No DEGASE, número de internados aumentou 87,44% em nove anos. Apenas 2,9% dos internados respondem por homicídio.
Adolescentes internados no DEGASE (Departamento Geral de Ações Sócio Educativas) em razão da prática de homicídio correspondem a 2,9% dos que ocupam as superlotadas unidades socioeducativas do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, o RJ é o único estado em que o comércio de drogas é o ato infracional mais presente entre os jovens.
Estas foram algumas das informações apuradas pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, órgão que funciona de modo independente e está vinculado à Assembleia Legislativa, ao analisar dados oficiais em 2017. Os números foram apresentados no relatório “Presídios com Nome de Escola: Inspeções e Análises sobre o Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro”, publicado em novembro.
Tendo por base o percentual de atos infracionais análogos a homicídio em todo o sistema socioeducativo do Rio de Janeiro (2,9%), estima-se que um total de 60 adolescentes responderam ou respondem por esse ato infracional atualmente no estado. O Mecanismo ressalta que essa quantidade de adolescentes não seria capaz de preencher integralmente as vagas de qualquer uma das unidades de internação atualmente em funcionamento. Apesar disso, o DEGASE opera hoje 43,49% acima de sua capacidade (1.446 vagas), misturando adolescentes que praticaram os mais diversos atos infracionais e mantendo-os em condições flagrantemente desumanas.
É preciso chamar atenção para as contradições presentes neste discurso que pretende reduzir a idade penal ou aumentar o tempo de internação, mas que vem se construindo sem qualquer embasamento em dados sobre a realidade socioeducativa do país. Em “Presídios com Nome de Escolas”, o Mecanismo chama atenção para o “árido deserto de informação, que se constata sobretudo no seio dos órgãos de Justiça da área infracional” e para a seletividade socioeducativa, facilmente verificada pela cor da pele daqueles que se tornaram o alvo principal da justiça juvenil: a população negra.
O órgão, que foi impedido de assistir audiências pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro durante a produção do relatório, encontrou informações desatualizadas e desorganizadas também por parte do Executivo. Os dados do Ministério dos Direitos Humanos, por exemplo, são relativos a 2014, enquanto os órgãos estaduais sequer sistematizam dados. Em meio à desinformação, a política socioeducativa vem sendo reformulada e descaracterizada, sendo mais um alvo do sensacionalismo e dos processos de securitização.
Foi assim, por exemplo, que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou recentemente a Lei Estadual nº 7.694/17, que transformou o cargo dos agentes do DEGASE em agentes de segurança socioeducativa, e tramita atualmente o Projeto de Lei Estadual nº 1.825/2016, que busca autorizar o uso de armas de fogo por agentes do DEGASE. No mesmo sentido, tramita no Congresso Nacional o PL nº 6.433/16, em contraposição ao ECA, ao Estatuto do Desarmamento e a compromissos humanitários firmados pelo Estado brasileiro.
O relatório mostra preocupação, ainda, com o aumento da população de adolescentes encarcerados nos últimos anos no Rio de Janeiro, bem como com as condições de detenção e com a obstrução ao ensino escolar no sistema, dentre outros aspectos. De 2008 a 2017, o aumento da população de adolescentes internados no DEGASE foi de 87,44%. Somente em 2016 se registrou um aumento de 38,43% dessa população, que chegou a 2.075 adolescentes em restrição ou privação de liberdade. Ao mesmo tempo, a estrutura que os recebe é precária, configurando tratamento cruel, desumano e degradante, vedado pela legislação brasileira e internacional.
Em que pese a promessa da socioeducação, o número de vagas escolares disponíveis no DEGASE é muito inferior a própria capacidade das unidades, de modo que o Mecanismo questiona a postura dos órgãos de Justiça que insistem na prática de internação acríticos a esta realidade. Atualmente, privar de liberdade os jovens no Rio de Janeiro é também privá-los de estudar.
James Cavallaro, representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao analisar o sistema socioeducativo brasileiro durante audiência na sede do órgão em março de 2017, afirmou ter “uma sensação de déjà vu de estar […] discutindo os mesmos temas que vem sendo analisados há mais de 20 anos, desde o ECA, desde a grande promessa do ECA que nunca consegue ser realizada porque existe na maioria dos estados brasileiros um modelo de cadeia. Com o eufemismo que tiver, de Escola, FEBEM, Centro Educativo… mas que você entra e […] vê que é uma cadeia, só que com pessoas que tem menos de 18 anos”.
Visando uma substancial transformação desse cenário, o Mecanismo apresenta quarenta recomendações às autoridades públicas. Dentre elas, o incentivo às medidas em meio aberto, uso da justiça restaurativa em substituição ao modelo punitivo, adequação da lotação à capacidade das unidades, atuação independente dos órgãos de perícia/fiscalização e a apuração das 19 mortes ocorridas no DEGASE nos últimos dez anos.
Dentre as inúmeras ilegalidades praticadas dentro das instituições públicas que conformam o sistema socioeducativo, a “excepcionalidade, brevidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, exigida em razão dos direitos das crianças e dos adolescentes, tornou-se letra morta nas mãos dos operadores de Justiça no Rio de Janeiro. Urge qualificar, em todos os setores da sociedade, o debate sobre a realidade socioeducativa, o qual deve estar fundamentado em dados e objetivar a proteção dos direitos da criança e do adolescente.
Fabio de Almeida Cascardo é advogado, bacharel em direito pela PUC-Rio; membro eleito do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro – período 2015/2019; integrante do Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça; fcascardo@gmail.com
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