quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Entrevista - Cristina Bicchieri

O saber a serviço dos direitos humanos


Não basta ser bem-intencionado. Hoje, o ativismo de paz e direitos humanos recruta cientistas sociais e filósofos para compreender como se pode estimular mudanças em comportamentos e práticas locais - e globais. Cristina Bicchieri, professora de Filosofia da Ciência na Universidade da Pensilvânia e autora de diversos livros sobre ética e livre-arbítrio, conversou com o Comunidade Segura sobre a adaptação de objetivos às realidades locais.



Nessa entrevista exclusiva, ela conta como a compreensão das normas sociais levou uma ONG a erradicar a prática de mutilação genital feminina no Senegal, discute a ligação entre violência de gangues e falta de comunicação e o efeito da violência na mídia.



"As pessoas agem com base em comportamentos esperados; elas medem seus atos de acordo com as expectativas da sua comunidade. Se você entender essas expectativas, poderá promover a mudança", diz ela, que acredita que uma perspectiva distinta é necessária para cada caso. "Você deve observar as normas, atitudes e valores dessas pessoas, e daí trabalhar, sempre de baixo para cima. Não de cima para baixo: há muitos programas que falham por causa disso", diz.



O seu trabalho se encontra na interseção entre Filosofia, Psicologia e Economia. Fale um pouco sobre a sua pesquisa...



O meu trabalho mais recente tem sido particularmente sobre normas sociais. Fiz experimentos comportamentais para entender o que faz as pessoas seguirem ou não uma norma social. Descobri, então, a importância das expectativas.



As pessoas se comportam de acordo com as expectativas. Quando você se pergunta "como eu deveria me comportar?", você considera o que é esperado de você. Há dois tipos de expectativas: as empíricas, que são quando olhamos em volta e observamos como os outros se comportam - ou quando nos dizem como se comportam. É uma informação muito importante. Há também as expectativas normativas, relacionadas às normais sociais, que nos dizem o que as outras pessoas acham que eu deveria fazer. Se você quer promover mudanças, deve ter consciência de tudo isso.



Mas por que as normas sociais são importantes para ativistas de paz e desenvolvimento?



Escrevi um livro sobre normas sociais, fiz vários experimentos. A Unicef acabou ficando bastante interessada, pois, quando começaram a implementar os direitos humanos, eles perceberam que esse conceito estava sempre personificado em algo. Luta-se, por exemplo, pelos direitos das mulheres, das crianças...



O que se faz é identificar práticas negativas - grandes e óbvias violações de direitos, casamento infantil, mutilação genital feminina, exploração sexual infantil, turismo sexual etc. Há países, como o Quênia, onde há leis contra isso. Todavia, estou falando é dos casos nos quais as pessoas fazem escolhas erradas, ou seguem normas sociais que levam à violação de direitos. Eu estudo como essas normas afetam o comportamento.



E como isso se relaciona com a obediência às leis?



É muito importante distinguir as normas sociais das legais. Estas são as leis, escritas e apoiadas por sanções legais. As normas morais, por outro lado, são como valores pessoais. Você não liga tanto para o que as pessoas fazem ou deixam de fazer; você acha que faz o que é certo.



O que são normas sociais?



São normas de reciprocidade, de equanimidade, de cooperação etc. Tudo isso são normas sociais. Porque aquilo que fazemos ou deixamos de fazer depende muito do que esperamos que os outros façam ou não.



Então a senhora leva a ética das pessoas para o laboratório?



Testei como obedecemos as normas e pude perceber isso claramente em um experimento. Fui capaz de afetar como um indivíduo escolhe o seu comportamento dizendo a ele ou ela coisas diferentes sobre como outras pessoas se comportam em circunstâncias similares. Por exemplo, eu digo a alguém que a maioria das pessoas é muito egoísta, e então ele se comporta de maneira bastante egoísta. Se lhe digo que a maioria das pessoas é mais generosa, então ele irá se comportar mais generosamente.



Eles mudam porque confiam na senhora como uma figura de autoridade?



Não, eu mudo indiretamente, por meio de um computador, a informação oferecida para eles...



Então todos os indivíduos são facilmente manipuláveis?



Veja dessa forma: a maioria das pessoas pode ser influenciada. Observando a população geral, vemos dois grupos minoritários: pessoas muito boas - que agem com generosidade - e pessoas muito egoístas. Não importa o que eu fale para esses dois grupos, eles vão agir de acordo com suas próprias motivações.



Agora, posso dizer que cerca de 90% das pessoas são influenciadas a serem mais ou menos generosas de acordo com a informação que dou a elas. Elas mudam. Uso as mesmas pessoas em diferentes experimentos - e com informações diferentes - e é incrível como essas mesmas pessoas mudam. Elas fazem isso porque ajustam seus comportamentos de acordo com que elem pensam que se espera delas.



A senhora acha que isso se aplica a diferentes países e culturas?



Alguns experimentos comportamentais de antropólogos mostraram resultados semelhantes aos nossos. Veja o jogo Ultimatum, for exemplo: nos aponta coisas interessantes sobre normas similares e resultados opostos em diferentes culturas, como os EUA e a Papua-Nova Guiné.



No Brasil, diz-se que há leis que "pegam", e outras que não. Como isso afeta a proteção aos direitos humanos?



Isso é uma grande verdade. O que acontece é que os ativistas de direitos humanos começam a perceber que é importante entender como certos países apoiam indiretamente certas práticas ruins. Por exemplo, quando eu estava estudando o Quênia, olhei com atenção os estudos do Unicef, nos quais eles fazem entrevistas e têm informantes nas cidades e vilarejos etc.



Dois importantes fatores são o estatus da mulher e das crianças. Mulheres são consideradas inferiores aos homens, o que contribui para a exploração sexual. Em segundo lugar, as crianças são submetidas à família. Espera-se que, por exemplo, um bom filho ou filha contribua financeiramente para a família.



Vender sexo é muito recompensador, financeiramente falando. As famílias ficam orgulhosas quando uma filha consegue dinheiro assim, e compra uma geladeira, por exemplo. Mas as mesmas famílias rejeitam suas filhas doentes com aids, estupradas, grávidas.



E como fazer para influenciar esses grupos a mudar de atitude?



O que acontece é que, se você chega e diz a eles que isso é uma violação dos direitos da mulher, você não está fazendo contato com a comunidade, pois não é uma linguagem que eles compreendem. Então você deve fazê-los compreender que essas práticas matam, que a vida da filha está em risco, e que bons pais não querem suas filhas mortas.



O que você deve fazer, portanto, é trabalhar com as normas locais. Você não vai desafiar a norma de que uma boa filha fará algo pelo família. Você também sabe que é um bom costume que uma família tome conta de seus filhos. O que você deve fazer então é recategorizar essas práticas ruins, mostrando-as como indo de encontro à norma que lhes é cara.



E isso é estranho à prática americana. Os americanos vêm e dizem que você violou os direitos humanos, que você tem que instituir leis contra isso. Você deve observar as normas, atitudes e valores dessas pessoas, e daí trabalhar, sempre de baixo para cima. Não de cima para baixo: há muitos programas que falham por causa disso.



Você mencionou o extraordinário caso de erradicação da mutilação genital no Senegal. Esse é o método ideal?



Esse é o caso do trabalho da Tostan, liderada por Molly Melching. Eles trabalham com a questão a mutilação genital feminina e foram às cidades e vilas, analisaram as redes sociais, quem fala com quem, como eles se comunicam entre si, como a informação é disseminada.



Em um segundo momento, depois que eles descobrem tudo isso, reúnem as pessoas - especialmente os mais antigos e importantes - e começam a falar com elas. Não sobre direitos humanos, mas sobre o fato de que a prática de mutilação genital feminina não resolve nenhum dos seus problemas, de que não é realmente boa para as meninas, pois elas sofrem muito quando fazem sexo, que elas podem morrer no parto - ou no próprio ato de mutilação, por causa de infecções... Então, "se você ama a sua filha, melhor não fazê-lo".



Mas o que é único na abordagem deles? O que os fez ter tanto sucesso?



O importante aqui é que eles não falaram com as pessoas individualmente; todos estiveram envolvidos, e todos podiam ver um ao outro, o que cada um estava falando. E no final eles tinham que fazer uma promessa em público. Como falei anteriormente, as expectativas empíricas s]ao importantes. 'Tenho que observar o que as pessoas fazem - ou vão fazer. Do contrário, por que eu deveria ser o único que não mutila a minha filha e aí ela não encontra um marido?'.



Molly foi muito inteligente, e quando ela reúne todas essas pessoas para selar um compromisso em público, ela está trabalhando no nível das expectativas. Os habitantes estão olhando uns para os outros enquanto fazem suas promessas. Isso é interessante: tipicamente, as garotas casam fora do lugar onde moram, nos lugares próximos. Assim, a rede cresce. Elas vão para muitos lugares e isso é replicado nas redondezas. Houve um incrível sucesso no Senegal no sentido de eliminar completamente a mutilação genital.



Se você quer promover os direitos, deve promover a positividade, as capacidades das mulheres e crianças. Mas não simplesmente chegue dizendo que eles precisam de novas leis que estarão de acordo com os direitos humanos, porque isso não vai funcionar e ponto.



Como aplicar essa idéia às normas sociais que envolvem gangues, ou crianças-soldado?



Uma coisa bastante interessante é que se espera muita violência vinda de membros de gangues. Vários estudos nos EUA fizeram uso de entrevistas nas quais membros de gangues, quando entrevistados individualmente, frequentemente diziam que não estavam felizes com a violência e o comportamento que pensavam que era requerido deles.



Mas eles pensavam que eram os únicos que tinham esses pensamentos, estando, portanto, em uma posição vulnerável. Isso é o que se chama "ignorância pluralística" na psicologia social. Muitas pessoas em um grupo discordam das normas desse grupo, mas não há transparência ou comunicação, então os indivíduos pensam que os atos dos outros refletem o que eles pensam, e acabam agindo da mesma forma. Uma política apropriada aqui seria quebrar o isolamento de membros de gangues, e tornar pública a rejeição dessa violência.



Como a senhora enxerga o papel da violência na mídia?



A questão para mim não é tanto se o comportamento é violento, mas sim como esse comportamento é recompensado. Há um pathos nessa noção de que o bom comportamento compensa.



Tradução: Bernardo Tonasse

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