terça-feira, 24 de março de 2015

Feminicídio é medida simbólica com várias inconstitucionalidades

No último dia 9 de março, a presidente da República sancionou a Lei 13.104, que cria o delito de “feminicídio”, que, na verdade, trata de uma nova modalidade de “homicídio qualificado”, inscrita no inciso VI, do artigo 121, parágrafo 2º, do Código Penal, criado pelo novel diploma com a seguinte redação:
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:    (Incluído pela Lei 13.104, de 2015)
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Vê-se que a nova lei tratou, também, de inserir a nova figura incriminadora no rol dos crimes hediondos, ao estabelecer:
Art. 2º O art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:
Art. 1º
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV, V e VI).

A nova lei, certamente louvada por diversos segmentos da sociedade, decerto, resultará mais uma vez de uma manifestação simbólica do direito penal, através da qual o Estado veicular novas leis, sem que com isso produza medidas efetivas para conter o cometimento de infrações. Não se ignora a necessidade de proteger a vida de todos os seres humanos, indistintamente, bem como não se ignora e nem se quer esconder a necessidade de proteger vítimas de violência doméstica que, no mais das vezes, são mulheres. Não se pense que os autores deste texto ignoram a necessidade desta proteção. Mas o questionamento é se é lícito, se é constitucional, criar uma pseudoproteção, com inconstitucionalidades manifestas, para atender à (pseudo)função simbólica da pena.
Releva notar que o tipo penal é excessivamente aberto, veiculando uma motivação específica como elementar. É dizer, para que haja o delito de “feminicídio” o crime de ser motivado “por razões da condição do sexo feminino”. Um primeiro registro, além da corruptela pelo cacófato no tipo penal, é da questionável constitucionalidade, por direta violação ao princípio da taxatividade, desdobramento lógico do princípio da legalidade. De nada adianta haver legalidade se os tipos penais puderem ser permeados de elementos abertos ou normativos. A legalidade somente cumpre a sua garantia quando acompanhada da indissociável taxatividade.
A novel legislação transforma a mulher em uma elementar objetiva do novo delito qualificado, resultando em tipificação de duvidosa constitucionalidade. Isso porque, efetivamente, trata-se de disposição que viola frontalmente os princípios da igualdade, da legalidade e da lesividade. Com efeito, se a condição de mulher do sujeito passivo do delito é uma elementar objetiva do tipo penal, premente notar que deve ser a expressão “sexo feminino” interpretada taxativamente, não sendo enquadrados pela nova figura qualificada os delitos praticados contra travestis, transexuais e transgêneros. Também não serão enquadrados pelo tipo penal os homicídios praticados, no âmbito de uma relação homoafetiva, por um homem contra o outro, ou, ainda, em um crime praticado por uma mulher contra um homem. Intoleráveis violações constitucionais, levadas a cabo, injustificadamente, para atender a símbolos de proteções inexistentes. Por se tratar de novatio legis in pejus, por ser novo tipo incriminador, imperioso que se tenha em mente que a única interpretação possível do tipo é a restritiva, considerando, decorrentemente, que mulher é um elemento objetivo (invariável) do tipo penal.
Efetivamente, não parece legítimo examinar a constitucionalidade de uma norma sob o prisma do número de delitos cometido, para afirmar que a lei se faz necessária em razão de, no mais das vezes, a violência doméstica ser praticada por um homem contra uma mulher. Isso porque: 1) a quaisquer pessoas, no âmbito do direito penal, deve ser outorgada proteção igualitária; 2) o número de delitos não pode justificar a maior pena, devendo ser estar proporcional ao bem-jurídico penal tutelado, como bem observa Claus Roxin[1]. E, adite-se, não se pode, a partir de dados estatísticos, buscar a constitucionalidade da norma penal. O tipo inconstitucional não passa a respeitar a Constituição porque a incidência é maior ou menor.
Efetivamente, nessa linha, se tem alteração legislativa que viola o princípio da lesividade, porquanto, sem que haja qualquer referência efetiva a um maior desvalor da conduta ou do resultado, qualifica o homicídio praticado contra mulher, pelo fato de ser do sexo feminino, e não em razão de demais circunstâncias.  Na prática, como se verá, as razões de menosprezo à condição do sexo feminino terminarão por ser pressupostos, de sorte que todo homicídio praticado contra mulher implicará em incidência do tipo penal de feminicídio. Destarte, será assim violado o princípio do ne bis in idem, pois a violação à vida será duplamente valorada (a configurar hipótese qualificada de homicídio), sem que haja supedâneo para a elevação da pena cominada para a figura simples.
Sabe-se que, no passado, a Lei Maria da Penha, por motivações de gênero, realizou mudanças no ordenamento penal e processual penal. No âmbito penal, contudo, certo é que a alteração promovida não criou ou sobrelevou a pena da violência praticada contra a mulher, mas em relação a qualquer violência doméstica.
O anteprojeto de Código Penal, por sua vez, propõe semelhante à ora efetivada, sem, contudo, distinguir homens e mulheres, a tornar qualificado o homicídio praticado por motivo de identidade de gênero, independentemente da qualidade do autor ou da vítima, a respeitar o princípio da isonomia. No particular, muito melhor andou o Projeto de Lei do Senado 236, porquanto tratou de uma proteção efetiva, sem uma resposta não contingente — como bastante criticado por Ferrajoli — sem que se atenda a essa ou aquela pressão, sem que se criasse um tipo inconstitucional, enfim.
O que se quer dizer através da expressão, “por razões da condição do sexo feminino”, não fica claro em tal enunciado, daí porque o legislador ainda tentou positivar ainda o §2º-A, também inserido no Código Penal, que configura tipo penal pretensamente explicativo, com o seguinte o conteúdo:
§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;   
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.     

Diante de tal dispositivo, se observa que apenas existirá “feminicídio”, acaso preenchidas uma das duas seguintes condições: a) hipótese de violência doméstica e familiar; b) a violência deve decorrer de menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
De toda sorte, premente observar que a rigor não será qualquer homicídio praticado contra uma mulher que implicará a incidência do dispositivo, muito embora se tenha a expectativa de que a tendência na prática caminhe em sentido diverso, pois o tempo demonstrará que, ordinariamente, todo crime de homicídio contra a mulher será tratado como feminicídio. O homicídio deve ser praticado contra a mulher, no contexto de violência doméstica e familiar, o que denota a necessidade de que haja coabitação e relação familiar ou o homicídio deve derivar de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A vexata questio interpretativa residirá neste segundo inciso.
O legislador, como se vê, tentou (em vão) esclarecer o que pretende firmar através da criação do feminicídio, mas termina por ocasionar ainda maior confusão.
Primeiro, dizer que há “razões de condição de sexo feminino” quando o crime envolver “discriminação à condição de mulher” é tomar seis por meia dúzia. Ou seja, através de tal norma explicativa o legislador nada de novo diz. Trata-se de insuperável tautologia.
Segundo, considerar que há “razões de condição de sexo feminino” quando o crime envolver “menosprezo à condição de mulher” é mais uma redundância, que tem o deletério efeito de deixar totalmente ao cargo do magistrado definir quais seriam tais condições, pois “menosprezo” é elemento normativo do tipo, cujo sentido será dado pelo aplicador do direito.
Menosprezar é o mesmo que menoscabar, ultrajar, escarnecer, subestimar, tomar por pior, expressões que podem ser sinônimas de discriminar, o que implica dizer que além da violência doméstica, para que haja “feminicídio”, deve ser identificada a existência, no autor do delito, da (equivocada e insustentável) percepção da mulher como inferior ao homem.
Nessa linha de raciocínio, considerando os contornos legais do delito, observa-se que os homicídios motivados por ciúme, não necessariamente, ainda que envolvam violência doméstica, poderão ser enquadrados enquanto “feminicídio”, sendo imprescindível a presença das razões da condição de sexo feminino, que são identificadas se há “violência doméstica e familiar” ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
A lei, assim, gera mais confusão do que solução no âmbito penal. Efetivamente, trata-se de manifestação legislativa meramente simbólica. A respeito deste “simbolismo” penal, premente colacionar as lições de Juarez Cirino dos Santos:
Assim, o direito penal simbólico não teria função instrumental — ou seja, não existiria para ser efetivo —, mas teria função meramente política, através da criação de imagens ou de símbolos que atuariam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis. O crescente uso simbólico do direito penal teria por objetivo produzir uma dupla legitimação: a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos — o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução ou, mesmo, da exclusão de garantias constitucionais como a liberdade, a igualdade, a presunção de inocência etc., cuja supressão ameaça converter o Estado democrático de direito em Estado policial. O conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado.[2]
Deveras, um homicídio motivado “por razões de ódio à mulher”, menosprezo, discriminação de gênero, já poderia ser considerado qualificado em razão da motivação torpe, sendo desnecessário um tipo autônomo (a rigor, o desprezo configuraria a torpeza do motivo independentemente da identidade sexual da vítima). Considerando que o delito de feminicídio, para existir, demandará a concretização de elementar de difícil análise, qual seja, “razões de condição do sexo feminino”, com a necessidade de verificação da existência de violência doméstica ou de menosprezo ao sexo feminino, é possível supor que a definição de que houve menosprezo ou discriminação à condição de mulher tornar-se-á pressuposta sempre que houver um homicídio praticado no âmbito doméstico, por um homem contra uma mulher.
Haverá, por assim dizer, na prática, uma inversão do ônus da prova, de sorte que ao acusado incumbirá demonstra que não agiu com desprezo à condição de mulher. Na prática, todo crime praticado contra a mulher, no âmbito da violência doméstica, será considerada, a priori, como tendo por fundamentação o menosprezo à condição feminina. Ter-se-á, assim, ou a necessidade de o acusado produzir prova diabólica, ou seja, de que ele produza prova de que não fez algo ou de que algo não ocorreu, a violar a presunção de inocência. Possivelmente, essa não deveria ser a intenção originaria do legislador, mas esse nefasto efeito se revelará, inevitavelmente.
Ainda que não ocorra tal (ilegal) presunção de ocorrência da elementar típica, fato é que os acusadores simplesmente poderão imputar o delito de homicídio qualificado por motivo torpe, acaso haja dificuldade em enquadrar a conduta no tipo de feminicídio. Assim, a nova lei veicula tipo penal que se afigura inconstitucional ou inócuo. Trata-se de clara representação do simbolismo.
Além da qualificadora relacionada ao feminicídio, o legislador ainda trouxe outra novatio legis in pejus no tocante à possibilidade de aplicação de uma causa de aumento de pena que se refere apenas ao novo crime, positivada pelo artigo 121, parágrafo 7º, inciso I:
§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Vê-se que o inciso II replica disposição que, anteriormente, já majorava a pena de homicídios dolosos. Quanto ao inciso III, se observa o caráter seletivo e violador da isonomia da nova legislação: um homicídio praticado contra a mulher, em contexto de violência doméstica e em condições de menosprezo de gênero, na presença do cônjuge ou companheiro, não majora o crime.
Quanto ao inciso I, vê-se que viola o princípio da proporcionalidade ao veicular um aumento de pena injustificada em relação a pessoas do sexo feminino que se encontrem nos três meses após o parto. Razoabilidade alguma há nisso, além do que o período (três meses e não seis meses ou um ano) foi arbitrariamente escolhido.
A majorante cria ainda um problema concernente ao princípio do ne bis in idem, uma vez que veicula uma valoração negativa em relação à conduta de praticar homicídio durante a gestação de alguém. Sucede que, atualmente, em uma situação deste tipo, se teria concurso entre o crime de homicídio e o delito de aborto, o que, entretanto, deixa de existir com o advento da causa de aumento de pena. Na prática, o legislador inseriu no feminicídio majorado o desvalor do abortamento, de sorte que não será possível aplicar a majorante e o tipo penal de aborto, sob pena de haver dupla valoração negativa de um mesmo comportamento.
Destarte, o legislador não gerou qualquer inovação real do ponto de vista político-criminal para a contenção da violência contra a mulher, tendo, no entanto, atendido a vontade da plateia sedenta por novas leis mais duras e novos crimes, sem se aperceber da falibilidade do sistema penal, da inocuidade das alterações legislativas e da inexistência de medidas efetivas de enfrentamento do crime.
Como se sabe, o simbolismo penal consiste na utilização de normas penais para realizar finalidades meramente representativa, sem se afigurar enquanto medidas efetivamente voltadas a impactar na redução dos índices de criminalidade. No mais das vezes, o simbolismo penal é resultado da necessidade de atender a denominada opinião pública. Como bem observa Alessandro Barata, vive-se um tempo da tecnocracia, em que os poderes, a fim de se manter, costumam buscar agradar tal pretensamente pública opinião, ao revés de solucionar, efetivamente, os problemas[3].
Tem-se, então, nesse sentido, a chamada legislação simbólica, na medida em que a legislação penal surge não para solucionar os problemas, mas como mero símbolo. Como um signo de que algo foi feito em relação a uma demanda social, muito embora não se tenha que esse algo seria efetivo ou até legítimo, de acordo com o ordenamento e os contornos de um Estado Democrático de Direito.
Um dos muitos efeitos deletérios do simbolismo penal é a sensação de impunidade e de ineficiência do sistema penal, pois não importa quantas leis novas advêm, a criminalidade não cede, de sorte que o atendimento à opinião pública é temporário: o direito penal simbólico é apenas um paliativo. Assim, de tempos em tempos, o paliativo é administrado, pois se afigura mais fácil alterar um tipo penal, do que adotar modificações estruturais na política de segurança pública.
A Lei 13.104/2015, como se viu, diante de seus contornos, pouco de novo apresenta ao direito penal, afigurando-se, em verdade, como medida claramente simbólica, haja vista que incongruente com um real escopo de diminuir a ocorrência de delitos. Assim, simplificadamente, a nova lei padece de algumas inconstitucionalidades: 1) viola a isonomia ao criar um homicídio qualificado por “razões de condição do sexo feminino”; 2) viola a taxatividade, ao referir-se às razões de condição do sexo feminino como situações de em que há “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”; 3) viola a lesividade, ao apresentar-se com conteúdo meramente simbólico; 4) pode violar a presunção de inocência, pois ocasiona o problema prático de se ter de afastar o menosprezo ao sexo feminino; 5) poderá violar o princípio do ne bis in idem, ao veicular majorante concernente ao feminicídio praticado contra mulher grávida e ao valorar, sem fundamento, como qualificado, o homicídio praticado contra pessoa do sexo feminino.   

[1] ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa, Vega Universidade, 1997, p. 27.
[2] SANTOS, Juarez Cirino dos. Política Criminal: Realidades e Ilusões do Discurso Pena. In: Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade. ano 7, n. 12, 2º semestre de 2002. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 56.
[3] BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. In: Revista do IBCCrim, ano 2, 1994, p. 22.

Gamil Föppel El Hireche é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.
Rudá Santos Figueiredo é advogado e professor. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pelo Juspodivm-IELF.
Revista Consultor Jurídico, 23 de março de 2015.

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