Considerações Críticas acerca do Estupro e Atentado Violento ao Pudor
SÚMARIO: 1. Introdução - 2. Definição e elementos do tipo - 3. Pretensa Hediondez - 4. A questão do bem jurídico protegido - 5. Sujeitos: 5.1. Sujeito ativo, 5.2. Sujeito passivo, 5.2.1. Violência sexual por parte do marido ou companheiro, 5.2.2. Estupro de transexuais - 6. Consumação e tentativa - 7. Concurso de crimes - 8. Penas - 9. Considerações finais – Referências Bibliográficas.
RESUMO: Os delitos que tem como objeto a agressão sexual são, por conseguinte, elementos de especial atenção por parte da doutrina e da jurisprudência. Interessa-nos sobremodo, os delitos do artigo 213 (Estupro), 214 (Atentado Violento ao Pudor) do Código Penal Brasileiro. Este ensaio faz com que tenhamos a oportunidade de refletir sobre questões antigas, que se encontram adormecidas, bem como as suas mudanças, tendo em vista a dissonância do Código Penal de 1940 com a legislação e jurisprudência atual.
Palavras-chave: Delitos contra a liberdade sexual; Estupro; Atentado violento ao pudor.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem como objetivo tecer alguns comentários críticos e sugestivos acerca dos crimes sexuais, especialmente os previstos no art. 213 e 214 do Código Penal Brasileiro.
A titulo de ilustração apresentaremos alguns dados estatísticos acerca da temática.
No Brasil, em 2005, foram registrados 8.520 casos de estupro e 7.322 casos de atentado violento ao pudor.
Estudos do Instituto de Segurança Pública e do Núcleo de Pesquisas em Justiça Criminal e Segurança Pública (Nupesp) indicam que o Rio de Janeiro teve alta de 20% em estupros, uma média de quatro estupros por dia. Uma em cada três vítimas violentadas tinha entre 12 e 17 anos e, na maioria dos casos, conhecia o agressor. Pelos dados coletados é possível saber que 75% das vítimas de estupro que registraram “queixas” na delegacia especializadas são solteiras, brancas ou pardas (80,1%) e estão na faixa dos 12 aos 34 anos (66,2%), destacando que vítimas e agressores se conheciam e em vários casos compartilham o domicílio (56,1%). Da relação de acusados fazem parte parentes próximos (17%), namorados e ex-namorados, maridos e ex-maridos (16,8%), colegas de trabalho, amigos e vizinhos (7,6%). Por grau de parentesco, chama a atenção o grande número de estupros praticados por pais ou padrastos (10,5%), tios, primos, cunhados e até avôs (7,2%). As solteiras são a grande parta da vítimas (75,3%), casadas/união estável (11,1%), sem informação (9,9%), separadas/divorciadas (3,7%).
Em São Paulo, embora no interior o índice de estupros teve queda, na capital, aumentou em 2,2 %. Oficialmente, em 2006, ocorreu um estupro a cada 4 horas, sendo 312 na Capital e 236 na Grande São Paulo, de acordo com a Secretária Estadual de Segurança Pública. Mas a realidade que não consta dos dados oficiais pode ser muito pior. Especialistas estimam que, para cada caso de violência conhecido, entre cinco e seis mulheres guardam segredo. Em Sorocaba, interior de São Paulo, numa parceria entre o Complexo Hospitalar, a Delegacia e o Instituto Médico Legal, em 2006, foram atendidas 391 vítimas de violência sexual, 70% delas tinham menos de 18 anos, boa parte tinha entre 5 e 12 anos e 90% eram do sexo feminino. 66 % dos agressores eram conhecidos da vítima, e, 20% das violências sexuais foram cometidas por padrastos. E somente 10% das denúncias se transformaram em processos criminais, de acordo com a estimativa da delegacia da mulher.
Menos de 10% dos casos de violência sexual chegam a delegacia. A ONU informou recentemente que 5% dos julgamentos por estupro, a nível global, acabam em condenação para os acusados.
Estes dados estatísticos mostram que a tanto o estupro como o atentado violento ao pudor são corriqueiros na nossa sociedade, levando-nos a buscar melhores formas de estabelecer uma legislação clara, precisa e atual. Com o intuito de contribuir, pretendemos tecer um comentário crítico, dogmático e jurisprudencial acerca dos delitos: Estupro e Atentado Violento ao Pudor. É isto que se fará a seguir.
2. DEFINIÇÃO E ELEMENTOS DO TIPO
A definição legal de estupro esta prevista no art. 213 do CP, da seguinte maneira: “Art. 213. Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.”
Desta forma, podemos destacar os seguintes elementos que integram a mencionada figura típica: a) conduta de constranger mulher; b) com ela praticar conjunção carnal; c) mediante o emprego de violência ou grave ameaça.
O núcleo do tipo é o verbo constranger, aqui utilizado no sentido de obrigar, subjugar a vítima ao ato sexual, forçar. A conduta constranger pode se dar de forma comissiva ou omissiva (§2.º do art. 13 do CP).
Exige o tipo penal, para caracterização do estupro, que a conduta do agente seja dirigida contra mulher. Nesses termos, não importa a conduta moral, o estado civil, a condição social, a condição corporal ou biológica da mulher. Também não é relevante se a mulher é prostituta, casada, solteira ou viúva; se virgem ou não.
O constrangimento praticado contra a mulher deve ser dirigido a prática de conjunção carnal, vale dizer, “a copula secundum naturam, o ajuntamento do órgão genital do homem com o da mulher, a introdução do pênis na cavidade vaginal.”
A definição legal de atentado violento ao pudor esta prevista no art. 214 do CP, no sentido de: “Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”.
Por meio da análise da mencionada figura típica, podemos destacar os seguintes elementos: a) a conduta de constranger a vítima; b) mediante o emprego de violência ou grave ameaça; c) fazê-la praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal; d) ou permitir que com ela se pratique tal ato de libidinagem.
O núcleo constranger, tal como ocorre no delito de estupro, é utilizado aqui no sentido de obrigar, subjugar a vítima ao ato de libidinagem, diverso da conjunção carnal. A conduta constranger pode se dar de forma comissiva ou omissiva (§2.º do art. 13 do CP).
Nesses casos, exige o tipo penal, para caracterização do atentado violento ao pudor, que a conduta do agente seja dirigida a qualquer pessoa, de qualquer sexo. Como no estupro, não deve ser considerada a posição social do sujeito passivo. Não importa se é meretriz, casado, solteiro, ou com qualquer reputação social.
O constrangimento praticado contra a pessoa deve ser dirigido a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, ou seja, por ato libidinoso entende-se o desafogo à concupiscência, em suas variadas formas. Dentre elas, o sexo oral, o coito anal, a masturbação, os toques e apalpadas de partes intimas, dos membros inferiores, os beijos, os contatos voluptuosos etc.
Quanto ao elemento subjetivo, em ambos os delitos, existem duas correntes: 1) além do dolo, para a caracterização do delito, é necessário uma finalidade especial do agente, que consiste na conjunção carnal (art. 213) ou na satisfação da concupiscência (art. 214); 2) para que se configura o delito sexual não há necessidade de que esteja presente uma finalidade especial, qual seja, a conjunção carnal (art. 213) ou a satisfação da concupiscência, na atuação do sujeito ativo. Basta o escopo de praticar a conjunção carnal (art. 213) ou o ato libidinoso (art. 214) e a consciência do ato.
Para que se possa configurar ambos os delitos, é preciso que o agente atue mediante a violência física (real ou presumida) ou grave ameaça (ameaça idônea para vencer a resistência da vítima). A ameaça pode ser direita (quando o mal é prometido a vítima) ou indireta (quando o mal é anunciado contra terceiro a quem a vítima esteja ligada por laços de afeto). O mal prometido pode ser justo (ex. denunciar crimes praticados pela vítima) ou injusto (ex. anunciar que vai matá-la) e deve ser analisado sob o ponto de vista da vítima, tendo em conta suas condições físicas e psíquicas.
É de se observar que diante da violência física, a vítima esta impossibilitada de resistir, rendendo se ao agente, ou seja, não possui outra escolha. Já quando a violência é moral, a vítima "escolhe" entre dois "resultados indesejáveis", um menor que é a rendição ao seu agressor, ou o "maior", que é a violência moral a que está sendo submetida, e, de certo, às conseqüências provenientes dela.
Observa-se que o CP exige para a configuração dos delitos em tela a violência ou grave ameaça.
Ocorre que esta posição esta impregnada de preconceitos, já que são reminiscências de um tempo em que a mulher, submetida ao patriarcado, não era senhora de si. Seu corpo não lhe pertencia e seus desejos sexuais eram sistematicamente reprimidos. Tanta preocupação com a resistência da vítima parece injustificável. Se um ato sexual acontece sem a permissão da pessoa, isso basta para a configuração do delito. Desnecessário que a vítima coloque sua vida ou sua integridade física em risco apenas para cumprir o requisito, que não está na lei, da resistência infinita. Não se pode exigir que a vítima vá ao extremo de sua resistência, até o risco da própria vida, para a configuração do delito. A resistência deve ser sincera, mas não precisa “prolongar-se até o desfalecimento ou trauma psíquico.” Pode ocorrer que, para minimizar o risco de uma violência ainda maior, a mulher ‘colabore’, não reagindo fisicamente e assim “tenta evitar que o agressor empregue meios ainda mais violentos para a consecução do seu ato.”
Greco sustenta que “para que seja efetivamente considerado o dissenso, temos de discernir quando a recusa da vítima ao ato sexual importa em manifestação autêntica de sua vontade, de quando, momentaneamente, faz parte do “jogo de sedução”. O erro do agente no que diz respeito ao dissenso da vítima importará em erro de tipo, afastando a tipicidade do fato.
Assim, “bastaria então que a vítima expressasse o seu dissenso ou, segundo uma proposta mais radical, que das circunstâncias do delito ficasse evidente que o agressor contrariara a vontade da vítima.” “A ameaça ou violência deveriam ser tratadas em nível de tipificação como formas de qualificadoras e não constitutivas do delito de sexual.”
Os delitos em tela se caracterizam quando a violência ou grave ameaça é utilizada para a prática do ato sexual não consentido pela vítima. Havendo o consenso, o consentimento do agente para dispor de sua liberdade sexual nos limites que aprouver, não há que se falar em crime. Ao revés, se tais limites forem ultrapassados, sendo rompida a barreira do aceitável, violada a liberdade (de caráter sexual) deste agente, ter-se-á delito a ser punido. Isto significa que, mesmo havendo violência, o consentimento da vítima tem o condão de afastar a tipicidade do fato.
Um dos pontos mais debatidos é a unificação de dois fatos: conjunção carnal e ato libidinoso. Neste sentido, três tendências se exprimem: 1) a primeira se refere a unificação de, ao menos, três atos dentro do delito de estupro: o coito vaginal, anal e oral; 2) a segunda tendência, é a de tipificar diversas figuras delitivas, numa construção de caráter casuístico, que leva, sobretudo em consideração, o grau de violência e as conseqüências que podem gerar à vítima; 3) a terceira tendência é unificar, num único tipo penal, as formas de conjunção sexual e outras ações sexuais (atos libidinosos).
Sabadell se manifesta no sentido de que a terceira tendência é o que melhor responde às exigências de tutela da autodeterminação sexual. Isto por três razões principais: 1) apresenta um conceito de estupro mais adequado às necessidades da proteção do bem jurídico, porque considera o corpo “sexuado” como um todo; 2) trata de modo minucioso as várias formas de lesão; 3) combina o aspecto simbólico de uma mensagem política e pessoal forte (todas as ações sexuais ilícitas integram o mesmo fato típico) com um sistema de penas que permite ao juiz, nesta matéria tão complexa, fixar a quantidade de pena movendo-se entre limites (mínimo e máximo) muito amplos.
Para Sabadell, estupro e atentado violento ao pudor deveriam estar dentro do mesmo capítulo, pois ambos visam a proteção do mesmo bem jurídico – “dos delitos contra a autodeterminação sexual”. Embora tenhamos diferenças quanto ao sujeito ativo, ambos se referem a ações sexuais ilícitas.
Eluf propugna no sentido de que o correto seria incluir todos os tipos de cópula (vaginal, anal ou oral) no delito de estupro, fazendo-se do atentado violento ao pudor um crime menos grave, com pena menor, talvez com outra denominação. Greco entende que “melhor seria que o legislador penal tivesse unido as duas figuras típicas, evitando-se muitas vez, controvérsias desnecessárias.”
Em ambos os delitos não é admissível a modalidade culposa, por ausência de disposição expressa neste sentido.
3. PRETENSA HEDIONDEZ
Com o advento da Lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), o Estupro e o Atentado Violento ao Pudor passaram a integrar o rol dos crimes considerados hediondos. Mas quais as formas de estupro e atentado violento ao pudor são consideradas hediondas? A questão é realmente polêmica e tem dividido tanto a doutrina quanto a jurisprudência.
Uns entendem que, os delitos em tela, seja na sua modalidade fundamental ou em suas formas qualificadas, consumado ou mesmo tentado, foram inseridos no elenco das infrações penais consideradas hediondas. Mesmo quando praticados mediante violência presumida, afirmam o caráter hediondo do fato, mas a opiniões em sentido contrário.
Nesse sentido:
Embora a redação dos incisos em exame não seja gramaticalmente perfeita, é preciso reconhecer que o sentido do direito ali contido indica que tanto as formas básicas quanto as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor são crimes hediondos. Se a intenção do legislador fosse a de excluir a forma simples do rol dos crimes hediondos, teria se reportado unicamente à forma qualificada, referindo-se ao estupro e ao atentado violento ao pudor praticados com lesão corporal grave ou morte da vítima e, em seguida, indicado os respectivos dispositivos do CP, como o fez em todo o texto do art. 1º da LCH . No entanto, tendo sido utilizada a conjunção aditiva e, outro não pode ser o sentido do direito, por mais grave que seja seu resultado hermenêutico: as duas formas típicas destas infrações hediondas — a simples e a qualificada — estão enquadradas na categoria penal de crime hediondo. Além disso, é preciso considerar que os dispositivos em análise utilizam-se do nomen êss estupro e atentado violento ao pudor, como categoria típica genérica e não como forma específica a esses dois tipos em suas formas qualificadas pelo resultado. Em seguida, reportam-se aos arts. 213 e 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, o que permite concluir que se trata também do gênero estupro ou atentado violento ao pudor e não apenas de suas formas qualificadas.
Outra posição, a qual nos inserimos, entende que somente as formas qualificadas dos delitos em tela podem ser consideradas crimes hediondos, ou seja, para que sejam considerados hediondos deve resultar em lesão corporal de natureza grave ou morte.
Alberto Silva Franco, em excelente comentário ao tipo penal de estupro, estabelece que a redação dada aos dois incisos em exame, ao utilizar a expressão estupro e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, tem o mesmo significado ou o mesmo sentido da expressão combinado com, de uso corrente na doutrina, na jurisprudência e na própria lei. E argumenta textualmente:
O fato mesmo de o legislador não ter aposto o termo caput ao número dos artigos 213 e 214, [...] e de não ter acrescido ao nomen iuris a expressão e na forma qualificada, [...] denota que não está relacionando com o tipo básico (estupro e atentado violento ao pudor) as formas qualificadas do art. 223 e de seu parágrafo único, como se fossem figuras somadas, mas, ao contrário, está integrando a redação do tipo básico com as orações subordinadas que compõem o caput e o parágrafo único do art. 223.
Por isso entendemos que, ao utilizar a conjunção aditiva e, a norma estaria indicando que somente a forma qualificada prevista no art. 223, caput e seu parágrafo único, é que poderia ser considerada como crime hediondo.
Ressaltando que, com o advento da Lei 11.464/2007, modificou-se alguns aspectos da Lei 8.072/1990, no sentido de que os crimes hediondos são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança. Pode ser concedida a liberdade provisória. O regime para o cumprimento da pena é o inicialmente fechado, podendo progredir após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. A prisão temporária, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.
4. A QUESTÃO DO BEM JURÍDICO PROTEGIDO
No Código Penal brasileiro de 1940 (em vigor) os crimes em comento estão inseridos no “Título VI” do CP, que trata “Dos crimes contra os costumes” e, dentro deste, ambos estão compreendidos no “Capítulo I”, “Dos crimes contra a liberdade sexual”.
O bem jurídico tutelado, por esta sistemática, é os costumes (sentido amplo). “Isso indica que tais delitos não são considerados como atentado à liberdade da vítima, mas como ofensa aos “costumes” da família e da comunidade.”
Os bons costumes é o que se busca proteger, “estando subentendida como aquela parte da moralidade publica referente as relações sexuais.” “Moralidade publica é a consciência ética de um povo, em um dado momento histórico.”
Sabadell analisa os delitos sexuais a partir de uma visão histórica. Ela afirma que a função da persecução e da pena na Idade Média era a de expiar um pecado contra toda a sociedade e não uma forma positiva de proteção à vítima. Insere esta interpretação em um quadro de análise composto por uma lógica patriarcal, na qual a sexualidade estava dentro de uma determinada moral e de parâmetros familiares, e a violência sexual era entendida “não como uma violência dirigida ao indivíduo, mas sim contra interesses que na realidade [transcendiam] a pessoa humana.”
No entanto, considerando que a proteção do direito repressivo há de ser dada a valores ou bens fundamentais para a sociedade, fácil é a percepção, em termos individuais, da necessidade de proteção à liberdade e autodeterminação sexual, em detrimento do que seriam a moral e os bons costumes.
O próprio caput do art. 5.º d CF/88 vem a estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”. Protegida e salvaguardada é a noção de liberdade, mesmo a sexual.
Tendo em vista a adoção de uma teoria do conceito de bem jurídico dedutível dos princípios constitucionais, deve se destacar que o objeto de proteção é a liberdade sexual da pessoa humana e não os costumes. Esta liberdade é entendida na sua dupla vertente: 1) liberdade positiva ou dinâmico-positivo, que se exprime na faculdade da livre disposição do próprio corpo; 2) liberdade negativa ou estática passivo, que se exprime na possibilidade de repelir qualquer ataque de índole sexual de outra pessoa e qualquer envolvimento num contexto sexual que não esteja em pleno acordo com a própria vontade.
Assim, devido ao critério equivocado do CP atual, o que se deve tutelar é a liberdade sexual da pessoa e não os costumes, já que a integridade física e psicológica dos ser humana que se procura proteger.
Greco leciona que:
O legislador perdeu a oportunidade de, por intermédio da lei n.º 11.106/2005, modificar a redação do Título VI do Código Penal. A importância de tal modificação residiria no fato de que, por meio das seções, capítulos e títulos do Código Penal, o intérprete conseguiria identificar o bem juridicamente protegido. Tendo em vista que o Código Penal usa a expressão crimes contra os costumes, devemos concluir serem os bens a ele ligados que almeja proteger por meio da criação típica.
Nesta linha de entendimento há um projeto de lei, n.º 1609/96, onde os artigos 213 e 214 do CP passariam a integrar o Titulo I (dos crimes contra a pessoa), Capítulo VI (Dos Crimes contra a Liberdade Individual), Seção I (Dos Crimes contra a Liberdade Pessoal). Se denominaria “Dos crimes contra a liberdade pessoal e sexual”. As disposições gerais (art. 223 a 226) continuariam no mesmo lugar.
Com vista a analise citada, este é o melhor entendimento, levando em conta a pessoa (liberdade sexual individual) e não os costumes.
5. SUJEITOS
5.1. SUJEITO ATIVO
Em regra o delito de estupro é praticado pelo homem. No entanto, em observância o verbo do tipo – constranger - o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Nota-se que o art. 213 em momento algum informa que a pessoa que realize o constrangimento seja a mesma que deva ter a relação sexual. Ex. “A” (mulher), constrange “B” (homem), mediante violência ou grave ameaça, para que pratique conjunção carnal com “C” (mulher). Hipótese esta denominada “coação irresistível”. Se a coação for moral, só responde o autor da coação, que leva a não exigibilidade de conduta diversa (exclusão de culpabilidade). Se a coação for física, retira a voluntariedade do comportamento, deixando de haver conduta. Se a coação for resistível, só beneficiará o agente a atenuante prevista no art. 65, III, c, 1.ª parte, do CP.
O Código Penal de 1890, que trazia no tipo o verbo estuprar, aí sim determinava que somente o homem poderia ser o sujeito ativo, e definitivamente o Código Penal atual não faz esta distinção.
Quando a mulher constrange o homem, mediante ameaça ou violência, a ter com ela conjunção carnal, as opiniões se dividem: Uns propugnam que seja atentado violento ao pudor, não obstante a conjunção carnal, pois, mesmo abstraindo-se esta, já o simples contato do pênis com a vulva representa ato libidinoso. Outros, em sentido contrário, entendendo que seja constrangimento ilegal, já que não se poderá responder por atentado violento ao pudor, porque o art. 214 do CP só se refere aos atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Lésbica se violentar outra mulher é atentado violento ao pudor. Mulher provida de clitóris hipertrófico é atentado violento ao pudor.
No crime de atentado violento ao pudor, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa.
Quando os delitos sexuais em comento forem praticados por várias pessoas, estes atuam em concurso. Nesse caso, cada agente que vier a praticar o ato sexual será considerado autor, enquanto os demais serão considerados partícipes.
Entende-se por co-autor dos delitos em comento quem concorre eficazmente para sua consumação, ainda que não tenha mantido relações sexuais com a vitima, tanto aquele que pratica diretamente, como o que pela violência ou grave ameaça, submete a vítima a ação direta de terceiro. Já por participação é aquele que induz (faz nascer a idéia na mente do agente), ou instiga (reforça uma idéia já existente) ou ainda auxilia materialmente.
5.2. SUJEITO PASSIVO
No crime de estupro, somente a mulher pode figurar como sujeito passivo, quanto ao transexual, será objeto de comento no ponto 5.2.2. Já no atentado violento ao pudor, qualquer pessoa pode ser sujeito passivo.
5.2.1. Violência sexual por parte do marido ou companheiro
Tema amplamente debatido pelos operadores do direito refere-se à questão da possibilidade de o marido ou companheiro cometer o crime de estupro ou atentado violento ao pudor contra a própria esposa ou companheira.
Dentre a corrente de que o marido não pode cometer o crime contra a esposa sustentam que, de um modo geral, as relações sexuais são obrigações recíprocas dos cônjuges, e que a mulher não pode se negar à prática da conjunção carnal com o marido, exceto quando a oposição da mulher fosse fundada em razões ponderáveis, como por exemplo, a recusa a relações com o marido afetado de moléstia contagiosa. Ademais, o estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). Entendem, também, que é licita a violência por parte do marido para forçar a esposa a manter relação sexual, pois trata-se, no caso, de exercício regular de direito.
Por outro lado, dentre a corrente que consideram que o marido pode ser sujeito ativo de crime de estupro contra a esposa, a qual nos inserimos, sustentam que embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral. Ainda, é incabível amparar o estupro praticado pelo marido contra a sua esposa sob o manto da causa de justificação do exercício regular de direito, sendo que no caso de a mulher descumprir injustificadamente o debito conjugal, poderá sim exigir o termino da sociedade conjugal na esfera civil, por infração dos deveres do casamento, mas nada autoriza o marido a se utilizar de violência para obter o almejado ato sexual.
Quanto ao crime de atentado violento ao pudor, os autores que abordam essa questão são enfáticos no sentido de considerar os atos sexuais praticados com a esposa, que não se consubstanciem em conjunção carnal, como ilegítimos e, cabendo ao direito dar tutela à esposa que se encontrar forçada a tais praticas pelo marido.
O mesmo entendimento deve ser admitido em se tratando de estupro ou atentado violento ao pudor praticado pelo companheiro na constância da união estável, por força do art. 1724 do novo Código Civil.
Destaca-se que a discussão travada até o momento quanto à posição da doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de o marido ou companheiro ser sujeito ativo dos crimes sexuais, em geral, se dá basicamente no plano teórico, porque raros são os casos das esposas ou companheiras que denunciam às autoridades publicas a violência sexual sofrida, mais raros ainda são os pronunciamentos dos tribunais sobre o assunto.
Ressalta-se também que seria um absurdo, em face das garantias constitucionais, se o marido ou companheiro pudesse constranger a mulher a qualquer ato sexual, mediante violência ou grave ameaça, e não ser responsabilizado criminalmente.
5.2.2. Estupro de transexuais
Outro ponto crítico refere-se ao estupro de transexuais.
A Associação Paulista de Medicina define o transexual como sendo “o indivíduo com identidade psicosexual oposta aos seus órgãos genitais externos".
Roberto Farina define o transexualismo como:
“[...] na qual o individuo se conduz como se pertencesse ao gênero oposto. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura por meio da cirurgia de reversão genital, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero.”
O transexual, embora nascido homem, sente-se mulher (seu psicológico é imutável e sempre foi feminino) e que a cirurgia apenas realiza uma adequação da sua psique ao seu corpo. E os avanços médicos tornam cada vez mais semelhante a uma vagina natural, aquela construída por meio da ablação do membro, todas as terminações nervosas são preservadas e a genitália construída mantém íntegra sua sensibilidade.
Recentemente, foi noticiado pela Revista Consultor Jurídico que:
Em Planaltina, Goiás, um transexual conseguiu autorização judicial para alterar seu nome e sexo no registro civil. O juiz Lucas de Mendonça Lagares determinou a expedição de mandado ao cartório local para que seja feita a alteração. Para ele, “o registro público deve se adequar à aparência do registrando como único meio de se evitar que ele seja constantemente vitimado por situações de constrangimento e vexame”.
Na sentença, o juiz relata que transexual não se sente nem se vê com o nome que possuía. Ele é masculino, mas sua psique — e agora seu corpo, são femininos. Segundo Lagares, o artigo 13 do Código Civil tem previsão legal para a mudança do registro.
Na ação de retificação de registro civil, o transexual contou que fez a cirurgia, denominada transgenitalização, em maio de 2006. Nesse momento, ele recebeu atestado médico de que possui corpo e genitália femininos.
O transexual disse ainda que desde sua infância sofre moralmente em função de sua situação psicológica. “Ele nasceu num biotipo masculino com psiquê feminina.” Segundo ele, desde os quatro anos percebeu a diferença, quando se comparava com seus irmãos e preferia brinquedos e amizades de menina. Aos 13 anos iniciou relacionamento com um homem de 33 anos, com quem vive até hoje. Sua situação foi diagnosticada por um psiquiatra aos 15 anos.
Como não existem normas que tratem especificamente do assunto, o juiz baseou sua fundamentação nos dispositivos constitucionais que se referem à dignidade da pessoa humana, livrando-a de todo e qualquer preconceito ou discriminação. Para o juiz, “toda pessoa tem direito ao nome e este é uma manifestação da personalidade do indivíduo, juntamente com sua capacidade, seus status individual, familiar e social, sua fama e seu domicílio.”
Que o transexual possa ser vítima de atentado violento ao pudor, não há dúvidas, tanto porque qualquer pessoa pode ser vítima do referido delito.
Mas, como fica então a hipótese em que a vítima, um transexual, depois de se submeter à cirurgia de reversão genital, criando o que a medicina denomina de neovagina, seja violentada (violência ou grave ameaça) pelo agente havendo penetração especificamente nesse lugar criado cirurgicamente, similar à vagina de uma mulher. No caso em tela, haveria estupro ou se configuraria atentado violento ao pudor?
Se dissermos que somente a mulher pode ser vítima do estupro, estamos afastando a responsabilidade penal do agente por atipicidade da conduta, vez que o atentado violento ao pudor é claro ao afastar a conjunção carnal de sua esfera de incidência.
E se o agente desconhece o fato, ou seja, acredita que a vítima seja uma mulher, mas que na verdade é um transexual operado? Então, o agente poderia ser punido pelo crime de estupro, segundo o parágrafo 3.º, do artigo 20, do Código Penal brasileiro.
Assim, como poderemos punir alguém por estupro se a própria lei diz que não é possível que a vítima seja homem? Como também poderemos puni-lo por atentado violento ao pudor se a lei diz que a conjunção carnal não está abrangida por esta tipificação penal?
Greco entende que se a modificação se der tão somente no documento de identidade, com a simples retificação do nome, aquela pessoa continua a ser considerada pertencente ao gênero masculino, não sendo passível de ser considerada vítima de estupro. No entanto, se houver determinação judicial para a modificação do registro de nascimento, alterando o sexo, ter se um novo conceito de mulher, que deixará de ser natural, passando, agora, a um conceito de natureza jurídica, determinado pelos julgadores. Isto acontecendo, aquele que passou a ser reconhecido judicialmente como do sexo feminino, na hipótese de ser violentada sexualmente, ocorrendo a penetração na neovagina, o fato poderá ser classificado como estupro.
Ferreira Neto propugna que, preenchendo os requisitos autorizadores de uma conjunção carnal, o transexual operado pode, sem maiores dificuldades, ser considerado vítima de estupro, independente de que se houver determinação judicial para a modificação do registro de nascimento, alterando o sexo.
Assim, o crescimento do número de transexuais começa a ser recorrente em nossa sociedade e trazida ao conhecimento do público. É dever do direito adequar-se às transformações da sociedade e prever punições para casos sexuais envolvendo transexuais operados.
6. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
A consumação no delito de estupro se dá pela introdução do pênis, pelo menos em parte, na vagina da vítima, haja ou não ejaculação, sendo esta interna ou externa. Não é necessário o rompimento do hímen, pois, sendo a relação sexual incompleta, a membrana pode permanecer integra. Há também casos de hímen complacente, nos quais nem sequer ocorre a ruptura. O coito vulvar também caracteriza o estupro, uma vez que, psicologicamente, a vitima se sente estuprada. Atritar o pênis na entrada da vagina não é o mesmo que fazê-lo em outra parte do corpo feminino. Além do que, havendo ejaculação, existe a possibilidade de gravidez.
Para Fernandes a consumação do estupro se da no momento que a vítima é desprovida de sua voluntariedade, sendo a cópula, parcial ou total, mero exaurimento do crime. Não é necessário a ocorrência do resultado visado pelo agente, ou seja, a copula, ainda que parcial. Se esta fosse à vontade do legislador, ele teria empregado a palavra “ter”, como no caso do art. 215.
A consumação do delito de atentado violento ao pudor se dá quando evidenciada a existência de contato físico entre o agressor e sua vítima, o agente realiza atos libidinosos diversos da conjunção carnal, como beijos lascivos, caricias, sexo anal, oral etc., ainda que impedido de continuar sua lascívia por outrem. A contemplação lasciva ou a exibição de partes do corpo não configuram o delito, embora a posições em sentido contrario, propugnando que a visão lasciva pode ser abrangida pelo tipo quando, por exemplo, o agente obriga a vítima a desnudar-se para contemplá-la. Não é necessário o contato físico entre o agente e a vítima para efeitos de reconhecimento do delito de atentado violento ao pudor. Caso o agente tiver empregado a grave ameaça contra a vítima, mas não havendo contato físico, deverá o agente responder pelo art. 146 do CP. Não pratica atentado violento ao pudor aquele que agarra a mulher e desiste do seu intento interrompendo a ação, em face da aproximação de terceira pessoa ou mesmo porque sentira que agira mal, enganado em seu raciocínio, e que não chega a praticar ato algum caracterizador do delito. “Quanto ao beijo, excluem-se aqueles que forem castos, furtivos ou brevíssimos, com os dados na face”.
Parte da doutrina posiciona-se no sentido de que, se o agente não consegue consumar o estupro por circunstâncias alheias à sua vontade, deverá responder pelo delito de atentado violento ao pudor. Não concordamos com este posicionamento, isto porque, a nosso ver, o que diferencia a tentativa de estupro do atentado violento ao pudor é o elemento subjetivo especial do tipo.
Naturalmente, será difícil distinguir, na prática, a tentativa de estupro, da tentativa de atentado violento ao pudor. No estupro o fim do agente é a conjunção carnal normal. Já no Atentado violento ao pudor é ato libidinoso diverso da copula normal.
Pune-se a tentativa de acordo com o art. 14, parágrafo único, do CP. Registra-se que o ajuste, a determinação ou a instigação e o auxilio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado (Art. 31 do CP).
Quando o homem tem incapacidade de obter ereção peniana, impedindo-o de praticar os atos de penetração, tem-se entendido crime impossível, uma vez que, não havendo qualquer possibilidade de ereção, torna-se impraticável o estupro, que exige um membro viril para que se leve a efeito a penetração, total ou mesmo parcial.
Quanto a desistência voluntária nada impede que, não havendo prosseguimento da execução do crime por vontade própria do agente, tenha-se por caracterizado a desistência voluntária (art. 15 do CP). Poderá ser responsabilizado tão somente pelo constrangimento ilegal a que submeteu a vítima. Prado propugna que haverá “desistência voluntária, consumando-se o crime de atentado violento ao pudor, no caso em que o agente desista voluntariamente de atingir a meta optata (conjunção carnal).
7. CONCURSO DE CRIMES
Há concurso material entre o estupro e atentado violento ao pudor se, além da conjunção carnal o agente praticar com a vítima outro ato sexual que não a conjunção carnal, exemplo disto é a fellatio in ore e o coito anal, embora pese posições no sentido de continuidade delitiva. Ocorre continuidade delitiva no crime de estupro praticado mais de uma vez contra a mesma vítima (CP, caput do art. 71). Se o crime for praticado contra vítimas diversas, não se da o reconhecimento da continuidade delitiva e sim incide a hipótese da regra do concurso material. Ocorrendo vias de fato ou lesões leves, na pratica do estupro, elas são absorvidas por integrarem a violência real, já outras lesões (grave) constituirão delito autônomo. Evidenciado que as séries delituosas estão separadas por espaço temporal igual a seis meses, não se há de falar em crime continuado, mas em reiteração criminosa, incidindo a regra do concurso material.
8. PENA
O legislador comina pena de reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos, para ambos os delitos.
O legislador ao fixar a pena mínima de 6 (seis) anos de reclusão para o crime de atentado violento ao pudor exagerou na exasperação da pena, já que os atos libidinosos obedecem a uma verdadeira escala hierárquica, variando do mero toque até o coito anal. Segundo os princípios mais acurados de justiça, é injusto e absurdo aplicar-se a conduta de apalpar ou beijar alguém a força a pena mínima de 6 (seis) anos reclusão, a mesma pena prevista para o sexo anal. Poderá, nesse caso, ser responsabilizado delito de constrangimento ilegal (art. 146 CP), ou mesmo pela contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da LCP), dependendo da intensidade e da gravidade do fato praticado, evitando-se outrossim, a aplicação de uma pena extremamente desproporcional.
Nota-se que a pena mínima cominada - seis anos de reclusão - é idêntica aquela prevista para o delito de homicídio simples – seis anos de reclusão. Ainda, este ultimo não sofre os rigores da Lei de Crimes Hediondos. Nota-se ausência de proporcionalidade.
Mesmo admitindo “que tanto o estupro quanto o atentado violento ao pudor são crimes graves [...] há casos de crime de estupro, e principalmente de atentado violento ao pudor em que a gravidade da conduta não se apresentará de forma tão acentuada, e o rótulo da hediondez poderá se revelar politicamente desnecessário, indevida, injusta e ilógica.”
Alguns magistrados têm optado pela absolvição, aplicando o princípio da
insignificância, como a decisão do juiz João Pereira Neto, na Ação Penal Pública Processo nº 270/2001-1, Santa Luzia do Paruá (MA), sentenciada em 14 de março de 2003, que aplicou a tese do princípio da insignificância a um crime de atentado violento ao pudor praticado contra uma mulher de vida sexual bastante ativa (que também se prostituía). A própria vítima não se sentiu profundamente ofendida com a conduta do réu, chegando inclusive a insinuar que manteria com o mesmo relações sexuais caso a abordagem fosse outra, bem como, também, sua pretensão de retirar a representação quando ouvida em juiz. Em síntese, a aplicação do princípio da insignificância deu-se pela idéia de que o bem jurídico tutelado pela norma (liberdade sexual da vítima) não foi violado pela conduta do agente, levando a absovição do acusado por estar excluída a tipicidade criminal, com base no princípio da insignificância, embora pese posições em sentido contrário de que a descisão viola o princípio da dignidade feminina, o princípio da igualdade e o princípio da liberdade sexual. Viola, também, instrumento internacional de proteção dos direitos humanos das mulheres a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Outros juizes e tribunais valem-se da alternativa de desclassificação da imputação do art. 214 do Código Penal para as contravenções penais de importunação ofensiva ao pudor ou perturbação de tranqüilidade.
Merece algum comentários o Projeto de Lei n.º 7.201/2002, que propõe a alteração dos arts. 213 e 214 do Código Penal Brasileiro, fixando a pena de castração com recursos químicos para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, a saber:
“Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – castração, através da utilização de recursos químicos."
“Art. 214 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena – castração, através da utilização de recursos químicos.”
O projeto em comento não prevê, exatamente, qual a modalidade de castração química seria utilizada. No caso da mulher ser autora, co-autora ou participe, também estaria sujeita à mesma pena? Em qual parte do corpo recairia a reprimenda no caso da co-autora, a mulher, uma vez que ela não tem pênis? E no caso de atentado violento ao pudor, embora com a pena citada percam a capacidade de ereção, continuam tendo dedos, língua, boca – ressaltando que não é só com o emprego do pênis que se molesta alguém. Além de violar vários princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, da proibição de pena cruel, desumana, degradante, da individualização da pena (Penaliza de igual forma agentes com motivações diferentes, com graus de reprovabilidade diferentes).
O que se deve levar em conta são as circunstancias presentes em cada um desses crimes é que darão a medida certa para se aferir, de forma casuística, qual deles é o mais grave.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente ao que foi apresentado podemos concluir que os delitos - Estupro e Atentado Violento ao Pudor – previstos no Código Penal de 1940, encontram-se ultrapassados, principalmente em face a Constituição Federal de 1988.
Precisamos urgente de uma reforma no tocante a temática, é isto que esperamos por parte dos legisladores e aplicadores do direito.
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