Março é considerado o mês das mulheres. Infelizmente, no Brasil, ainda há pouco o que comemorar e muitos direitos pelos quais lutar. Especialmente, existe uma forte dificuldade de se consolidar a garantia constitucional de igualdade material de gêneros, prevista no artigo 5º, I, da Constituição Federal. Interessante que, no campo do Direito Penal, há algumas práticas atualmente aceitas que possuem graves consequências para os direitos das mulheres.
Um ato bárbaro que ainda acontece em diversas penitenciárias brasileiras é a revista íntima em visitantes. Embora seja uma prática comum aos visitantes de ambos os gêneros, ela reflete especialmente no aumento da população carcerária feminina pelo crime de tráfico de drogas de pequena lesividade, como têm comprovado algumas pesquisas empíricas.
Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Infopen de 2018)[1] atestam que a ampla maioria dos visitantes de presídios é de indivíduos do sexo feminino[2]. A ala dos detentos masculinos é muito mais visitada do que a das presas[3].
Não é difícil perceber que, no Brasil, por uma cultura estruturalmente machista, os homens presos recebem o maior número de visitas. Na maioria dos casos, quando as mulheres estão encarceradas, elas não recebem visitas de seus companheiros. Além disso, tem sido imposto às mulheres o pesado fardo de manter a unidade familiar pela prestação do afeto, acolhimento e suporte, mesmo após o encarceramento:
Os dados supracitados corroboram a afirmação de que as mulheres são encarregadas pelas normas de gênero de cuidar do seu núcleo afetivo, independentemente das circunstâncias, atando e sustentando seus laços ternos, sejam eles: maternos, fraternos ou matrimoniais, diferentemente do que ocorre com os homens, os quais assumem uma postura individualista e pouco solidária, pois, em que pese receberem mais visitas, não as realizam[4].
O fato de as mulheres serem as pessoas que mais visitam presos e por elas se submeterem à revista íntima com maior frequência acaba por contribuir com o vertiginoso aumento do encarceramento feminino, em especial pelo crime de tráfico de drogas de pequena lesividade. Os dados empíricos sobre o encarceramento feminino são alarmantes.
Destaca-se que o Brasil é a quarta maior população carcerária feminina no mundo (Infopen 2016). O país fica atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia, em termos de número absoluto de mulheres encarceradas. Quanto à taxa de aprisionamento, em que se indica o número de mulheres presas para cada grupo de cem mil, o Brasil está na terceira posição entre os países que mais encarceram, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Tailândia.
O dado mais estarrecedor, contudo, é o crescimento da população carcerária feminina nos últimos 16 anos. A expansão do encarceramento de mulheres no Brasil não encontra parâmetro de comparabilidade entre o grupo de países que mais encarceram no mundo. Entre 2000 e 2016, a população carcerária feminina cresceu, no nosso país, 455%, quase quatro vezes e meia o crescimento da população carcerária feminina da China.
A maior causa para o aumento vertiginoso do encarceramento feminino, segundo o Infopen, são os crimes relacionados com o tráfico de drogas[5], que correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016. Ou seja, três em cada cinco mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico.
Ainda segundo dados do Infopen, a maioria das apenadas ingressou no tráfico de drogas por influência do marido, cônjuge ou companheiro, atuando geralmente como partícipe de menor influência e em contextos nos quais foi compelida a participar por receio de perder o companheiro, por ação de facções rivais, ou de agentes da segurança[6]. Em dissertação sobre os reflexos da política de guerra ao tráfico de drogas no aumento da população carcerária feminina, Monique Elba relembrou algumas pesquisas empíricas realizadas sobre o assunto.
Por exemplo, em pesquisa do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, localizado em Fortaleza, não foi encontrado, “entre as mulheres encarceradas por tráfico de drogas, nenhuma que fosse chefe do narcotráfico ou dona de boca de fumo”[7]. De outro lado, “81,4% das detentas afirmaram trabalhar em postos de menor relevância na hierarquia do tráfico (como mula, vapor, vendedora)”[8].
Outra pesquisa empírica desenvolvida no Rio de Janeiro, em 2002, para apurar o perfil das mulheres encarceradas pelo crime de tráfico de drogas concluiu que “78,4% das presas condenadas por esse delito referiram-se a funções subsidiárias ou a situações equívocas que, por infortúnio, as teriam levado à prisão”[9]. Em suma, a maioria das mulheres envolvidas nos delitos relacionados com a mercancia de drogas desempenha função de baixa relevância. Tal fato, obviamente, não deixa de ser também um preconceito dentro desse mercado ilícito.
O fato é que a revista íntima acaba por colaborar de forma substancial para o alarmante aumento do encarceramento feminino, especialmente em relação àquelas mulheres que desempenham papéis de baixa contribuição no tráfico de drogas. Notadamente, há um grande número de mulheres presas por tentar ingressar com pequena quantidade de drogas em penitenciárias de todo o país.
Um estudo desenvolvido pela socióloga Julita Lembruger e apresentado durante o Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça, afirma que 35% da população carcerária feminina do Distrito Federal são mulheres flagradas ao entregar drogas em presídios.
Ou seja, observa-se que a revista íntima é uma forma de violência institucionalizada que atinge com maior intensidade as mulheres, pois empiricamente são elas as principais visitantes das penitenciárias federais e estaduais. Além disso, tal prática tem contribuído para o alarmante aumento da população carcerária feminina no Brasil, o qual não encontra parâmetros de comparabilidade com nenhum outro país no mundo.
Justamente por isso, a revista íntima é uma política de criminalização e de tortura institucional que colabora de forma substancial para assentar ainda mais a desigualdade estrutural entre o homem e a mulher e, por isso, viola o princípio constitucional da igualdade material entre os gêneros, previsto no artigo 5º, I, da Constituição da República.
[1] http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf (p. 24-27).
[2] Informações da direção do Presídio Central de Porto Alegre, tido como um dos piores do Brasil, demonstram que, no ano de 2013, ocorreram 194.015 visitas femininas, 25.446 visitas masculinas e 20.208 visitas de crianças (RUDNICKI, Dani; SANTOS, Carla Cristiane Dias dos, Percepções sobre o direito de visita no Presídio Central de Porto Alegre, Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 23, Vol. 115, jul./ago., 2015, p. 317).
[3] Vide dados de 2016, do Infopen 2018, (http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf p. 27-28), os quais atestam que, "nos estabelecimentos masculinos, foram realizadas, em média, 7,8 visitas por pessoa ao longo do semestre, enquanto nos estabelecimentos femininos e mistos, essa média cai para 5,9 por pessoa privada de liberdade. Destacam-se os estados do Amazonas, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte, em que a média de visitas realizadas nos estabelecimentos masculinos é mais de 5 vezes maior que a média nos estabelecimentos femininos".
[5] Incluem os crimes de drogas os artigos 12 da Lei 6.368/76 e 33 da Lei 11.343/06; associação para o tráfico, os artigos 14 da Lei 6.368/76 e 35 da Lei 11.343/06; e tráfico internacional de drogas, os artigos 18 da Lei 6.368/76 e 33 e 40, I, da Lei 11.343/06.
[6] http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf (p. 40-43).
[7] SAMPAIO DE DEOUZA, Monique Elba Marques de Carvalho. As mulheres e o tráfico de drogas: linhas sobre os processos de criminalização das mulheres no Brasil, Brasília, março de 2015. p 48.
[8] SAMPAIO DE DEOUZA, Monique Elba Marques de Carvalho. As mulheres e o tráfico de drogas: linhas sobre os processos de criminalização das mulheres no Brasil, Brasília, março de 2015. p 48.
[9] SAMPAIO DE DEOUZA, Monique Elba Marques de Carvalho. As mulheres e o tráfico de drogas: linhas sobre os processos de criminalização das mulheres no Brasil, Brasília, março de 2015. p 49.
João Marcos Braga de Melo é advogado criminalista, sócio da Braga de Melo Advocacia Criminal. Professor voluntário da Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal e mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2019.
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