Algumas ideias permeiam a mente do povo brasileiro e ajudam a encher de esperança um recipiente atravessado de furos. O “sonho brasileiro” (quase sempre estadunidense) de trabalhar muito e ficar rico está presente em boa parte das pessoas, mas, estranhamente, só se concretiza para uma parcela mínima da população. Será que os pobres não investiram o suficiente na bolsa de valores? A classe média não se esforçou o bastante para conquistar seu primeiro milhão? Ou então não seguiram as dicas de ouro da visionária da visionária Bettina?[1]
Falar sobre meritocracia, e chance igual para todos os indivíduos de se tornarem ricos, em um país que tem uma das maiores taxas de desigualdade do mundo, se aproxima mais do campo folclórico do que do âmbito argumentativo. O Brasil até pode ser considerado um país “rico”, afinal, somos um dos maiores PIBs do mundo, mas a pergunta que resta é: como é distribuída essa riqueza que produzimos? Será que a riqueza produzida por muitos é expropriada por poucos?
Nesse contexto, insere-se a população em situação de rua. Grupo heterogêneo, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal. Com o tempo, algum infortúnio atingiu suas vidas, fazendo com que aos poucos fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, passando a utilizar o espaço da rua como sobrevivência e moradia.
Rompimento de vínculos familiares, desemprego, uso abusivo de substâncias psicoativas, deficiência mental, subemprego, dentre outros tantos, são motivos que levam as pessoas a morarem nas ruas. Isso quando esses múltiplos fatores não se interseccionam.
Dia 19 de agosto, aliás, foi o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, uma homenagem às pessoas assassinadas enquanto dormiam na Praça da Sé, em São Paulo, em 2004, fato que ficou conhecido como "massacre da Sé".
Mas o que é, juridicamente, população em situação de rua? O Decreto Federal 7.053/09 nos traz o conceito: “considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”
As razões que contribuem para a situação de rua, como se percebe, não estão apenas relacionadas à ausência de moradia. Portanto, a possibilidade efetiva de saída da rua não se restringe à oferta isolada de “um teto”.
Em que pese este seja o conceito jurídico, para boa parcela da população brasileira, estes indivíduos são ontologicamente “inservíveis”, “inválidos” e, por isso mesmo, “coisificados”, providos de menos dignidade humana (ou, quem sabe, dela desprovidos). O “mercado não mais precisa de sua força de trabalho, único valor de que dispõem para o processo de troca. Como não participam do processo de circulação de mercadorias, simplesmente sobram.”[2]
Assim, é perpetuado na cultura nacional o sentimento de repressão e segregação, ou mesmo de desvalia, das pessoas que vivem nas ruas. Situação essa que tem sido o pano de fundo das mais diversas ações violentas. Fatos viram notícia e, infelizmente, não são isolados: queima de pessoas que estão dormindo, execução sumária, sem falar da violência verbal e simbólica que é produzida e reproduzida diariamente.
O olhar atento sobre a realidade permite concluir que as pessoas que vivem em situação de rua sofrem todas as formas possíveis de violação de seus direitos humanos. O “rapa”, por exemplo, é prática sistemática. Delas são tomados seus itens básicos para sobrevivência, tais como papelões, colchões, cobertores, travesseiros e barracas desmontáveis, o que é ainda mais preocupante nesse período do ano, em que diversas cidades apresentam baixas temperaturas.
Tal ação, assim como outras similares que ocorrem por todo o país, só pode ser adjetivada como higienista. De Política Pública (com “P” maiúsculo) nada tem. Trata-se de uma resposta truculenta, autoritária e desqualificada às demandas por garantias de direitos para uma população que se encontra entre as mais vulneradas em nossa sociedade.
Escrevo aqui da total ausência de condições para a dignidade humana. Do chão duro, frio e úmido. Da fome, do medo e da solidão. Da doença, da sujeira e do fedor.[3]
O álcool e as drogas, que fazem parte da realidade das ruas, não são apenas causas que levam à condição de pessoa em situação de rua, mas também consequência, seja como fuga da realidade, seja como alternativa para minimizar a fome e o frio, numa relação que se retroalimenta em vulnerabilidade.
Assim, antes de avançarmos, calha recordar que toda e qualquer medida adotada e implementada pelo poder público (e mesmo por atores privados), há de observar o marco normativo constitucional, convencional e legal (inclusive e em especial, a “Lei da Reforma Psiquiátrica”) iluminado pelo dever de respeito e proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais.
O problema é que, não obstante a vigência de mais de 18 anos da Lei 10.216, ainda não conseguimos abandonar a cultura manicomial, ideia que é ainda mais difícil de superar quando o quadro clínico do indivíduo relaciona-se à dependência química. Nessa especial situação, há um verdadeiro “rolo compressor manicomial” que, cego para outras possibilidades, não vê alternativas à internação, sobretudo quando reforçado pela condição de pessoa em situação de rua.[4]
Como o populismo manicomial é a resposta fácil que traz rápidos dividendos eleitorais, não faltam autoridades a sustentar uma pretensa necessidade de promover a internação forçada desse grande contingente de seres humanos.
Aquelas autoridades escondem, atrás de seus aparentes gestos de boa vontade, a natureza higienista da internação, que não é utilizada em benefício da saúde dos indivíduos que sofrem dos transtornos mais diversos, pois o grande problema visto pelo populismo manicomial não é o direito à saúde que não chega, mas as ruas da cidade sujas por mulheres e homens indesejáveis que insistem em existir e que, assim, atrapalham o tráfego, praticam delitos e enfeiam a vista de quem anseia por uma cidade linda. Linda para quem?
No entanto, conforme já afirmado (e sim, a afirmativa merece repetição exaustiva), qualquer atendimento em saúde mental deve necessariamente obedecer à Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos da “pessoa com transtorno mental”.
O lugar do “louco”, acertadamente, deixou de ser o manicômio para ser a cidade. O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio (art. 4o, §1o). A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4o, caput). Ou seja, são direitos da pessoa portadora de transtorno mental (art. 2o, parágrafo único) ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis (inciso VIII), preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental (inciso IX). É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares (art. 4o, §3o).
Em todo caso, a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos (art. 6º). São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
No ordenamento jurídico brasileiro, a internação compulsória só existe no âmbito penal, como medida de segurança. Diante da regra restritiva do art. 9º da Lei Antimanicomial, não há qualquer base jurídica para a internação compulsória das pessoas que circulam pelas “cracolândias”. Seria juridicamente possível, no máximo, a internação involuntária e, ainda assim, excepcionalmente.
Contudo, no lugar de promover simples formas de cuidado, como a criação de albergues (por óbvio, que devem ser próximos aos grandes centros urbanos ou comerciais), os gestores públicos escolhem dispersar com violência os grupos que se formam tanto como recurso espontâneo de proteção, quanto como encontro e senso de coletividade.
Contudo, o que se quer é transformar o centro da cidade em um local aprazível aos olhos e, quem sabe, comercialmente viável, simplesmente varrendo a questão social para baixo do tapete e, também, valendo-se do discurso medicamentoso-higienista da salvação dos desviados, impondo tratamento compulsório. Tudo isso em nome do “bem”.
O discurso manifesto, comumente, é o de ajuda humanitária, mas esconde os interesses econômicos silenciados, como no caso das “cracolândias”, em que o populismo, as campanhas eleitoreiras, o mercado imobiliário e o “bom-mocismo” é bem mais importante do que a pretensa implementação de qualidade de vida para pessoas que precisam de ajuda de saúde pública (e não de instituições totais). Esse movimento humanitário invoca a necessidade de salvação, suspendendo os limites democráticos. Serve de instrumento alienado da opressão de um modelo de cidade, de “cidadão de bem” que não quer engajar o sujeito, mas excluir mediante tratamento compulsório.[5]
A luta antimanicomial desinstitucionalizadora, com seus novos modelos de cuidado, geração criativa de inclusão social, destituição da figura imaginária do “louco perigoso” e desconstrução do conceito equivocado de doença mental fazem vislumbrar um novo caminho que provocará possibilidades de superação dos rígidos padrões de controle social, para além das camisas de força.[6]
É evidente, por outro lado, a configuração de um dilema de difícil solução jurídica e prática, mas cuja dificuldade e complexidade não pode (em hipótese alguma!) ser objeto de solução simplista, autoritária, invasiva (para não dizer violenta) ou sequer reduzida às internações (acompanhadas da evicção forçada de grupos de pessoas).[7]
O desafio está em vislumbrar como, em uma sociedade com tantas contradições insuperáveis, criar referenciais positivos para a constituição da identidade valorativa da população que vive em situação de rua, às vezes invisível aos olhos da sociedade formal, às vezes expressão agressiva da contradição social. A Defensoria Pública, em um Estado Social e Democrático, passa a atuar em seu cerne, almejando os parâmetros ressaltados alhures, crismando sua importância e destaque na defesa dos direitos humanos, em especial àqueles relacionados à população à margem dos direitos mais básicos, em situação de extrema vulnerabilidade econômica e social.[8]
A figura do ombudsman, aliás, está relacionada a uma instituição independente, com escopo de proteger a população, principalmente aquela marginalizada, de forma individual ou coletiva, judicial ou extrajudicial, contra os abusos e atos arbitrários do Estado, buscando prevenir e remediar quaisquer atos que violarem seus direitos e garantias fundamentais. Amparada nessas premissas, a Defensoria Pública possui o dever constitucional de atuar na função de ombudsman, com o escopo de tutelar os direitos fundamentais dos hipossuficientes, evitando abusos e ações arbitrárias estatais, recebendo e investigando denúncias, e utilizando-se de todas as espécies de medidas capazes de garantir seus direitos.
A atuação deve ser estratégica, coletiva, social, multidisciplinar e (preferencialmente) extrajudicial. A atividade na função de ombudsman, hodiernamente, é uma das principais funções institucionais para a concretização de seus objetivos, notadamente no que tange à defesa e promoção dos direitos humanos.
A avassaladora onda de retrocessos que assola o país parece vitimar mais do que os direitos expressos nas leis. Denota ter aniquilado o pudor de quem defende a barbárie, tanto do Estado contra as pessoas, quanto de pessoas, os ditos “cidadãos de bem”, contra outras pessoas. Todo governo conservador mobiliza o discurso da “limpeza pública”, da “higienização social” e do “saneamento moral” para atacar populações vulneráveis e consideradas indesejáveis, como pessoas em situação de rua, prostitutas, comunidade LGBTIQ+, negros, favelados e outros.
Enquanto a desigualdade social permanece onipresente e segue se aprofundando, preferimos discutir o golden shower, a (inexistente) doutrinação marxista nas escolas e a cor da roupa para meninos e meninas.
Viver nas ruas quase sempre significa estar em risco. Risco que se transforma em medo cotidiano de ter os pertences roubados, de ser agredido, de ser vítima de violência sexual, de ser alvo de agressões inesperadas vindas de setores preconceituosos da sociedade para com esse público ou mesmo dos órgãos oficiais responsáveis pela segurança (de quem?). Componentes da luta por sobrevivência.
Esses seres humanos, historicamente invisíveis aos olhos da sociedade e do Estado, salvo quando alvos da repressão, precisam de efetivas Políticas Públicas e, para isso, são necessárias três coisas: estudos, dinheiro e amor.
[1] DE SOUZA, Matheus Silveira. A meritocracia folclórica e a onipresença da desigualdade social. Disponível em: . Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[2] COSTA, Ana Paula Motta. População em situação de rua: contextualização e caracterização, p. 3.
[3] BARBOSA, Nasser Haidar. Política Pública sem amor: fazendo sofrer as pessoas em situação de rua. Disponível em: . Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[4] CAETANO, Haroldo. A Lei Antimanicomial vale para todo Brasil, inclusive para a Cracolândia. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/05/29/lei-antimanicomial-vale-para-todo-brasil-inclusive-para-cracolandia>. Acesso em: 25 de julho de 2019.[5] DA ROSA, Alexandre Morais. Transformar a cracolândia em um comercial da Doriana funciona?. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-01/diario-classe-transformar-cracolandia-comercial-doriana-funciona>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[6] BRANCO, Thayara Castelo. A Luta Antimanicomial x Sistema de Justiça Criminal. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/05/31/luta-antimanicomial-x-sistema-de-justica-criminal>. Acesso em: 25 de julho de 2019.
[7] SARLET, Ingo Wolfgang. O caso da cracolândia de São Paulo e a (in?)dignidade da pessoa humana. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-16/cracolandia-indignidade-pessoa-humana>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[8] GOMES, Marcos Vinicius Manso Lopes. A função ombudsman da Defensoria Pública na cracolândia. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-06/tribuna-defensoria-funcao-ombudsman-defensoria-publica-cracolandia>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
Luís Henrique Linhares Zouein é defensor público substituto do estado do Rio de Janeiro e pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2019.
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