Ao longo da semana, diversos canais jurídicos noticiaram o ocorrido em audiência realizada na Justiça do Mato Grosso, onde o magistrado criminal teria proibido que uma Defensora Pública acompanhasse mulher vítima de violência doméstica durante seu depoimento.
Além da demonstração de desconhecimento por parte do magistrado a respeito da disciplina da Lei Maria da Penha, algo inconcebível em pleno 2019, o episódio revela a necessidade de se conferir maior cientificidade a atuação em prol da mulher vítima de violência doméstica no processo criminal, fora da clássica concepção da assistência de acusação.
O objetivo desse breve estudo é fazer um rápido panorama das formas interventivas da vítima no processo penal, especificamente sob a representação da Defensoria Pública, de modo a confirmar o equívoco do órgão jurisdicional na negativa de participação de membro da Defensoria Pública.
Sabe-se que o Código de Processo Penal reconhece a intervenção da vítima através da assistência de acusação na fase processual, com fundamento no art. 268 do CPP. Os poderes do assistente de acusação, assim compreendido como a vítima, seus representantes legais e sucessores (art. 31 do CPP), são aqueles previstos no art. 271 do CPP, lhe sendo lícito requerer a produção de provas, participar da instrução processual, interpor recursos, dentre outros.
Um aspecto importante da disciplina do assistente de acusação e que se difere da assistência qualificada prevista na Lei Maria da Penha é que a sua intervenção depende de autorização judicial (arts. 269 e 273 do CPP), sendo necessária a manifestação prévia do Ministério Público (art. 272 do CPP).
Além da atuação como assistente de acusação, o sistema jurídico processual penal brasileiro alberga hipótese em que a vítima exerce maior protagonismo na persecução penal, através da legitimação extraordinária para a deflagração da imputação por meio da ação penal privada (art. 30 do CPP). Em menor extensão, confere-se a vítima o poder para decidir a respeito da apuração da infração penal e deflagração da ação penal, por meio do direito de representação veiculado no art. 39 do CPP.
No entanto, pouco se discute a respeito da disciplina normativa da vítima na Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). O diploma legal assegura a todas as mulheres em situação de violência doméstica e familiar o acompanhamento por advogado em todos os atos do processo, sejam de natureza cível ou criminal (art. 27).
A preocupação do legislador com a condição de vulnerabilidade é tamanha que, inobstante garantir a assistência qualificada, ao mesmo tempo confere capacidade postulatória à própria mulher para requerer o deferimento de medidas protetivas de urgência (art. 27, parte final c/c art. 19), além de mais recentemente, conceder à autoridade policial (Delegado de Polícia) a capacidade para deferir as medidas protetivas (Lei n. 13.827/2019).
Como parte da tendência moderna de implementação de ações afirmativas e de defesa dos grupos vulneráveis, o art. 4º, XI da LC nº 80/1994 prevê como função institucional da Defensoria Pública “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”.
O dispositivo reflete a preocupação constitucional de garantir a especial tutela das pessoas naturalmente frágeis, como as portadoras de deficiência (art. 37, VIII), as mulheres (art. 226) as crianças e os adolescentes (art. 227)[1], os idosos (art. 230) e outros grupos sociais vulneráveis.
É por essa razão que também é assegurado à mulher vítima de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado (art. 28). Com isso, objetiva o legislador, em cumprimento ao art. 226, § 8º, da CRFB, conferir ampla proteção à família, coibindo a violência doméstica e familiar, através do rol de institutos processuais, a exemplo das medidas protetivas de urgência, bem como pelo tratamento psicossocial prestado pela equipe multidisciplinar.
Por possuírem todas as pessoas idêntico valor intrínseco, deve ser assegurado a todos igualdade de respeito e consideração, independente de raça, cor, sexo, religião ou condição social, funcionando a Defensoria Pública como instrumento de superação da intolerância, da discriminação, da violência, da exclusão social e da incapacidade geral de aceitar o diferente.
Notem que enquanto a assistência de acusação depende de autorização judicial, o mesmo não pode ser dito em relação ao que preferimos chamar de “assistência qualificada”, onde a mulher tem o direito de estar acompanhada por profissional habilitado a orientá-la e assegurar a tutela de seus interesses (advogado ou membro da Defensoria Pública).
Se ao imputado deve ser assegurada a defesa técnica, em igual condição a mulher vítima de violência doméstica deve ter assegurada para si a denominada assistência qualificada. E por essa razão é que a Defensora Pública do Mato Grosso tinha total amparo jurídico para participar do ato processual de oitiva da vítima, sendo indevida a negativa de participação manifestada pelo juízo.
[1] Importante observar que o art. 141 do ECA garante “o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos”.
Franklyn Roger Alves Silva é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor da Universidade Candido Mendes, da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e de cursos preparatórios para a carreira da Defensoria Pública.
Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2019.
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