domingo, 5 de setembro de 2010

Artigo: A abolição da pena de morte no Brasil

Por Sérgio Salomão Shecaira



I. Introdução

De 9 a 11 de dezembro de 2009, realizou-se em Madri um Colóquio Internacional para abolição da Pena de Morte, sob os auspícios da Universidade Castilla-La Mancha, do Instituto Penal Europeu e Internacional e do Governo Espanhol (Ministério da Presidência). Na sequência, de 22 a 24 de fevereiro de 2010, fez-se realizar, em Genebra, novo encontro para aprofundar tais discussões. Estes conclaves são parte de uma grande campanha internacional para abolição da Pena de Morte em todo o mundo.
Inúmeros são os instrumentos internacionais a recomendar o fim da pena de morte em escala mundial, quando não a moratória para alguns casos (menores de 18 anos, mulheres grávidas ou agentes que cometeram crimes de natureza política).

Em 18 de dezembro de 2008, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 63/168, intitulada “Moratória do uso da pena de morte”. Neste documento acolheu-se, com beneplácito na decisão adotada por um número crescente de Estados, a ideia de aplicar uma moratória de execuções como parte de uma tendência mundial pela abolição da pena de morte. Em julho de 2009, a Assembleia Parlamentar da Organização para Segurança e Cooperação da Europa adotou uma resolução “sobre uma moratória da pena de morte como caminho para sua abolição”. O Comitê de Direitos Humanos segue ocupando-se da questão da pena capital, no marco do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Até julho de 2008, 141 países haviam abolido a pena de morte. Deles, 93 eram completamente abolicionistas, 10 eram abolicionistas unicamente a respeito dos delitos comuns e 38 podiam ser relacionados como abolicionistas de fato (há previsão da pena no ordenamento, mas ela não é aplicada pelo Poder Executivo). Outros 56 países e territórios seguiam mantendo e aplicando a pena de morte.
É importante observar que o Brasil, a despeito de não aplicar pena de morte de longa data, é considerado internacionalmente como um país abolicionista somente para delito comum, por prever a pena de morte em casos de guerra declarada.

Por isso, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária — CNPCP — aprovou uma proposta de emenda constitucional, ora em trâmite no âmbito do Ministério da Justiça — na Secretaria de Assuntos Legislativos — para propor ao Congresso Nacional a supressão da Pena de Morte da Constituição de 1988, cujos fundamentos estão em parte abaixo reproduzidos.


II. História e situação jurídica atual

O Descobrimento do Brasil ocorre em uma época de regras severas na seara penal, absolutismo da monarquia e intolerância da Igreja Católica. Com esse quadro, a esquadra de Cabral chega ao Brasil trazendo 20 condenados à morte como bagagem. A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel revela que os presos exerceram um papel utilitário na expedição: penetrar o território desconhecido. Foram desembarcados diversas vezes para que se aproximassem dos índios. Dois foram deixados no novo território com o propósito de obter informações sobre os costumes nativos e as riquezas da terra e para disseminar a palavra de Deus. Nossos primeiros habitantes de linhagem europeia, abandonados à própria sorte, já cumprindo suas penas, foram resgatados com vida. Um deles é mencionado em carta firmada pelo próprio rei: “Voltou um que sabia a língua dos indígenas e nos informou de tudo”.(1)

Nossas Ordenações do Reino previam a pena de morte em mais de 70 casos, desde o crime de lesa-majestade até o de sodomia, passando por homicídios e roubos. A execução, embora variada, era feita por meio do enforcamento, sendo precedida, conforme o caso, de suplícios e podendo ser sucedida de esquartejamento, queima do cadáver e perda de bens.

Com a Independência (1822), embora mantida transitoriamente a legislação reinol, a Constituição de 1824 expressamente aboliu as penas cruéis. A Lei de 11 de setembro de 1826, em seu art. 1º, determinava que a sentença proferida em qualquer parte do império, que impusesse pena de morte, não seria executada sem primeiramente subir à presença doimperador, para perdoar ou moderar a pena (Constituição de 1824, art. 101, §§ 8º e 9º). Só em 1830 foi promulgado o primeiro Código Penal do Brasil, em cujo arsenal de penas se incluía a morte na forca, restritamente cominada aos crimes de insurreição de escravos, homicídio qualificado e latrocínio.(2)

Contribuiu para a abolição de fato da pena de morte em 1855 o erro judiciário que levou à forca o fazendeiro Manuel Motta Coqueiro, em Macaé, RJ. Foi acusado de ter chacinado, em 1852, o colono Francisco Benedito e toda a sua família. Submetido a julgamento pelo tribunal do júri, o réu, que o povo denominara de Fera de Macabú, foi condenado, por unanimidade, à forca, não obstante seus reiterados protestos de inocência. Posteriormente descobriu-se o erro judiciário que levou Motta Coqueiro à morte. A partir daí, D. Pedro II, usando de seu poder moderador, passou a comutar, sistematicamente, a pena capital para galés, apegando-se, para tanto, a qualquer circunstância favorável ao condenado(3) e decidindo favoravelmente a todas as petições de graça que recebeu para beneficiar homens livres e libertos, e, a partir da década de 1860, estendeu esse favor aos escravos, mesmo quando acusados de crimes mais graves.(4) O derradeiro enforcado foi o escravo Francisco, residente na cidade de Pilar, em Alagoas. Assim, o processo evolutivo assegurou a concessão de graça imperial a partir de 1856 para os homens brancos, sendo gradativamente seus benefícios estendidos aos libertos e, por fim, aos escravos. Até o final do Império, a pena de morte só existia no papel.

Com a proclamação da República, o Dec. 774/1890 riscou da legislação a pena de morte e logo a seguir foi publicado o Código Penal, o qual não previu a pena de morte, antecipando-se à Constituição de 1891, e que, depois de abolir a pena de galés e a de banimento judicial, declarava no art. 72: fica igualmente abolida a pena de morte, reservadas as disposições da legislação militar em tempo de guerra.

Com o advento da Ditadura Vargas, no final dos anos 30 do Século XX, a pena de morte voltou a ser autorizada, mesmo na legislação civil e em tempo de paz. Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de guerra, a lei prescrevia a pena de morte para todos os crimes que pudessem colocar em risco a existência do Estado. O Dec.-lei 86, de 20 de janeiro de 1938, autorizava a criação de um Tribunal de Segurança com sede na Capital da República, permitindo a imposição da pena de morte, que, todavia, jamais foi aplicada.

A redemocratização de 1946, por força do art. 141 da Constituição Federal, aboliu a pena de morte para os tempos de paz, só mantendo para os casos militares, ainda assim em caso de guerra declarada.
Com o advento da Ditadura Militar de 1964, no entanto, a pena de morte foi novamente introduzida no Brasil (Lei 898/69). Vigorou de 1969 até 1979 e, mais uma vez, não ocorreram execuções. Um jovem militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), acusado de assassinar um sargento da Aeronáutica em 1970, na cidade de Salvador, foi condenado à morte pela Justiça Militar, mas não foi fuzilado. Sua sentença foi sendo sucessivamente reformada. Excluído da anistia, fugiu da prisão e exilou-se no exterior. Voltou ao país em 1985, depois que se encerrou o ciclo militar, tornando-se juiz da Justiça do Trabalho.(5)

Atualmente, a única hipótese de pena de morte prevista constitucionalmente (art. 5º, XLVII) é no caso de guerra declarada. Nos termos do artigo 60, § 4º, inciso IV, a vedação da pena de morte, por se tratar de direito e garantia individual, é cláusula pétrea, ou seja, não é passível de emenda constitucional no sentido de permitir que ela venha novamente a ser aplicada em outros casos.

No entanto, permanece a previsão de pena de morte no Código Penal Militar (Dec.-lei 1.001 de 21/10/1969), para inúmeros crimes, sempre em caso de guerra. O Código Castrense, no Livro II da Parte Especial, prevê as hipóteses em que ocorreriam. Elencamos, dentre outros: traição (art. 355); favorecimento ao inimigo (art. 356); cobardia qualificada (364); motim (art. 368); incitamento na presença do inimigo (art. 371); dano especial (art. 383); abandono de posto (art. 390); deserção em presença do inimigo (art. 392); homicídio (art. 400); roubo (art. 405).

Assim, desde um roubo até um crime de dano há autorização de pena capital. Tem-se notícia, na 2ª Guerra Mundial, de sua fixação para essas hipóteses, com posterior comutação da pena antes de sua execução.


III. Intimidação e pena de morte: a opinião pública

É importante mencionar que, a despeito da decisão da Assembleia Constituinte de 1988 ter sido majoritariamente desfavorável à pena de morte, sucessivas pesquisas de opinião mostraram que a pena capital tem grande suporte popular. No ano de 2007, por exemplo, data da última grande pesquisa sobre pena de morte pelo Datafolha, identificou-se que 47% dos entrevistados davam suporte à pena capital. Logo após o terrível assassinato de uma criança em uma tentativa de sequestro no Rio (caso João Hélio), ainda no mesmo ano de 2007, o índice de favoráveis à pena de morte subiu para 55%.

Nos EUA, sempre foi muito mais provável a execução do negro que assassina o branco do que a do branco que assassina o negro. Dos 2.307 executados entre 1930 e 1980, na região Sul do país, 1.659 eram negros (71,91%). De 1976 a 1991, das mais de 150 pessoas executadas, somente uma era um branco condenado pelo assassinato de um negro.

Pesquisa realizada no Estado da Geórgia demonstrou que quando a vítima é branca e o réu é negro, chega a 22% a possibilidade do acusado ser condenado à morte; todavia, quando a vítima é negra e o réu é branco, essa probabilidade é praticamente zero. No mesmo Estado, descobriu-se, durante a década de setenta, que os assassinos de pessoas brancas foram executados numa proporção onze vezes maior do que os assassinos de pessoas negras. Um estudo realizado no Estado do Texas revelou que em cada grupo de 4 pessoas defendidas por advogados indicados pelo Estado (réus sem condições de pagar advogados), em processos onde a pena capital poderia ser aplicada, 3 eram condenados à morte; por outro lado, em cada grupo de 3 pessoas defendidas por advogados particulares, somente 1 era condenado à morte.

Por que os assassinos do Missouri (com pena de morte e taxa de 9 homicídios para cada 100 mil habitantes), daquele mesmo período, não escolheram como lugar do delito o Estado vizinho, Kansas, sem pena de morte e taxa de 5,1 homicídios no mesmo universo populacional? Nunca ficou comprovado o potencial de intimidação da pena capital. Não é possível aferir quantas pessoas deixaram de matar justamente pelo temor de serem executadas. Em 2004, nos EUA, o índice médio de assassinatos nos Estados com pena de morte foi de 5,71 por cada 100.000 habitantes, mas nos Estados sem a pena capital foi só de 4,02.(6)

Não havendo qualquer efetividade para sustentação da pena de morte sob a ótica da dissuasão penal, nunca é demais lembrar que nossa Constituição Federal consagrou o respeito incondicional à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Ademais, os erros judiciais — e entre nós eles não são poucos, em face das deficiências de nossa justiça — serão sempre irreparáveis, quando falamos da pena capital.
Ora, como admitir que a pena de morte, vedada em todo o nosso ordenamento, possa ser aplicada a um simples crime patrimonial em tempo de guerra? Seria esse o diferencial a assegurar a obediência hierárquica a garantir a coesão da tropa em caso de conflito armado?

Albert Camus bem expressa a situação: o acusado acaba sendo condenado menos pelo crime que cometeu do que por todos os crimes que poderiam ter sido cometidos. “Estranha lei que conhece o assassino que ela mata e ignorará para sempre aquele cujo crime impede de cometer”.(7)

Notas

(1) Luís Francisco Carvalho FilhoO que é pena de morte, p. 26/7.
(2) Heleno Fragoso. In: Pena de morte. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1967, Pena de morte. p. 73.
(3) Nelson HungriaA pena de morte no Brasil. In: Pena de morte. Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1967, p. 176.
(4) René Ariel DottiRituais e martírios da pena de morte. In: RBCCrim, vol. 26, abr/jun 1999, p. 274.
(5) Luís Francisco Carvalho FilhoOp. cit., p. 34.
(6) Anistia InternacionalA questão da pena de morte, 1998.
(7) Nereu LimaPena de morte: pedagogia da violência. In: Marques, João Benedicto de AzevedoReflexões sobre a pena de morte, 1993, p. 72.

Sérgio Salomão Shecaira
Professor Titular de Direito Penal da USP. Ex-presidente do IBCCRIM e CNPCP.


Fonte: Boletim IBCCRIM nº 214 - Setembro / 2010.

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