quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Entrevista - Maria Lucia Karam




A consagrada autora Maria Lúcia Karam acaba de lançar a coleção "Escritos sobre a Liberdade”, pela editora Lumen Juris. Nesta entrevista, exclusiva para o PORTAL DO IBCCRIM, ela conta como realizou um velho sonho de colocar no papel suas idéias sobre os direitos fundamentais, abolição do sistema penal e liberdade.

Como surgiu a idéia para a coleção "Escritos sobre a Liberdade"? Seu formato e divisão em temas obedeceram a que critério editorial?

O desejo de colocar em um livro minhas idéias, antigas e novas, sobre os direitos fundamentais, sobre a abolição do sistema penal, enfim, sobre a liberdade, já existia há algum tempo.

Desde a publicação de meu primeiro livro, De Crimes, Penas e Fantasias, em 1991, eu só vinha abordando esses temas em ensaios e artigos esparsos. Meus dois livros seguintes – Competência no Processo Penal e Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir – foram dedicados a questões mais relacionadas com a dogmática penal e processual penal. Mas, efetivamente, só dei os primeiros passos para concretizar esse desejo no segundo semestre de 2007, quando comecei a trabalhar nos primeiros textos do que viria a ser a coleção que intitulei de Escritos sobre a Liberdade.

Os temas abordados foram surgindo a partir do que me parecia mais importante discutir nessa tentativa de contribuir para um re-despertar do desejo da liberdade. Partindo do primeiro volume, Recuperar o desejo da liberdade e conter o poder punitivo, que traz uma visão mais genérica e cujo conteúdo se projeta e se aprofunda nos demais, a divisão dos temas pelos sete volumes da coleção obedeceu tão somente a algumas especificidades que cada um deles apresenta.

Optei por dividir os temas e fazer dos Escritos sobre a Liberdade não um livro único, mas sim uma coleção formada por sete pequenos livros, porque me pareceu que a leitura assim se tornaria muito mais prazerosa, muito mais leve e ágil, podendo ser feita tanto na ordem que escolhi, quanto na ordem que cada leitor preferir, a partir do interesse maior em cada um dos temas abordados, ou mesmo se limitar a um ou a alguns dos volumes, conforme esses interesses forem despertados.

A quem a coleção é dirigida? Ao que parece, a coleção quer atingir um público que vai além do profissional de Direito. Para atingir esse objetivo, houve um cuidado especial na redação dos textos e no uso de termos muito técnicos do chamado “juridiquês”?

Certamente, gostaria de atingir um público que vai muito além dos profissionais do Direito. Como escrevi na apresentação do primeiro volume, esses meus Escritos tratam de direitos fundamentais, da democracia, da liberdade e, portanto, devem interessar a todos os indivíduos.

Tive sim um cuidado especial na redação, procurando me libertar do “juridiquês”. Espero ter conseguido. Alguns leitores, não profissionais do Direito, me têm feito acreditar que consegui, dizendo que a leitura está sendo fácil e agradável.

Em sua apresentação do primeiro volume da coleção (Recuperar o Desejo da Liberdade e Conter o Poder Punitivo), a senhora aponta que "a recuperação do desejo de liberdade se faz essencial para conter as tendências totalitárias" da sociedade. Trata-se, portanto, de uma urgência detectada. O que acontecerá se não houver uma mudança no pensamento e no sentimento da sociedade? Caminharemos para a instituição de uma ordem legal punitiva desumana e totalitária?

Já estamos vivendo em uma ordem legal em muitos aspectos punitiva, desumana e totalitária. Por toda parte e com assustadora freqüência, ordens legais, mesmo no interior de Estados democráticos, paradoxalmente contrariam princípios garantidores positivados em normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, assim enfraquecendo a própria idéia dos direitos fundamentais e a própria idéia de democracia.

Isso é resultado da expansão do poder punitivo verificada especialmente a partir das últimas décadas do século XX; é resultado da aceitação das totalitárias propostas de troca da liberdade por uma suposta segurança; é resultado da criação de “inimigos” identificados entre os que são atingidos pela sempre violenta, danosa e dolorosa atuação do sistema penal.

A contenção dessa tendência punitiva, desumana e totalitária é efetivamente urgente. Ao invés de voltar preocupações para a segurança e a criminalidade, todos os que prezam a democracia deveriam estar mais atentos à eloqüente advertência de Nils Christie de que o maior perigo da criminalidade nas sociedades contemporâneas não é o crime em si mesmo; o maior perigo da criminalidade, nos tempos atuais, é sim o de que o pretexto da repressão ao crime acabe por conduzir todas essas sociedades ao totalitarismo.

A senhora acredita, com sinceridade, que a sociedade possa caminhar para a abolição do sistema penal? Há algum indicativo (histórico, antropológico, social) de que isso possa acontecer?

Certamente acredito. Transformações sociais, evoluções no caminho da humanidade acontecem mais cedo ou mais tarde, algumas vezes mais cedo do que poderíamos esperar ou sonhar.

Há meros 50 anos atrás, quem poderia, por exemplo, imaginar, esperar ou sonhar em ter um Afro-Americano eleito Presidente dos Estados Unidos da América? Há meros 50 anos atrás, Afro-Americanos ainda lutavam para conquistar direitos civis básicos, sequer tinham assegurado o direito a uma igualdade meramente formal, sequer tinham pleno acesso ao direito de voto. Agora, não só os Afro-Americanos, mas todos os Norte-Americanos e o mundo todo terão Barack Obama, filho de um africano, dirigindo a maior potência mundial.

Abolir o sistema penal soa como uma conquista mais plausível...

No seu entender e de pensadores como Raúl Zaffaroni, a moral “não é nem pode se tornar um bem jurídico”. Em temas como a eutanásia e o aborto, a questão moral aparece como o centro do julgamento que se quer impingir a toda uma comunidade. Como legislar e julgar corretamente, se o legislador e o juiz, nesses casos, sempre aplicará crivos morais próprios àquilo que sua visão considera delito ou crime?

Sua pergunta já demonstra uma das razões por que a moral não pode ser elevada à categoria de bem jurídico. Não existe uma moral. A moral é, antes de tudo, algo individual e relativo, baseando-se na autonomia da consciência individual. A moral não se confunde e não pode se confundir com o direito. A moral é e há de sempre ser distinta do direito.

O reconhecimento da dignidade e da liberdade inerentes a cada indivíduo garante-lhe a autonomia de escolher sua própria moral e obriga o Estado a assegurar a liberdade de consciência, a autonomia e a relatividade da moral, obrigando-o a tolerar qualquer posicionamento ou qualquer comportamento individual não lesivo a terceiros, ainda que este seja tido como imoral pela maioria das pessoas.

Ditames morais não podem ser impostos, não podem ser coercitivos como o são as normas jurídicas. Ao contrário, os ditames morais são objeto de livre adesão. Como ressalto no volume 2 dos Escritos sobre a Liberdade – Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto –, a virtude é uma expressão da liberdade. Não existe virtude onde exista uma obrigação ou um dever.

A senhora aponta que “poucos juízes têm compreensão de seu papel de garantidor dos direitos fundamentais”. Na prática, qual a possibilidade de um magistrado ignorar os “apelos midiáticos’’, nos casos em que a imprensa praticamente julga e condena os réus? Enfrentou problema semelhante quando era juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro?

De fato, poucos juízes têm compreensão de sua função maior, que é a de ser um garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo. A maioria dos juízes atua a partir da consideração da lei como algo indiscutível, esquecendo-se que a validade (ou a eficácia) de qualquer lei penal depende de sua conformidade aos princípios garantidores dos direitos fundamentais positivados nas normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas.

Essa incompreensão e esse esquecimento se agravam quando os “apelos midiáticos” se fazem presentes, quando entra em cena o chamado jornalismo investigativo ou o noticiário sobre fatos objeto de processos ou inquéritos de natureza penal de maior repercussão, quando são veiculadas campanhas demonizadoras, que, fácil e prontamente, elegem o réu ou o investigado para cumprir o papel de bode expiatório, ao mesmo tempo em que consagram como heróis os que assumem o papel de “justiceiros” e aparecem como seus implacáveis perseguidores e condenadores.

Muitos juízes ansiosos por seus “quinze minutos de fama” logo se candidatam a exercer esse desviado papel de “justiceiros”.

A pressão do “apelo midiático”, os prévios e antidemocráticos “julgamentos” midiáticos comprometem o direito a um julgamento imparcial (e justo), direito esse diretamente derivado da cláusula do devido processo legal e das garantias do acesso à justiça e da presunção de inocência. É preciso criar mecanismos aptos, se não a evitar, pelo menos, a minimizar tal pressão e, assim, se não assegurar totalmente, pelo menos, fortalecer as garantias da independência e da imparcialidade do julgador.

No volume 4 dos Escritos sobre a Liberdade – Liberdade, intimidade, informação e expressão – sugiro alguns mecanismos que, equilibrando o conflito estabelecido entre os direitos à informação e expressão e o direito a um julgamento imparcial (e justo), regulem a divulgação de matérias relacionadas a processos e investigações de natureza penal. Por exemplo, o impedimento de identificação, fotografia ou filmagem de réus em processo penal ou de qualquer pessoa cuja conduta esteja sendo investigada em procedimento formalizado ou não, à semelhança do que já ocorre em relação a fatos relacionados a adolescentes investigados ou processados por alegada prática de condutas que constituam ato infracional.

Não cheguei a enfrentar a pressão do “apelo midiático” em minha atuação como juíza. Deixei de exercer a magistratura desde o ano 2000. Essa pressão vem se acentuando mais recentemente, com a lamentável adesão de grande parte da mídia às campanhas de lei e ordem, ao cultivo do nefasto desejo punitivo, ao elogio à repressão a qualquer custo.

A senhora é a favor ou contra da criminalização do aborto?

Certamente, sou contrária à criminalização do aborto.

O aborto não é uma conduta desejável, uma situação que se possa avaliar positivamente. Tampouco é um simples meio de planejamento familiar, uma forma de assegurar a livre opção pela maternidade ou um direito da mulher sobre seu corpo. Abortar é provocar a morte do produto da concepção, que, embrião ou feto, é uma vida humana, embora dependente. Isso não significa, porém, que o aborto deva ser criminalizado. Ao contrário, como ressalto no volume 2 dos Escritos sobre a Liberdade – Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto –, estender a legalização do aborto com o consentimento da gestante às legislações de todos os países do mundo é algo urgente e necessário.

A proibição criminalizadora não impede e nunca impediu a realização de abortos. As circunstâncias da proibição ou da legalidade demonstradamente não têm qualquer relevância na maior ou menor quantidade de abortos, o que já seria razão suficiente para a imperativa extensão da legalização a todos os países do mundo.

Mas, há mais. Hoje, no mundo, mais de duas em cada quatro mulheres vivem em países livres da proibição, podendo realizar abortos legalmente, enquanto idêntica conduta de mulheres que vivem sob legislações proibicionistas, como acontece no Brasil, é qualificada como criminosa. Essa clamorosa injustiça ainda não é, porém, a razão maior da necessidade e da urgência da legalização.

A razão maior que deve conduzir ao afastamento da proibição criminalizadora é a de que, como acontece em outros campos, o pior da proibição está nos danos que ela própria causa. No caso do aborto, às não evitadas mortes de embriões ou fetos somam-se as mortes e lesões sofridas por milhares de mulheres em decorrência da precariedade das condições de sua realização clandestina. É, antes de tudo, para evitar essas mortes e lesões que se faz imperativo o reconhecimento da liberdade da mulher de optar pelo aborto, assegurando-se sua realização em sistemas públicos de saúde. As constatadas mortes de mulheres causadas pelas condições precárias em que são realizados os abortos criminalizados não parecem incomodar os proibicionistas que, paradoxalmente, se auto-intitulam “defensores da vida”.

A senhora é a favor ou contra da criminalização da eutanásia?

Certamente, também sou contrária à criminalização da eutanásia, tema igualmente objeto do volume 2 de meus Escritos sobre a Liberdade.

Criminaliza-se a eutanásia sob a alegação de que a vida seria um bem jurídico indisponível. Ocorre que, quando pretende tratar a vida como um bem indisponível, a lei está ilegitimamente subtraindo do indivíduo sua autonomia. A qualidade do indivíduo de titular daquele bem jurídico acaba por ser desautorizadamente transferida para o Estado e o indivíduo acaba por ser indevidamente submetido à vontade e aos poderes estatais.

Sem a possibilidade de disposição, isto é, sem a referência à vontade do indivíduo, o direito à vida perde seu significado. Ninguém pode ser obrigado a exercer um direito. Se existe a obrigação de exercer um direito, este desaparece e se transforma em dever. E viver, certamente, não pode se transformar em um dever.

A imperativa afirmação da possibilidade que há de ser garantida ao indivíduo de dispor de sua própria vida não implica apenas a conseqüente legalidade do suicídio, hoje amplamente reconhecida nos ordenamentos jurídicos. Há de implicar também a legalidade da eutanásia, reconhecendo-se a licitude da conduta de quem, de comum acordo com o indivíduo que quer morrer, contribua de qualquer modo para seu suicídio ou cometa diretamente o desejado homicídio.

Quando desconsidera o consentimento do titular do direito e criminaliza a conduta do terceiro que viabiliza a realização de seu desejo de morrer, a lei cria um mecanismo para indiretamente impedir que o próprio titular do bem jurídico exerça seu direito. Se um indivíduo que anseia morrer não tem condições de sozinho tirar sua própria vida, depende da ação de um terceiro. A criminalização da ação desse terceiro constringe o indivíduo que anseia morrer a viver contra a sua vontade, conseqüentemente o impedindo de exercitar sua liberdade.

É essa ilegítima intervenção do Estado sobre a liberdade individual, essa ilegítima subtração do direito do indivíduo à vida (que, naturalmente, implica a livre possibilidade de decidir até quando seu titular deseja exercê-lo), que constitui o ponto central a ser enfrentado no debate sobre a eutanásia.

Nesse debate, como assinalei no já referido volume 2 dos Escritos sobre a Liberdade, devemos ter consciência de que a eutanásia, a renúncia à vida, o desejo de morrer são situações demasiadamente dolorosas; devemos ter sempre presente que a morte, quaisquer que sejam as circunstâncias que a determinam, é sempre um acontecimento triste, difícil de entender e de aceitar; e, por isso mesmo, devemos estar atentos à advertência de Gimbernat Ordeig que nos alerta para que não tornemos a morte ainda mais difícil do que já é, contrariando a vontade de nossos semelhantes e aí intrometendo o direito penal.

O senso comum não trabalha com a presunção da inocência. Ao contrário, quem é acusado injustamente, caluniado ou difamado vira vítima de um crime cujos danos (morais, sociais, profissionais, psicológicos, etc) raramente são compensados. Como evitar que o aparelho judiciário seja usado indevidamente para macular a honra e a imagem pública de um inocente?

De fato, a presunção de inocência vem sendo ignorada e desprezada pelos muitos indivíduos que, sem perceber as nefastas conseqüências de suas opções punitivas, aceitam a troca do desejo da liberdade por uma almejada, mas falsa, segurança, esquecendo-se de que a proposta substituição da liberdade por segurança, além de implicar a perda da liberdade e não trazer a almejada segurança, acaba por significar a substituição da democracia pelo totalitarismo.

Arecuperação do apreço pela presunção de inocência é fundamental não só para assegurar a efetivação da cláusula do devido processo legal, mas também para o próprio convívio harmônico e respeitoso na vida em geral. Como destaco especialmente no volume 5 dos Escritos sobre a Liberdade – Liberdade, presunção de inocência e direito à defesa –, as idéias de que o réu seja tratado como inocente enquanto não for pronunciada uma condenação definitiva, de que não é o réu quem tem de provar que não praticou o crime de que é acusado, de que não seja constrangido a fazer ou a contribuir para que se façam provas contra si mesmo, são idéias especialmente importantes para o processo penal, mas valem também para a vida em geral.

De todo modo, ainda que efetivamente respeitadas as normas fundamentais garantidoras da presunção de inocência, dificilmente será possível evitar que o processo penal macule a honra e a imagem pública de quem nele figura como réu, ainda que, ao final, sua inocência seja reafirmada com a proclamação de sua absolvição. A idéia de crime é indissociável do estigma que marca a imagem do “criminoso”. E a mera suspeita de possível prática do crime, revelada na acusação, já traz consigo a carga desse estigma. Só o definitivo rompimento com a própria idéia de crime, só o abandono da sempre danosa e dolorosa reação punitiva, só a futura abolição do sistema penal é que efetivamente poderão preservar a dignidade e o respeito devidos a todos os indivíduos, não importando quem sejam, o que pensem ou o que tenham feito.

A denúncia anônima tem amparo constitucional? Como reagir nos casos de prisões arbitrárias? No caso das prisões provisórias, não está havendo, em geral, um abuso dos agentes policiais?

O anonimato já não se compatibiliza com a responsabilidade que cada indivíduo há de ter quando exerce seu direito à liberdade de expressão. Como assinalo no volume 4 dos Escritos sobre a Liberdade – Liberdade, intimidade, informação e expressão – o anonimato é uma atitude covarde e traiçoeira de quem quer fugir às suas responsabilidades. A Constituição Federal brasileira, no inciso IV de seu artigo 5o, consagra a exigência de identificação de quem se expressa publicamente. Se o anonimato já é genericamente vedado, sua incompatibilidade como fundamento para uma acusação de prática de um crime é ainda mais evidente. Quaisquer provas, quaisquer fundamentos para qualquer acusação hão de ter a transparência que viabilize sua submissão à análise e aos questionamentos da defesa. A transparência, aliás, é qualidade essencial de qualquer atuação do Estado democrático.

Prisões arbitrárias não resultam apenas de abusos praticados por agentes policiais. No campo das prisões provisórias, agentes policiais, em geral, limitam-se a cumprir ordens judiciais. Tornou-se um lugar comum a fácil “culpabilização” de agentes policiais sempre que se visualiza alguma arbitrariedade. De fato, são eles os mais vulneráveis, os que exercem funções vistas como menos respeitáveis. Juízes e integrantes do Ministério Público são poupados; exercem funções vistas como superiores. Os mesmos mecanismos que fazem recair a atuação do sistema penal preferencialmente sobre os mais vulneráveis, sobre os desprovidos de riquezas e de poder, sobre os marginalizados e excluídos, aqui funcionam internamente.

A forma de reagir contra prisões arbitrárias é a mesma que se há de utilizar para reagir a todos os arbítrios: recuperar e sempre cultivar o desejo da liberdade e, assim, exigir e lutar pela estrita e permanente efetivação dos direitos fundamentais; exigir e lutar pela estrita e permanente aplicação das normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, garantidoras desses direitos; jamais conciliar com qualquer tentativa de afastamento da vigência dos princípios garantidores positivados naquelas normas fundamentais.

Como tem sido, via de regra, o tratamento dispensado ao preso provisório no sistema prisional brasileiro? Como é a situação em outros países (Latino-América, EUA e Europa)?

Os desautorizados excessos na imposição de prisões provisórias, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, já se revelam claramente no número de presos sem condenações definitivas. No volume 6 dos Escritos sobre a Liberdade – Liberdade, presunção de inocência e prisões provisórias – reúno alguns dados que mostram que, no Brasil, cerca de 40% do total de mais de 400.000 encarcerados são presos provisórios; nos EUA, cerca de 21%; na Itália, cerca de 58%.

Essa proporção (ou melhor, essa desproporção) já basta para demonstrar o desrespeito à exigência de excepcionalidade de qualquer prisão provisória, isto é, de qualquer prisão que, não decorrendo de condenação não mais sujeita a qualquer recurso, não tem, nem pode ter, a natureza de pena. Essa desproporção revela que, na prática viciada dos órgãos da justiça criminal, prisões provisórias são sistematicamente impostas como uma verdadeira e desautorizada antecipação da pena, em oblíqua, mas nítida, violação da cláusula do devido processo legal.

No seu modo de ver, a criminalização das chamadas drogas ilícitas tem a tendência de ser abrandada ou exacerbada? E com relação às drogas consideradas lícitas, em que direção caminha a legislação brasileira?

Não basta abrandar a criminalização de condutas relacionadas às drogas tornadas ilícitas. Como sustento no volume 3 dos Escritos sobre a Liberdade – Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas –, é preciso sim pôr fim ao proibicionismo criminalizador dessas condutas e legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as substâncias psicoativas.

Tenho certeza de que, mais cedo ou mais tarde, as tendências hoje criminalizadoras serão superadas; a racionalidade, que hoje, nessa matéria, parece entorpecida, será recobrada; os riscos, danos e enganos do proibicionismo serão percebidos; e, então, as convenções internacionais e as leis nacionais serão radicalmente reformadas e a produção, o comércio e o consumo de todas as substâncias psicoativas passarão a se desenvolver em um ambiente de legalidade.

A legalização é essencial para eliminar a fonte de violência e corrupção provocada pela ilegalidade. A violência e a corrupção só estão associadas à produção e ao comércio dessas substâncias tornadas ilícitas porque o mercado foi tornado ilegal.

A legalização é essencial para permitir a regularização e o controle desse mercado e, assim, reduzir os eventuais riscos à saúde decorrentes da inevitável circulação dessas substâncias. Além do evidente fracasso em seu objetivo explícito de pôr fim, ou ao menos reduzir, a circulação das drogas tornadas ilícitas, o proibicionismo criminalizador impede qualquer controle sobre essa circulação. Um dos maiores paradoxos do proibicionismo criminalizador está no fato de que a ilegalidade significa exatamente a falta de qualquer controle sobre o supostamente indesejado mercado, entregue a agentes que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a quaisquer limitações reguladoras de suas atividades.

A legalização é essencial ainda para pôr fim a uma das maiores fontes de violações às normas fundamentais inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas. Tais violações, que se fazem sistematicamente presentes nas proibicionistas convenções internacionais e legislações nacionais sobre essa matéria, são uma ameaça à própria subsistência da democracia.

Quanto às drogas já lícitas, a legislação brasileira vigente contém bons exemplos de regulação racional de sua produção, comércio e consumo, sinalizando como deve se desenvolver o desejável controle sobre todas as substâncias psicoativas. Fiscalização das autoridades sanitárias sobre a produção e o comércio; restrições à publicidade; vedação de consumo em determinados lugares e reserva de área para tal fim, como na vigente legislação relacionada ao tabaco; esses e outros mecanismos podem e devem ser estendidos à produção, ao comércio e ao consumo das drogas a serem legalizadas.

Lamentavelmente, porém, alguns excessos, já concretizados ou propostos, vêm manchando a legislação brasileira no campo das drogas já lícitas. Exemplo dessa desautorizada tendência é a modificação introduzida pela Lei 11.705/2008, na regra do artigo 306 do Código de Trânsito (Lei 9.503/97), indevidamente afastando a referência ao perigo concreto na tipificação da conduta de quem dirige veículo, em via pública, sob a influência de álcool. Essa nova redação, popularmente chamada de “lei seca”, é manifestamente inconstitucional, por desvincular a tipificação da inafastável exigência de lesividade da conduta proibida.

Seria impensável, por exemplo, criminalizar o consumo de uísque por um executivo latino-americano num hotel de uma metrópole como São Paulo ou Buenos Aires, mas parece perfeitamente ‘lícito’ criminalizar a folha de coca mascada por um indígena nos Andes. Até que ponto o interesse econômico decide no processo de criminalização das substâncias químicas?

Não me parece que a subsistência do proibicionismo criminalizador seja apenas uma questão de interesse econômico ou de diferenciação entre condutas de ricos e pobres. Executivos de São Paulo ou Buenos Aires também fazem uso da coca, em sua industrializada versão (a cocaína).

Parece-me sim que a grande sustentação do proibicionismo criminalizador de condutas relacionadas às drogas tornadas ilícitas resida na fácil instrumentalização dessas substâncias como pretexto para o exercício de poder, na sua funcionalidade facilitadora do exercício do poder punitivo. O proibicionismo criminalizador foi a primeira fonte e ainda é um importante sustentáculo da expansão do poder punitivo verificada a partir das últimas décadas do século XX.

Como assinalo no já citado volume 3 de meus Escritos sobre a Liberdade, por envolverem hábitos presentes em todo o globo e que deitam raízes na própria história da humanidade; por conterem elementos permeáveis a campanhas moralizantes e à criação de fantasias e mistérios, a produção, a distribuição e o consumo das selecionadas drogas, que, com a proibição, se tornaram ilícitas, são um fácil pretexto para sua apresentação como o novo “mal universal”, um “flagelo”, algo assustador e ameaçadoramente próximo, que seria incontrolável por meios regulares e deveria ser enfrentado com medidas mais rigorosas, excepcionais ou emergenciais. A manipulação de mistérios e fantasias em torno de um hábito universal, naturalmente, é muito útil e funcional ao exercício do violento, danoso e doloroso poder punitivo, satisfazendo plenamente o nefasto despertar de desejos repressivos.

A partir de sua convivência e atuação como juíza, a senhora acredita que a idéia da ”compensação do mal do crime com o mal da pena” encontra cada vez mais respaldo nos círculos judiciários? Há alguma tendência contrária a essa, nesse mesmo universo de magistrados?

A irracionalidade do sistema penal nitidamente se revela nessa nociva idéia de se pretender compensar o mal do crime com o mal da pena. Como indago especialmente no volume 7 dos Escritos sobre a Liberdade – A privação da liberdade: o violento, danoso, doloroso e inútil sofrimento da pena –, se o mal é algo que se deseja ver afastado ou evitado, qual seria a racionalidade de se reproduzi-lo através da pena? Esse “sofrimento órfão de racionalidade”, como Zaffaroni qualifica a pena, teve e tem um altíssimo custo para a humanidade. Como assinala Ferrajoli, a história das penas é seguramente mais horrenda e infamante para a humanidade do que a história dos crimes, seu custo em sangue, mortificações e vidas sendo muito mais alto do que o custo de todos os crimes.

Apesar de sua manifesta irracionalidade, essa nociva idéia de se pretender compensar o mal do crime com o mal da pena, infelizmente encontra respaldo nos círculos judiciários. Como antes mencionei, poucos juízes têm compreensão de sua função maior de garantidores dos direitos fundamentais do indivíduo; muitos juízes se esquecem da imperativa aplicação dos princípios garantidores positivados nas normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas; muitos juízes não hesitam em se travestir de “justiceiros”.

Nosso Supremo Tribunal Federal, em algumas decisões exemplares, ao menos tem freado esse furor punitivo, como no recente julgamento do HC 95009, em que definitivamente concedida a ordem que liminarmente já havia feito cessar evidentes constrangimentos consubstanciados em desautorizada decretação de prisão temporária e em desobediente decretação imediatamente posterior de prisão preventiva “substitutiva” daquela prisão temporária declarada ilegal. E, nesse caso exemplar, em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal afinal confirmou as liminares concedidas por seu Presidente, surpreendentemente, ainda se ouviram críticas, até mesmo de magistrados e suas entidades, que, inconformados com a prevalência da liberdade, se solidarizaram (!) com a postura repressiva, insidiosa e desobediente do “justiceiro” juiz de 1o grau, reprovando (!) a regular e garantidora atuação do Presidente de nossa Suprema Corte.

Para finalizar, o que a sociedade pode fazer quando o aparelho judiciário passa a ser usado como instrumento de violação dos próprios princípios fundamentais de direito e liberdade do cidadão?

O mais importante a fazer é, como sugiro ao longo de todo o conjunto de meus Escritos sobre a Liberdade, romper com as nefastas tendências punitivas; recuperar o desejo da liberdade; defender em quaisquer circunstâncias os direitos fundamentais; lutar pela efetiva supremacia dos princípios garantidores positivados nas normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas; garantir a subsistência do modelo do Estado de direito democrático.

Uma sociedade assim compromissada com a liberdade e com a democracia, certamente produzirá um Poder Judiciário igualmente garantidor da liberdade e da democracia, um Poder Judiciário efetivamente garantidor dos direitos fundamentais de cada um dos indivíduos.

IBCCRIM.

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