terça-feira, 3 de março de 2009

Artigo: O indulto natalino de 2008 e a promoção da igualdade no ordenamento jurídico brasileiro

Com fundamento no art. 84, XII, da Constituição Federal e com a reconhecida legitimidade calcada nos princípios da dignidade humana, humanidade das penas e proporcionalidade(1), mais uma vez foi publicado, às vésperas do Natal, decreto presidencial concedendo indulto e comutação de penas a quem se encontrar nas condições ali estabelecidas. Embora a concessão da clemência estatal não seja propriamente uma novidade em nosso ordenamento, o Decreto nº 6.706/08 destaca-se, de maneira especial, pelo seu conteúdo, ou seja, pelo alcance de suas disposições.

Assim, foi dado um grande avanço no sentido da ampliação dos direitos da mulher condenada, foram agraciados não só os condenados à pena privativa de liberdade mas também aqueles que a tiveram substituída por penas restritivas de direitos, assim como foram voltados os olhos para os condenados à pena de multa. Tão ou mais importante é a previsão de indulto nos casos de submissão à medida de segurança, e também para os condenados às penas do art. 33, §§ 2º a 4º da Lei 11.343/06.

De maneira geral, vislumbra-se nesse decreto uma preocupação em prestigiar o importante princípio constitucional da igualdade, tão importante e frequentemente esquecido tanto pelo nosso legislador como pelos intérpretes do direito. Ao partir do pressuposto de que são proibidas discriminações arbitrárias, tal princípio impõe que a situações iguais seja dispensado tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado, na medida da diferenciação decorrente de uma causa objetiva; ou seja, onde houver diferenças a Constituição exige que a diferenciação das consequências jurídicas seja produzida em correspondência com aquelas — e somente nos limites do significado de tais diferenças, consideradas objetivamente(2).

Com esse ponto de partida, vislumbra-se que, sob aspectos distintos, pode-se dizer que no decreto de indulto natalino de 2008 buscou-se conferir aplicação prática ao princípio da igualdade. De forma bastante sintética, analisemos essas hipóteses.

De um lado, temos o art. 1º, VIII, que permite a concessão de indulto àqueles que se encontram submetidos à medida de segurança e que, até 25 de dezembro de 2008, tenham suportado privação da liberdade, internação ou tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou, nos casos da substituição prevista no art. 183 da Lei nº 7.210, de 1984, por período igual ao tempo da condenação.

Ao assim dispor, o indulto isenta de submissão à medida de segurança todos aqueles que a ela já estiveram submetidos por período maior do que o correspondente ao cumprimento da pena do crime praticado, caso tivessem sido considerados imputáveis. Pela via do indulto, portanto, criou-se a possibilidade de conferir algum tipo de limite ao prazo de duração das medidas de segurança — algo tido como garantia fundamental aos que se submetem à sanção criminal destinada aos culpáveis.

Apesar de ser indiscutível a pertinência da diferenciação das sanções penais entre penas e medidas de segurança — e entre seus pressupostos e suas respectivas consequências jurídicas —, claro também é que ambas guardam algumas importantes semelhanças que não justificam certas disparidades de tratamento. Como bem demonstrou Eduardo Reale Ferrari, não só ambas pressupõem um ilícito-típico previamente definido por lei e têm como finalidade, além da realização de justiça, também a ressocialização, a integração social e a prevenção, mas deve sempre ser lembrado que o caráter aflitivo, por sua vez, é traço característicos das duas espécies de sanção, já que na medida de segurança também ocorre a restrição da liberdade individual da pessoa(3).

Desta feita, apreende-se do Decreto nº 6.706/08 um claro reconhecimento de que é afrontoso à dignidade humana a inexistência de limite máximo à medida de segurança, razão pela qual optou o Presidente da República por conceder indulto àqueles que se encontravam submetidos a uma medida criminal há mais tempo do que o admissível caso tivesse sido levado em consideração o juízo de culpabilidade; ou seja, o ato de clemência do Estado atingiu aqueles que cumpriam, de fato, uma sanção de caráter perpétuo — ao arrepio o art. 5º, XLVII, da CF.

De outro lado, o art. 8º, I, impediu que o indulto alcançasse os condenados pela prática de tráfico ilícito de drogas, excetuando as hipóteses previstas nos §§ 2º ao 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, desde que a conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia. Aqui, quis o Decreto claramente tratar de maneira diferencia­da condutas que recebem diferentes valorações pela sociedade.

Em termos práticos, como bem observou Alberto Toron(4), poucos deverão ser os casos em que caberá a aplicação do Decreto aos condenados pelo art. 33, §§ 2º a 4º; quanto aos que tiverem sido condenados pelos §§ 2º e 3º, a pequena quantidade de pena cominada possibilitará, na maioria das vezes, a concessão do sursis ou a conversão da pena em restritiva de direitos, o que excluirá o condenado das hipóteses alcançadas pelo Decreto; já quanto aos condenados pelo § 4º do art. 33, a ressalva contida no próprio art. 8º, I, diminui consideravelmente o rol dos agraciados pelo Decreto, uma vez que não basta o agente ser primário, ter bons antecedentes e não se dedicar às atividades criminosas nem integrar organização criminosa, mas é indispensável, também, que conduta típica não tenha configurado a prática da mercancia.

Em que pesem essas restrições, merece destaque a importante função que teve o Decreto no sentido de reconhecer a diferença substancial existente entre as hipóteses alcançadas pelo indulto e o tráfico de entorpecentes previsto constitucionalmente como merecedor de uma reprimenda mais dura. De maneira especial, ao excepcionar da proibição de indulto àqueles que, embora condenados pelo tráfico de drogas, são primários, têm bons antecedentes, não se dedicam às atividades criminosas nem integram organização criminosa, o Decreto escancara aquilo que os operadores do direito e a sociedade em geral conhecem: existem inegáveis diferenças entre os juízos de reprovação que devem recair sobre pequenos e grandes traficantes, entre o vendedor ocasional e o chefe da quadrilha responsável pela distribuição da droga em determinada região. Se é passível de crítica a constatação de que o requisito de não praticar a mercancia restringe, sobremaneira, o alcance do Decreto, é motivo de aplauso a possibilidade de concessão de indulto a quem, por exemplo, envia droga via correio a parente residente em outra cidade ou cultiva drogas em seu quintal para distribuir aos amigos. Permite-se, com isso, que o juiz possa dispensar tratamento diferenciado àqueles que o legislador expressamente quis que recebessem tratamento mais benigno.

Ao lado destes dois aspectos do decreto de indulto natalino, merece destaque, também, o tratamento diferenciado dispensado à mulher. Por reconhecer a especial situação da condenada, de maneira especial quando a ela couber cuidar de filho com deficiência mental ou física ou menor de dezesseis anos, confere-se-lhe tratamento diferenciado, sendo facilitada a concessão do indulto por meio do estabelecimento de lapso temporal de pena cumprida menor em relação a quem não se encontra na mesma situação.

Com essas observações, verifica-se a importante função desempenhada pelo decreto analisado, que é a de trazer para o ordenamento jurídico-penal pequenas doses do princípio da igualdade, numa tentativa de introduzir no direito penal alguma racionalidade. Diante da violência e da insegurança que permeiam a nossa sociedade, a frequência de atos legislativos e decisões judiciais cada vez menos atentas às particularidades das condutas humanas e voltadas, prioritariamente, ao combate enérgico do crime pela repressão acabam desvirtuando a própria realização da justiça concreta ao equiparar o que intrinsecamente é diferente ou diferenciar de maneira desproporcional às reais diferenças.

Embora a concessão de indulto e comutação de penas seja ato político, discricionário do Chefe do Poder Executivo, é inegável a importância que pode ter em todo o ordenamento e na forma como o direito é operado. Quando o Presidente da República concede a clemência estatal a quem se encontra submetido à medida de segurança há mais tempo do que o limite máximo previsto para o delito praticado ou há mais tempo do que aquele a que foi efetivamente condenado, quando o pequeno traficante é tratado de forma muito mais adequada à real gravidade da conduta praticada ainda que formalmente o crime cometido seja etiquetado como hediondo, e quando a mulher condenada tem sua especial situação levada em conta para que a ela o indulto seja facilitado, impossível isso não impactar, de alguma forma, no desenvolvimento do sistema penal. Sobre isso, dizia Basileu Garcia que ao corrigir os erros ou excessos do rigor da Justiça, “o indulto é o prenúncio da reforma de leis que já não correspondem ao sentir da comunidade”(5). No caso do Decreto nº 6.706/08, que assim seja.

Notas

(1) BARROS, Carmen Silvia de Moraes. “Indulto condicional: triste equívoco”. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.12, n.144, p. 6, nov. 2004.

(2) Karl Larenz. Derecho Justo – Fundamentos de Ética Juridica, tradução de Luis Díez-Picazo, Madrid: Editorial Civitas, 1985, p. 142.

(3) Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 72 e segs.

(4) “Uma palavra sobre o indulto natalino de 2008”, disponível no site http://www.conjur.com.br/2009-jan-08/palavra_indulto_natalino_2008.

(5) Instituições de Direito Penal, v. 1, tomo II, 7ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 341.


Mariângela Gama de Magalhães Gomes, Professora-doutora de Direito Penal da USP.


GOMES, Mariângela G. de Magalhães. Indulto natalino de 2008 e a promoção da igualdade no ordenamento jurídico brasileiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 8-9, fev. 2009.

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