele, baseia-se na hierarquia e em valores como disciplina e respeito. Miler destacou o risco que os policiais vivenciam diariamente em defesa da população e a importância de se colocar no lugar desses policias, tratando-os também de forma humanizada. "O debate é importante para se ter outras interfaces e para que possamos rever valores. O policial não merece ser visto como inimigo. Ele não é treinado para matar, como costumam dizer, e sim para defender", pontuou.
Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global, argumentou que, independente da posição política ou ideológica, é necessário repensar o modelo atual. De acordo com ela, a metodologia de combate empregada pelas forças policiais, não só pela polícia militar, acaba por vitimar especialmente o cidadão residente em localidades periféricas. Esses indivíduos, de acordo com ela, ficam no meio do fogo cruzado e se veem reféns das facções criminosas e das milícias em face da falta de efetividade do estado na garantia da segurança pública. "Para que tenhamos uma sociedade mais segura, precisamos de investimento em políticas públicas voltadas a mitigar a pobreza e a marginalização. Quando o investimento é direcionado ao aumento do aparato militar para ocupação de comunidades, vamos na contramão disso, impondo fechamento de escolas, unidades de saúde e a perda da dignidade dos cidadãos que ali residem", concluiu.
O coordenador da 7CCR, subprocurador-geral da República Domingos da Silveira, apontou que é necessário repensar a segurança pública sob a perspectiva preponderante dos direitos humanos. De acordo com ele, o debate é imprescindível para evitar que violações praticadas pelo estado brasileiro por décadas continuem a se repetir. De acordo com o subprocurador-geral, temos hoje uma policia que é campeã no planeta em letalidade. É também uma das que mais morre. E questionou: “será essa uma policia que protege? Como podemos proteger melhor a população e os próprios policiais?”. Ele salientou a importância da participação plural e democrática dos debatedores e de suas instituições para a busca conjunta por uma solução mais efetiva para a segurança pública.“O MP tem o compromisso e o dever de fomentar e participar da construção de políticas públicas que sejam muito mais geradoras de vidas e de segurança do que de morte. Se repetirmos os métodos alcançaremos mais do mesmo”, concluiu.
Dados – Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somente em 2018, foram registradas mais de 50 mil mortes violentas no Brasil. Em 2017, foram mais de 60 mil, índices comparados aos de países em conflito. Outro dado alarmante diz respeito ao crescimento da população carcerária, que já ultrapassa os 700 mil presos. Destes, apenas 13% respondem pelo crime de homicídio, enquanto 28% estão presos por tráfico de drogas. Entre a população carcerária feminina, esse índice é ainda mais preocupante: 62% das detentas respondem por tráfico de drogas. A taxa de resolução de homicídios, por sua vez, é outro fator que chama a atenção: apenas por volta de 5 a 8% dos crimes desse tipo são solucionados. O número de policiais mortos também é considerado alto: em 2018, somente no Rio de Janeiro, estima-se que mais de 100 PMs foram mortos, a maioria fora do horário de serviço.
Exposição fotográfica – Como parte da programação do debate, foi lançada na PGR uma mostra de fotografias que retratam o cotidiano em áreas periféricas onde a polícia militarizada atua. As fotos trazem relatos de violência policial e violação de direitos em favelas, no campo e em territórios indígenas e tradicionais, nos sistemas de privação de liberdade, na escola, no judiciário, na política e nas resistências.
Os trabalhos estão expostos na passarela do 3º andar da Procuradoria-Geral da República (PGR), com visitação aberta ao público até 13 de setembro, de segunda a sexta-feira, das 13h às 18h. A entrada é gratuita e, para ter acesso à mostra, é preciso apenas realizar o cadastro prévio na recepção do bloco B da PGR. Saiba mais sobre a exposição.
Íntegra da Nota de Apoio ao debate enviada pela Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência:
Nota de apoio
Ao senhor Subprocurador-Geral da República, Dr. Domingos Sávio Dresch da Silveira, e aos demais membros da 7°CCR / MPF,
Nós, membros da Rede de Comunidade e Movimentos Contra Violência, movimento social fundado e formado por mães e familiares de vítimas de violência do Estado – sobretudo, da violência policial –, saudamos a 7° CCR / MPF e a ONG Justiça Global pela iniciativa de realizar um debate sério e comprometido sobre segurança pública e direitos humanos com foco na questão da desmilitarização. As pressões e ataques dirigidos aos organizadores e ao professor Luiz Eduardo Soares nas últimas semanas refletem o quão necessárias são iniciativas como essa. Apenas quando for entendido que a atenção e o compromisso com os direitos humanos é uma condição fundamental para um projeto de segurança pública eficaz, que garanta e proteja direitos ao invés de ceifar vidas, conseguiremos avançar no enfrentamento da violência e do racismo estruturais, bem como na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Ao promover um debate altamente qualificado sobre o tema com participação de representantes da Sociedade Civil, o Ministério Público Federal cumpre com seu papel na defesa dos direitos sociais e do regime democrático de direito.
Cordialmente,
Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência.
Subscrevem essa nota de apoio os seguintes movimentos, coletivos e organizações:
1) Rede de Mães e Familiares da Baixada - RJ
2) Movimento Mães do Cárcere - SP
3) Mães de Maio do Cerrado - GO e DF
4) Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescentes em Risco - AMAR Nacional
5) Mães de Maio - SP
6) Movimento de Familiares de Presos (as) - AM
7) Frente Estadual pelo Desencarceramento - RJ
8) Movimento Moleque - RJ
9) Mães em Luto da Zona Leste - SP
10) Mães do Curió – CE
11) Movimento Parem de Nos Matar – RJ
12) Associaçao de Amigos e Familiares de apessoas em Privaçao de Liberdade – MG
13) Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará - CE
14) Frente Mineira pelo Desencarceramento - MG
15) Familiares do Sistema Prisional da Bahia - BA
16) Coletivo Todxs Unidxs - RJ
17) Associação dos Familiares e Amigos dos Encarcerados do Mato Grosso do Sul - MS
18) Movimento de mães e familiares de vítima do Complexo da Maré - RJ
19) Associação de moradores do Complexo da Maré - RJ
20) Redes da Maré - RJ
21) Observatório da Maré - RJ
22) Museu de Artes da Maré - RJ
23) Ile Ase Opo Olodoide - SP
24) Coletivo Em Silêncio - RJ
25) Conectas Direitos Humanos - SP
26) Laboratório Interdisciplinar de Extensão e Pesquisa Social - (LIEPS/IFRJ)
27) Rede de Feministas Antiproibicionistas (RENFA)
28) Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
29) Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense (UFF)
30) Liberta Elas - PE
31) Associação Elas Existem - Mulheres Encarceradas – RJ
32) Movimenta Caxias - RJ
33) Articulação de Mulheres Brasileiras / AMB- RJ
34) Centro pela Justiça e o Direito Internacional - CEJIL
35) Movimento Negro Unificado (MNU)
36) Psicanalistas Unidos pela Democracia - RJ
37) Coletivo Nenhum Serviço de Saúde a Menos – RJ
38) Instituto Negra do Ceará- INEGRA/CE
39) CRIOLA – RJ
40) Fórum de juventudes do Rio de Janeiro – FJRJ
41) Grupo Tortura Nunca Mais – GTNM / RJ
42) Marcha das Favelas pela Legalização - RJ
43) Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop/PE)
44) Comissão Popular de Verdade – RJ
45) Fórum de Saúde do Estado do Rio de Janeiro - RJ
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