A busca pela conciliação entre segurança jurídica e justiça material tem levado o Poder Judiciário – em especial o Supremo Tribunal Federal – a atualizar seus entendimentos a respeito da aplicação da Lei 11.343/2006, também conhecida como Lei de Drogas.
Em sintonia com essas mudanças, o Superior Tribunal de Justiça lançou uma nova edição compilada da publicação Jurisprudência em Teses sobre a Lei de Drogas, reunindo em um só exemplar vários aspectos da interpretação da legislação federal sobre o tráfico de entorpecentes, as penas cabíveis para os diversos delitos e as circunstâncias minorantes que podem ser aplicadas a cada caso.
Segundo dados do Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem hoje cerca de 812 mil presos. Em agosto do ano passado, o detalhamento do perfil da população carcerária indicava que quase um quarto dela estava envolvida com acusações de violação da Lei de Drogas.
Dos mais de 346 mil processos recebidos em 2018 pelo STJ, aproximadamente 23% referem-se a tráfico e condutas afins. A maioria desses casos – em geral apreciados pelas turmas que integram a Terceira Seção, especializada em direito penal – é de habeas corpus e recurso em habeas corpus.
Uma das questões mais polêmicas em relação à Lei de Drogas, atualmente, diz respeito ao artigo 28, cuja constitucionalidade tem sido objeto de acirrados debates, que contrapõem a legitimidade da tutela do direito penal às garantias da intimidade e da vida privada – o que ainda está em discussão no STF. O julgamento do RE 635.659 está previsto para acontecer no segundo semestre deste ano, quando a corte suprema decidirá sobre a tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal.
No STJ, há posições divergentes quanto à possibilidade de condenações com base no artigo 28 serem usadas para caracterizar reincidência, uma vez que a conduta não é punida com prisão.
Substituição da pena
No compilado da Lei de Drogas preparado pela Secretaria de Jurisprudência do STJ, uma das teses destacadas (são 59 no total) estabelece que, "reconhecida a inconstitucionalidade da vedação prevista na parte final do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, inexiste óbice à substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos aos condenados pelo crime de tráfico de drogas, desde que preenchidos os requisitos do artigo 44 do Código Penal".
A partir do julgamento do HC 97.256 pelo STF, quando foi declarada incidentalmente a parcial inconstitucionalidade do parágrafo 4º do artigo 33 e do artigo 44 da Lei de Drogas, o benefício da substituição da pena passou a ser concedido aos condenados pelo crime de tráfico, se preenchidos os requisitos do artigo 44 do Código Penal.
Seguindo esse posicionamento, o STJ tem aplicado a individualização da pena, trazendo uma personalização da resposta punitiva do Estado, ao reconhecer casos em que o paciente pode se beneficiar do regime aberto se for réu primário, condenado a pena que não exceda quatro anos de reclusão e não apresente circunstâncias desabonadoras.
Tomando por base esse novo entendimento, ao analisar o HC 482.234, a 5ª Turma decidiu pela concessão do benefício da substituição da pena para um condenado ao regime fechado pelo crime de tráfico.
Segundo o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, todos os requisitos do artigo 44 do Código Penal foram preenchidos no caso – tanto em relação à fixação da pena-base quanto em relação à redução do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas.
O ministro destacou ainda que a quantidade das drogas apreendidas com o condenado não foi expressiva (9,1g de cocaína e 33,3g de maconha) e, portanto, tal fundamento não seria suficiente para justificar o estabelecimento do regime inicial fechado e a negativa de substituição da pena.
"O quantum da condenação (um ano e oito meses de reclusão), a primariedade e a análise favorável das circunstâncias judiciais permitem ao paciente iniciar o cumprimento da pena privativa de liberdade no regime aberto e ter sua pena substituída por medidas restritivas de direitos, a teor do disposto nos artigos 33, parágrafos 2º e 3º, e 44, ambos do Código Penal", explicou o relator.
Reincidência
"A conduta de porte de substância entorpecente para consumo próprio, prevista no artigo 28 da Lei 11.343/2006, foi apenas despenalizada pela nova Lei de Drogas, mas não descriminalizada, não havendo, portanto, abolitio criminis." Esta é outra tese destacada pela Secretaria de Jurisprudência.
Em seu voto no HC 478.757, julgado pela 5ª Turma, o ministro Felix Fischer explicou que o STJ tem seguido o posicionamento firmado pelo STF na questão de ordem no RE 430.105, quando foi decidido que o porte de entorpecente para consumo próprio foi despenalizado, mas não descriminalizado.
No caso analisado, um condenado por furto pediu redução de pena, a qual havia sido aumentada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em razão de reincidência, pois ele ostentava em sua ficha uma antiga condenação pelo crime de posse de drogas para consumo próprio.
Para Fischer, mesmo sendo reconhecida a reincidência genérica, referente à condenação pelo delito do artigo 28, o regime para início de cumprimento da pena deve ser o aberto, conforme o entendimento constante das Súmulas 718 e 719 do STF e da Súmula 440 do STJ.
"Preenchidos os requisitos do artigo 44, parágrafo 3º, do Código Penal – quais sejam, pena não superior a quatro anos, o crime não foi cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, réu não reincidente específico e circunstâncias judiciais favoráveis –, o paciente faz jus à substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos", afirmou o relator.
Desproporcional
O entendimento sobre porte para consumo próprio e reincidência não está pacificado no âmbito do STJ, como revela a seguinte tese: "As contravenções penais, puníveis com pena de prisão simples, não geram reincidência, mostrando-se, portanto, desproporcional que condenações anteriores pelo delito do artigo 28 da Lei 11.343/2006 configurem reincidência, uma vez que não são puníveis com pena privativa de liberdade".
No julgamento do agravo regimental no REsp 1.778.346, a 6ª Turma negou a pretensão do Ministério Público, que pedia que condenação anterior pelo crime do artigo 28 fosse utilizada para aumentar a pena.
Segundo o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, as condenações anteriores por contravenções penais não são aptas a gerar reincidência, tendo em vista o que dispõe o artigo 63 do Código Penal, que se refere apenas a "crime anterior".
"Se as contravenções penais, puníveis com pena de prisão simples, não geram reincidência, mostra-se desproporcional o delito do artigo 28 da Lei 11.343/2006 configurar reincidência, tendo em vista que nem é punível com pena privativa de liberdade", destacou.
Crime hediondo
Sobre tráfico privilegiado e crime hediondo, o tribunal tem o seguinte entendimento: "O tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada (artigo 33, parágrafo 4º) não é crime equiparado a hediondo".
A tese foi firmada pela 3ª Seção por ocasião do julgamento do Tema 600 dos recursos repetitivos (revisão de tese) e gerou o cancelamento da Súmula 512 do STJ.
Durante a análise do agravo regimental no HC 485.746, a 5ª Turma expressou esse entendimento. A controvérsia tratou do regime de cumprimento de pena e da substituição da condenação de um ano e oito meses de reclusão, em regime fechado, por pena restritiva de direitos para paciente condenada por tráfico privilegiado em razão da posse de 256,2g de maconha.
O ministro Joel Ilan Paciornik observou que o STF, ao julgar o HC 111.840, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/1990, com a redação que lhe foi dada pela Lei 11.464/2007, afastando, dessa forma, a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por crimes hediondos e equiparados.
Segundo o ministro, o STJ também firmou entendimento de que, nos delitos previstos na Lei de Drogas, a fixação do regime prisional deve observar a regra do artigo 33, parágrafo 2º, do Código Penal, em conjunto com o artigo 42 da Lei 11.343/2006, que determina a consideração, preponderantemente, da natureza e da quantidade da droga.
"No caso dos autos, encontra-se evidenciado o constrangimento ilegal, pois, em razão de as circunstâncias judiciais serem favoráveis, a pena-base ter sido fixada no mínimo legal, tendo sido reduzida a pena pela minorante do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, a pena aplicada ser inferior a quatro anos, e a quantidade de droga apreendida não ter sido tão expressiva, o regime a ser imposto deve ser o aberto, de acordo com o disposto no artigo 33, parágrafos 2º, c, e 3º, do Código Penal, e em consonância com a jurisprudência desta 5ª Turma", afirmou.
Condenação simultânea
Outra tese destacada afirma que "é inviável a aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 quando há condenação simultânea do agente nos crimes de tráfico de drogas e de associação para o tráfico, por restar evidenciada a sua dedicação a atividades criminosas ou a sua participação em organização criminosa".
Com esse entendimento, a 6ª Turma rejeitou o pedido da defesa para que um réu fosse enquadrado em tráfico privilegiado, após ter sido condenado simultaneamente pelos crimes de tráfico de drogas e de associação para o tráfico (AgRg no AREsp 1.282.174).
Os ministros concluíram que, mesmo sendo o réu primário, mantida a condenação pelo crime de associação para o tráfico, não há como reconhecer em seu favor a incidência da minorante do tráfico privilegiado.
Para o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a elevada quantidade de entorpecente apreendida com o réu – 29,350kg de maconha – pode justificar a exasperação da pena-base, como demonstra a jurisprudência do STJ.
"O tribunal de origem, ao entender devida a condenação do recorrente em relação ao crime previsto no artigo 35 da Lei 11.343/2006, apontou elementos concretos, constantes dos autos, que efetivamente evidenciam a estabilidade e a permanência exigidas para a configuração de crime autônomo, de maneira que não identifico nenhuma violação legal no ponto em que houve a condenação do acusado pelo delito de associação para o narcotráfico", explicou o relator.
Mula do tráfico
O compilado também traz a tese segundo a qual "a condição de 'mula' do tráfico, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação da minorante do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006, uma vez que a figura de transportador da droga não induz, automaticamente, à conclusão de que o agente integre, de forma estável e permanente, organização criminosa".
Para a 6ª Turma, a pessoa que transporta drogas ilícitas, conhecida como "mula do tráfico", nem sempre integra a organização criminosa. Assim, o colegiado negou provimento a recurso em que o Ministério Público questionava a aplicação da minorante do tráfico privilegiado sob o argumento de que o transporte de droga, em quantidade expressiva, pressupõe que a pessoa responsável pela tarefa seja parte da estrutura criminosa (AgRg no REsp 1.772.711).
De acordo com a ministra Laurita Vaz, a jurisprudência do STJ tem acompanhado a atual posição do STF, entendendo que, se não há prova inequívoca do envolvimento estável e permanente do agente com a organização criminosa, não se pode afastar automaticamente a caracterização do tráfico privilegiado.
"Ademais, a jurisprudência desta Corte Superior entende que, nesse contexto, é adequada a aplicação da minorante do tráfico privilegiado, mas em fração inferior a dois terços", afirmou.
Conheça a ferramenta
Lançada em maio de 2014, a ferramenta Jurisprudência em Teses apresenta entendimentos do STJ sobre temas específicos, escolhidos de acordo com sua relevância no âmbito jurídico.
Cada edição reúne teses identificadas pela Secretaria de Jurisprudência após cuidadosa pesquisa nos precedentes do tribunal. Abaixo de cada uma delas, o usuário pode conferir os precedentes mais recentes sobre o tema, selecionados até a data especificada no documento.
Para visualizar a página, clique em Jurisprudência > Jurisprudência em Teses, na barra superior do site. Com informações da assessoria de imprensa do Superior Tribunal de Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2019.