sexta-feira, 13 de março de 2009

Artigo: O novo decreto de indulto

O Presidente da República, no dia 22 de dezembro de 2008, assinou o Decreto 6.706/2008, concedendo indulto natalino e comutação de penas (DOU de 23/12/08). A pura e simples publicação de um decreto dessa natureza oculta todo o processo de sua gestação.

A primeira redação do decreto de indulto é elaborada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em cujo âmbito foi constituída uma comissão para discutir todas as contribuições que a sociedade civil e a comunidade jurídica pudessem aportar para sua elaboração. Isso se fez por meio de convites a diversas entidades públicas e privadas, como Ministérios Públicos Federal e Estaduais, Magistraturas Federal e Estaduais, Defensorias Públicas, OAB, Conselhos Penitenciários e organizações não governamentais que trazem contribuições relevantes à temática penitenciária (IBCCRIM, p. ex.). Após a realização de audiência pública no Ministério da Justiça, os conselheiros do CNPCP/MJ elaboraram o decreto, votando artigo por artigo, até chegarem ao texto final. Este contou, ademais, com as contribuições dos assessores técnicos do Ministério da Justiça e da Casa Civil da Presidência da República.

Esse longo — e democrático — processo teve como pano de fundo as necessidades prementes de se enfrentar o grave problema de superpopulação carcerária existente no país. Nossos índices de encarceramento são alarmantes e, o que é pior, continuam em franco crescimento. Por isso, entendeu-se serem urgentes as modificações feitas em relação ao decreto de indulto do ano passado.

Não por outra razão, facilitou-se o indulto à mulher encarcerada (mãe de deficiente mental ou de menor de 16 anos, cujos cuidados dela necessite, nos termos do art. 1º, IV); deu-se a oportunidade inédita do indulto alcançar a pena pecuniária, e não somente a privação de liberdade (art. 1º, VI); ampliou-se o alcance do indulto no âmbito da Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006), para permitir sua concessão aos autores dos delitos do art. 33, §§ 2º, 3º e 4º (art. 8º, I); estendeu-se, também de forma inédita, o indulto às medidas de segurança, permitindo sua concessão àqueles que tenham suportado privação da liberdade ou internação por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada (art. 1º, VIII); criou-se a figura da comutação de penas para as penas restritivas de direito (art. 2º).

Algumas dessas medidas estão a merecer o olhar atento da doutrina, assim como dos operadores da execução penal.

A concessão de indulto àqueles que cumprem medida de segurança faz parte de um amplo movimento político-institucional e doutrinário que está a recomendar a desinternação daquele autor de delito que no momento de seu cometimento era incapaz de compreender o caráter ilícito do fato praticado. Nas inúmeras reuniões havidas para o estudo da matéria, constatou-se a existência de deficientes mentais, muitas vezes autores de um delito sem violência ou grave ameaça à pessoa, que permanecem sob internação por prazo indefinido. Ficam, algumas vezes, 10 ou 15 anos esquecidos em Hospitais de Custódia e Tratamento, sem qualquer ação curativa, sem o olhar médico ou assistencial do Estado. Não reivindicam advogado. Não sabem por que estão presos e nem por quanto tempo. Por isso, o magistério de Eduardo Reale Ferrari acabou por ser acolhido, para estabelecer que o limite da medida de segurança não deverá ser “jamais superior àquele enunciado abstratamente na pena do ilícito-típico praticado”(1). Persistindo problemas mentais, deverá haver interdição civil, subtraindo-se a temática da esfera penal.

A segunda grande inovação trazida pelo Decreto de 2008 diz respeito à concessão de indulto para as penas pecuniárias. Em anos anteriores eram indultadas as penas privativas de liberdade, subsistindo a multa para ser executada. Nunca houve qualquer vedação legal ao indulto da multa. A Constituição da República, no art. 84, XII, reconhece a competência ao Presidente da República para “conceder indulto e comutar penas” de forma genérica, não especificando quais sejam. À evidência, podendo indultar as penas mais graves poderá o Presidente fazê-lo com as menos graves. E com isso desentulham-se muitas mesas de trabalho de juízes das Varas de Execuções Penais(2).

Uma última mudança digna de relevo merece análise. Ela diz respeito à possibilidade dos condenados por infração ao art. 33, §§ 2º a 4º da Lei de Drogas poderem pleitear a concessão do indulto. Em artigo anterior, também publicado neste Boletim do IBCCRIM (ano 15, nº 177, agosto/2007)(3), no qual destacamos a imprecisão legislativa quanto à definição do que seja tráfico ilícito de drogas(4) — crime equiparado a hediondo —, afirmamos não ser possível aplicar de maneira automática às múltiplas figuras previstas no art. 33 os gravames e limitações penais ou processuais estabelecidos pela Lei 8.072/90. Felizmente, o Decreto 6.706/08 seguiu esse mesmo caminho para, dando um passo adiante, reconhecer expressamente a possibilidade de concessão do indulto para condutas como a do § 4º do art. 33, desde que não configurem prática de mercancia.

É interessante observar que o Decreto de Indulto de 2008, ao abrir a mencionada possibilidade, acabou por suprir a lacuna referida algumas linhas acima, qual seja a da falta de definição legal do que seja tráfico ilícito de drogas. Com efeito, ao permitir a concessão de indulto aos condenados por infração ao § 4º do art. 33 da Lei de Drogas, “desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia” (art. 8º, I do Decreto n. 6.706/2008), firmou o legislador verdadeiro marco interpretativo, segundo o qual só configura “tráfico ilícito de drogas” a conduta que tem por finalidade a “mercancia”.

Portanto, a prática delituosa enquadrada em qualquer dos verbos enunciados no caput do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, caso ausente a “mercancia”, não poderá ser equiparada a crime hediondo, afastando os gravames da Lei 8.072/90. E, consequentemente, ao condenado por essa mesma infração poderá ser concedido o indulto do Decreto 6.706/2008.

A despeito de outros avanços específicos, é certo que o Decreto de Indulto de 2008 abrirá um grande leque de novas discussões doutrinárias, especialmente no que concerne ao tráfico de drogas e à medida de segurança.

Apenas um pequeno passo foi dado. Outros serão necessários para o enfrentamento do grave problema carcerário de nosso país.

Notas

(1) Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo, Ed. RT, 2001, p. 197.

(2) TORON, Alberto Zacharias. “Uma palavra sobre o indulto natalino de 2008”, in www.conjur.com.br, consulta feita em 8/1/2009.

(3) O texto era o seguinte: “Pondere-se, por fim, que a própria lei vigente recomenda, em algumas hipóteses e circunstâncias, a adoção de penas mitigadas (artigo 33, § 4°, c.c. 42), por entender desnecessária a pena do caput do artigo 33, em hipóteses em que não se reconheça no agente do delito a condição de traficante contumaz, mas mero ‘passador’ eventual. Se assim é, por que persistir a condição de hediondez também nestas hipóteses? Ademais, não se reconhecendo em algumas figuras do art. 33 da Lei de Drogas sua condição de crime hediondo, não estariam submetidos tais fatos ao restritivo mecanismo de submeter o autor do crime ao regime obrigatório fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade, conforme determinação do art. 1º da Lei 11.464/07.”

(4) Embora muitos dos artigos previstos no Título IV da Lei de Drogas tipifiquem múltiplas condutas, algumas destas não configuram a traficância. A agravar tal situação está o fato de que nenhum desses dispositivos legais faz-se acompanhar do nomen iuris “tráfico ilícito de drogas”, dificultando ainda mais sua interpretação.


Sérgio Salomão Shecaira
Presidente do CNPCP, professor titular da USP, ex-presidente do IBCCRIM e advogado criminal

Pedro Luiz Bueno de Andrade
Advogado criminal

SHECAIRA, Sérgio Salmão; ANDRADE, Pedro Luiz Bueno de. O novo decreto do indulto. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 4, fev. 2009.

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