Todos os atos, fatos e negócios jurídicos são determinados e predeterminados pelo sujeito de direitos, que é também um sujeito de desejos. Toda a trama jurídica e judicial gira em torno de desejos, que são determinados muitas vezes pelo inconsciente. Os longos e tenebrosos processos litigiosos, especialmente em Direito de Família, acabam se tornando histórias de degradação do outro, em que cada parte acredita dizer a verdade, são na maioria das vezes, um gozo em que se paga o preço com o próprio corpo, ou seja, com a saúde. Grande parte das discursões do Direito de Família têm sempre um conteúdo moral sexual, ou seja, a sexualidade está sempre aí presente. Daí a importância da conexão Direito e Psicanálise.
A Psicanálise interessa ao Direito como um sistema de pensamento, e discurso, que desconstrói fórmulas e dogmas jurídicos a partir da compreensão do sujeito do inconsciente, do desejo e da sexualidade. Mais tarde Lacan traz a noção de gozo, que somados a estes conceitos, forjam a nossa realidade psíquica e são, também, os motores e alavanca do Direito de Família. Foi a psicanálise que trouxe para o Direito de Família a compreensão de que maternidade e paternidade são funções exercidas, fazendo surgir daí novos institutos jurídicos, como guarda compartilhada, alienação parental, abandono afetivo etc. Foi o discurso psicanalítico, a partir das noções de desejo, inconsciente e responsabilidade, que abriu as portas do Direito para introduzir o afeto como valor jurídico, que tornou-se o princípio vetor e catalisador de toda organização jurídica das famílias. E a partir daí pôde-se substituir o discurso de culpa, tão paralisante do sujeito, pelo da responsabilidade (conforme Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado, de minha autoria, P. 660). Compreender o funcionamento de nossa estrutura psíquica pode ajudar a diluir o litígio e exercer o Direito mais eticamente. Assim, é preciso entender, pelo menos, quatro conceitos de psicanálise que são fundamentais para o Direito de família: desejo, inconsciente, sexualidade e gozo.
Desejo é a força motriz do Direito de Família. É qualquer forma de movimento em direção a um objeto, cuja atração espiritual ou sexual é sentida pela alma e pelo corpo. O desejo é a mola propulsora da polaridade amor e ódio, e faz movimentar toda a máquina judiciária em torno, principalmente, dos restos do amor e do gozo. As pessoas se casam, descasam, reconhecem a paternidade, negam-se a pagar pensão alimentícia etc, movidas pelo desejo, muitas vezes inconsciente. O desejo não tem uma essência, ele se desloca constantemente. O sistema capitalista vive desse deslocamento permanente. O querer sempre mais, inclusive objeto de consumo, é a alma do capitalismo. Se tivesse um núcleo fixo e permanente o capitalismo acabaria. Desejo é desejo de desejo (Lacan), daí a nossa incompletude e o inexorável vazio, que também nos remete e nos lembra do nosso desamparo estrutural. A grande dor das separações é que aí se depara com este nosso desamparo. Desejo é falta, e paradoxalmente a nossa força motriz. O desejo é o que dá vida à vida do Direito, e em especial ao Direito de Família. Quis saber o que é o desejo / De onde ele vem / Fui até o centro da terra / E é mais além (...) (Tanta saudade – Djavan e Chico Buarque).
Inconsciente não é uma segunda consciência ou uma desrazão, mas um lugar psíquico particular que tem um sistema próprio de funcionamento com conteúdos e mecanismos específicos. Ele se manifesta em fantasias, histórias imaginárias, lapsos de linguagem, atos falhos, sonhos etc. Freud revelou que o inconsciente é feito de pensamento, e cuja lógica pode ser apreendida pelo método psicanalítico. Mais tarde, Lacan: o inconsciente é estruturado como linguagem. O inconsciente não reconhece presente, passado ou futuro. Ele é atemporal, substitui a realidade externa pela realidade psíquica e obedece a regras próprias e não segue a lógica da consciência. Uma inscrição inconsciente pode se mostrar ativa, e muito tempo depois, de forma travestida burlar qualquer vigilância de censura. Por exemplo, ao prolatar uma sentença, o magistrado, inconscientemente insere ali todas as suas concepções morais e particulares sobre o caso. Não há como ele se livrar disto, pois sua existência e constituição como sujeito é a soma de sua cadeia de signos e significantes em que registros inconscientes, que ele queira ou não, aparece em suas decisões. Dentro do poder discricionário de que ele dispõe está a sua singularidade e seu inconsciente. A conscientização de que o sujeito do inconsciente está presente nos atos, fatos e negócios jurídicos, pode ajudar a desvendar muitos porquês das demandas judiciais, que em sua maioria, são verdadeiras histórias de sofrimentos.
A consideração do inconsciente e do desejo nos faz repensar os conceitos de livre arbítrio e acaso. A partir daí não se pode mais atribuir as alegrias, tristezas e mazelas à obra do acaso ou culpar o outro exclusivamente pelo fim de um relacionamento, por exemplo. Isto remete ao Direito uma concepção mais ampla de responsabilidade. As nossas escolhas, o que nos faz ter alegria, sofrer, amar, deixar de amar, são governadas por essa força soberana em nós, que é o inconsciente, que é também desejo, já que o desejo é inconsciente.
A sexualidade pode ser entendida como a energia libidinal, presente em todo o humano e é o que nos faz trabalhar, rir, chorar, ter alegrias e tristezas. Ela interessa ao Direito na medida em que, a partir da psicanálise, passa a ser considerada na ordem do desejo. Toda a organização jurídica da família começa e é perpassada pela sexualidade. O interdito proibitório do incesto, lei básica e estruturadora do sujeito e das relações sociais, é de origem sexual. Sexo, casamento e reprodução sempre foi o tripé e esteio do Direito de Família, e é a partir daí que todos sistemas jurídicos para a família se estruturam e se organizaram. Infidelidades, investigações de paternidade, divórcio, violência doméstica, abuso sexual, monogamia, concubinato, uniões poliafetivas, homoafetivas etc são os ingredientes do Direito de Família, e seu conteúdo traduz uma moral sexual. O que será que será / Que vive nas ideias desses amantes / Será que será / O que não tem decência, nem nunca terá / O que não tem censura nem nunca terá / O que não faz sentido...(O que será - Chico Buarque).
O gozo é uma expressão jurídica surgida no século XV para nomear a ação de fazer uso de um bem, e retirar dele as satisfações proporcionadas por ele. Daí a ideia de usufruto. Ela foi ressegnificada na psicanálise por Lacan, a parir da observação de processos judiciais. O gozo engloba uma satisfação pulsional e seu paradoxo de prazer e desprazer. Os processos judiciais litigiosos são a materialização de uma realidade subjetiva onde as partes, em nome de se buscar direitos, passam a se relacionar pelo ódio. Goza-se com o prazer, mas também com o sofrimento . geralmente este gozo é inconsciente, e na maioria das vezes, não se percebe o mal que faz a si mesmo, ao ex-amor e aos próprios filhos. Este assujeitamento ao gozo é a alienação do sujeito, cuja teia foi tecida por ele mesmo em sua cadeia de registros inconscientes, ou seja, das tramas do desejo e da sexualidade. Tomar consciência e perceber o “gozo” dos clientes pode ajudar os profissionais do Direito não se permitirem ser instrumentos deste gozo. Como diz Lacan, o gozo tem apetite de morte. Uma das funções do Direito é barrar o gozo, ou seja, colocar limites na tendência do homem a fazer do outro o objeto de suas pulsões destrutivas. Boneca, eu te quero com todo o pecado / Com todos os vícios; com tudo afinal / Eu quero esse corpo que a plebe deseja / Embora ele seja prenuncio do mal (Boneca de Trapo – Nelson Gonçalves).
Psicanálise e Direito convergem e divergem em vários aspectos, mas se encontram e se completam em seus opostos. Enquanto a Psicanálise é sistema de pensamento, que tem o desejo e o inconsciente, portanto a subjetividade como pilares, o Direito é um sistema de limites, vínculos de vontade e controle das pulsões, que vem trazer a lei jurídica para quem não tem a lei interna, isto é, quem não contém seus impulsos gozosos.
A partir da compreensão destes conceitos psicanalíticos, nossa percepção e atuação como profissionais do Direito ficará ampliada e com isto poderemos desenvolver muito melhor nossa atuação profissional.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado, doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2018.
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