A Segunda Turma, por maioria, negou provimento a agravo regimental em habeas corpus, interposto de decisão em que concedida a ordem para revogar prisão preventiva decretada em desfavor da paciente e, em substituição, impor medidas cautelares diversas da prisão, na forma do art. 319 do Código de Processo Penal (CPP).
Na espécie, atribui-se à paciente a suposta prática dos delitos de lavagem ou ocultação de capitais e de participação em organização criminosa.
Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes (relator), segundo o qual o Ministério Público Federal não trouxe argumentos suficientes a infirmar a ato recorrido, visando apenas a rediscussão da matéria resolvida em conformidade com jurisprudência desta Turma.
Preliminarmente, observou que a reforma legislativa operada pelo chamado Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) introduziu a revisão periódica dos fundamentos da prisão preventiva, por meio da alteração do art. 316 do CPP. A redação atual prevê que o órgão emissor da decisão deverá revisar a necessidade de sua manutenção a cada noventa dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar ilegal a prisão preventiva.
Isso significa que a manutenção da prisão preventiva exige a demonstração de fatos concretos e atuais que a justifiquem. A existência desse substrato empírico mínimo, apto a lastrear a medida extrema, deverá ser regularmente apreciado por meio de decisão fundamentada.
O relator destacou três pontos centrais da linha argumentativa sustentada: (i) a ausência do elemento da contemporaneidade no decreto prisional; (ii) a ausência de elementos concretos que justifiquem a prisão preventiva e a adequação das medidas cautelares diversas; e (iii) o estado de saúde da ora agravada.
A seu ver, embora o Parquet sustente que o tribunal estadual teria demonstrado fundamentos aptos a restabelecer a prisão da paciente, nenhum fato concreto e atual foi apresentado no decreto prisional, tanto que se propôs a narrar novamente os fatos utilizados como base para a própria capitulação dos crimes, que datam de 2012 a 2016, confundindo os fundamentos pertinentes ao mérito com os que dizem respeito à necessidade da medida cautelar extrema, tal como fez aquele tribunal.
Diante de linha temporal apresentada, a paciente permaneceu em liberdade por período de quase dois anos, sem que houvesse notícias de quaisquer prejuízos para a aplicação da lei penal ou para o devido andamento da instrução criminal. Esse é um fundamento fático decisivo para que se mantenha o ato impugnado, pois demonstra a desnecessidade da segregação cautelar. Uma nova decretação de prisão preventiva, por meio da não manutenção do pronunciamento agravado, neste momento, representaria ato incongruente com o atual panorama normativo do processo penal.
O ministro sublinhou a inexistência de fatos novos ou contemporâneos concretos, idôneos a justificar a segregação cautelar da agravada. A questão da contemporaneidade foi enfatizada por recentes alterações do CPP, trazidas pelo Pacote Anticrime. A esse respeito, tem-se o § 2º do art. 312 do CPP (1).
Em passo seguinte, ponderou que a segregação cautelar está fundamentada apenas em suposições e ilações. Foi presumido que a prisão seria necessária para acautelar a ordem pública e desmantelar a organização criminosa, pois a agravada alegadamente integraria núcleo funcional da empreitada ilícita.
Impende que a alegação abstrata ceda à demonstração concreta e firme que tais condições realizam-se na espécie. Não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos.
Registrou que, com a redação dada ao art. 319 do CPP pela Lei 12.403/2011, o juiz passou a dispor de medidas cautelares de natureza pessoal, diversas da prisão, a permitir a tutela do meio social e também a servir, mesmo que cautelarmente, de resposta justa e proporcional ao mal supostamente causado pelo acusado. Eventual perigo que a liberdade represente à ordem pública ou à aplicação da lei penal pode ser mitigado por medidas cautelares menos gravosas do que a prisão.
Ao versar sobre o estado de saúde da paciente, o relator depreendeu dos autos que ela possui problemas de saúde comprovados que demandam tratamento cirúrgico. Isso foi utilizado, inclusive, pelo juiz de piso no embasamento da concessão de prisão domiciliar.
Por derradeiro, avaliou que a falta de capacidade do sistema prisional pátrio para tratar de forma digna as patologias da paciente corrobora a tese de que as medidas impostas no ato agravado se mostram mais adequadas do que o cárcere para acautelar a aplicação da lei penal e a instrução processual penal no caso concreto.
Vencido o ministro Edson Fachin, que deu provimento ao agravo. Segundo ele, não há hipótese de concessão da ordem. De igual modo, inexiste ilegalidade flagrante ou teratologia da determinação da prisão cautelar. O ministro reputou assistir razão ao agravante. Inclusive, ao ressaltar que a ausência de notícias da reiteração criminosa no interior da casa prisional no período em que segregada não elide ou encurta a gravidade das infrações penais a ela atribuídas. Argumentou que a prisão domiciliar deferida à acusada teve por escopo observar o fragilizado estado de saúde demonstrado anteriormente. Entretanto, não há comprovação da subsistência dessa condição excepcional. Ao final, firmou que habeas corpus não é sede para o reexame de fatos e provas.
(1) CPP: “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. (...) § 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.”
HC 179859 AgR/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3.3.2020. (HC-179859)
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