As audiências de custódia, iniciadas em março de 2015 com a proposta de garantir que presos em flagrante sejam ouvidos por juízes, ainda caminham lentamente no Brasil. Em estudo divulgado nesta quinta-feira (14/12), o Instituto de Defesa do Direito de Defesa afirma que ainda é preciso regular um procedimento padrão e implantar a iniciativa de forma efetiva em todas as comarcas.
A presença policial nas salas em que acusado e juiz conversam é frequente, de acordo com a entidade, assim como o uso de algemas, mesmo havendo súmula do Supremo Tribunal Federal proibindo a medida em situações sem resistência.
O lançamento da pesquisa ocorreu na sede da Associação dos Advogados de São Paulo, na capital paulista. Segundo o relatório final, 846 das 2,7 mil comarcas brasileiras promoviam audiências de custódia até março deste ano.
O IDDD afirma que em Minas Gerais e Paraná, por exemplo, pelo menos dois policiais armados costumam ficar perto do preso dentro das salas. “Também no Distrito Federal, registrou-se a presença de, no mínimo, quatro policiais civis fortemente armados que acompanhavam as audiências”, diz o estudo.
Para o instituto, a presença policial pode prejudicar um dos principais objetivos das audiências, que é denunciar eventuais abusos das autoridades.
O estudo relata audiências acompanhadas em seis estados — CE, DF, MG, PE, SP e RJ — por representantes do IDDD e de entidades parceiras, durante determinados meses de 2015 e 2016.
O uso de algemas foi constante na maioria delas. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, alcançou 100%. Em seguida vêm Minas Gerais (99%), Distrito Federal (98%) e Ceará (61%). Já em Pernambuco, o quadro foi inverso: na maioria das audiências acompanhadas (97%) o custodiado foi ouvido sem estar algemado.
Argumentos repetidos
A Súmula Vinculante 11 do STF define que “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”.
Determina ainda que, caso necessária, a medida deve ser amparada por justificativa escrita da excepcionalidade. Em caso de descumprimento, prevê pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, além da nulidade da prisão ou do ato processual relacionado.
Os argumentos para manter as algemas são sempre os mesmos, aponta o levantamento. Se não for a necessidade de garantir a segurança dos presentes é mencionada a falta de efetivo policial nas dependências do local onde acontecem os encontros entre juízes e detidos.
Um desses exemplos foi encontrado pelo IDDD no Distrito Federal. O instituto afirma que os juízes da capital federal criaram uma “manobra argumentativa” para manter as algemas.
Ao preencher registros das audiências, é recorrente o relato de que os juízes consultaram a escolta sobre a possibilidade de retirar as algemas e ouviram a mesma resposta: “com enfoque especial na ausência de policiais em número suficiente”, os agentes alegam que a retirada das algemas colocaria em risco a segurança das pessoas.
“Alegação que não condizia com a realidade, já que a pergunta não foi realizada em nenhuma das audiências assistidas pela equipe de pesquisa, ao longo de três meses”, diz o IDDD.
Advogados e salas em falta
Também é preocupante, na visão do instituto, a ausência de advogados nas lavraturas dos autos de prisão. Minas Gerais é a unidade federativa com maior taxa de presença de advogados em delegacias: 12,24%.
Nos outros, o total não chega a 7%. No Ceará, o total é de 4,2%; enquanto no DF esse índice é de 6,7%. São Paulo e Rio de Janeiro apresentam taxas de 4,9% e 3,6%; respectivamente, enquanto Pernambuco é o pior de todos, com resultado de 1%.
Outro problema apontado é a falta de salas para que custodiados e seus defensores possam conversar reservadamente. Esses diálogos, mostra o IDDD, normalmente ocorrem próximo a agentes de segurança, em corredores. Apenas Pernambuco e Bahia tinham espaços reservados até 2016. Mas, no caso baiano, esses locais eram usados apenas pela Defensoria Pública do estado, e não por advogados constituídos.
Dados do estudo mostram que a conversa entre defesa e custodiado ocorreu em uma sala em 56,66% dos casos no Ceará; 92,1% em Minas Gerais; 93,75% no Rio de Janeiro; 91,83% em Pernambuco e 14% no Distrito Federal.
“Entretanto, apenas nos estados de Pernambuco e do Rio de Janeiro, a maior parte das conversas foi de fato reservada — com índices de 85,39% e 96,92%, respectivamente. Já no Ceará e em Minas Gerais, a escolta esteve presente durante a entrevista em 72,06% e 97,45%”, afirma o IDDD.
Resolução descumprida
A pesquisa conclui que a maioria dos estados descumpre a Resolução 213/2015 do CNJ, que define um roteiro para as audiências de custódia. Por isso, o instituto defende a aprovação de uma lei federal para regulamentar o tema — existe um projeto de lei de 2011, aprovado no Senado, que ainda tramita na Câmara dos Deputados.
“O que se pode afirmar com convicção é que a ausência de padrão e uniformidade por parte dos estados na prática das audiências de custódia acarreta insegurança jurídica e tratamentos absolutamente diferentes às pessoas”, avalia a entidade.
Um dos destaques foi o Rio Grande do Sul: “Lá, ao contrário do que acontece em todos os outros estados brasileiros, a audiência de custódia é realizada apenas nos casos em que já há prisão preventiva decretada por um juiz, que analisou tão somente os documentos do flagrante”.
O IDDD cita declaração de um juiz gaúcho, que não teve o nome publicado. “Nós estamos aprisionando pessoas como nunca aprisionamos antes, e o estado está sem recurso financeiro para trazer essas pessoas até o fórum, não tem salas de audiência, não tem equipamentos, não tem combustível. Nós estamos perdendo muitas audiências pela não apresentação de réus”, afirmou.
Medidas cautelares
Embora as audiências despertem desconfiança de setores que temem amplo número de solturas, o IDDD diz que não se concretizaram os temores sobre liberações em massa, pois ainda é excessivo o uso de medidas cautelares. “A única unidade federativa em que o número de concessões de liberdade ultrapassou o número de decretações de prisão preventiva foi o Distrito Federal”, diz o instituto.
No Ceará, por exemplo, 91% das audiências de custódia acompanhadas terminaram em liberdade provisória com imposição de limitações alternativas à prisão. No DF, esse total foi de 73%; em MG, 55%; em PE, 89%; e no RJ, 85%.
Em São Paulo, está perto dos 50% o número das decisões que determinaram a prisão preventiva. A outra metade definiu a liberdade provisória ou o relaxamento da prisão em flagrante.
A medida cautelar mais imposta nos estados estudados foi o comparecimento periódico em juízo, seguido por recolhimento domiciliar durante a noite. O IDDD considera preocupante o grande número de medidas cautelares, mesmo que alternativos à prisão, alegando que deixam de privilegiar a liberdade quando nem sequer existe processo.
Respaldo do STF
Quando as audiências de custódia tiveram início em São Paulo, em 2015, delegados de polícia afirmaram ao Supremo (ADI 5.240) que a medida não poderia ter sido imposta por norma administrativa. Em agosto daquele ano, porém, o STF decidiu que o provimento apenas disciplinou direitos fundamentais do preso já citados no Código de Processo Penal e no Pacto de San José da Costa Rica.
Um mês depois, ao julgar ação reconhecendo o “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário, o STF determinou que “todos os juízes e tribunais” adotassem audiências de custódia em 90 dias, com apresentação do preso em 24 horas (ADPF 347).
Clique aqui para ler o estudo do IDDD.
Revista Consultor Jurídico, 14 de dezembro de 2017.
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