quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Artigo: "É crime doutor?" Aspecto criminal da radiodifusão

I - Prólogo

1. A radiodifusão tem, nos últimos anos, assistido ao aparecimento das denominadas "rádios comunitárias", que se espalham por todos os cantos do Brasil, com a pretensão de comunitarizar um excelente meio de comunicação.

2. O Ministério das Comunicações, por seu turno, tem, repetidas vezes, colocado a sua fiscalização no encalço dos responsáveis por tal empreendimento, argumentando - ad nauseam - que a prática de tal constitui crime apenado com detenção variável de um a dois anos.

II - Histórico

1. Como advogado de uma pequena estação radiofônica, e o faço com a maior boa vontade e distância pecuniária, tenho trabalhado em prol de fazer conquistar mais este espaço a todos aqueles que, sem voz nem vez, quiserem fazer-se expressar e, como consectário disso, garantir à população de nosso lugar o direito sagrado e inalienável de construção da vida comunitária.

2. Meus constituintes sofrem a iminência da persecutio criminis por força do artigo 70 da Lei n° 4.117/62. Seus equipamentos foram apreendidos pela polícia federal em função de Mandado Judicial e, ainda hoje, pelas ruas da minúscula cidade, os ribeirão-claresenses me perguntam: - E a nossa rádio? É crime, doutor?

3. A "Rádio Comunitária de Ribeira Claro" é pessoa jurídica de direito privado, composta de uma diretoria e conselho comunitário, agindo sem fins lucrativos e com intuitos culturais; mas o que considero de mais moderno em seu estatuto é a inclusão da figura do ombudsman, a ser nomeado pelo representante local do Ministério Público do Estado, com força para fiscalizar as atividades da emissora, podendo requisitar, na grade de programação, os horários e os dias que julgue necessários para a defesa dos interesses da comunidade.

III - Aspectos jurídicos (cíveis)

1. A rádio comunitária existe por força da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cognominada de Pacto de San José De Costa Rica (de 22 de novembro de 1969), que, no seu artigo 13, traz um hino à liberdade de pensamento e expressão, declarando que "2. O exercício do direito previsto no inciso precedente (liberdade de pensamento e expressão) não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidade ulteriores, que devem ser expressamente fixadas em lei" e "3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meio indiretos, tais como abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões."

2. Ainda, é preciso informar, o Brasil promulgou o Pacto de San José através do Decreto n° 678/92, autorizado pelo Decreto Legislativo n° 2 7, do Congresso Nacional, de forma a reconhecê-lo como lei interna em nosso País.

3. Por sua vez, a Constituição Federal de 1988, dentre outras garantias, assegura que, no seu artigo 5°, § 2°, "os direitos e garantias expressas nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

4. Também da mesma Carta Política (artigos 220 e § 1°, além do 223, caput) se extrai a lição seguinte: "a) art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. b) art. 220 - § 1° - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5°, IV, V, X, XIII e XIV. D) art. 223 - Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público estatal." Ora, "Ainda não se definiu o que seja sistema público. O que temos é o sistema estatal. De onde surgirá o sistema público? As comunidades anseiam pela abertura de faixas comunitárias, de estações de baixa potência" (apud Legislação e Comunicação, de Luiz Maranhão Filho, Ltr, 1995, p. 135).

IV - Aspectos Jurídicos (criminais)

1. Inexiste crime. A radiodifusão comunitária é um direito amparado por uma declaração internacional e recepcionado pela Constituição Federal de forma inconteste.

"Face aos itens 2 e 3 daquela Convenção, o artigo 70 da Lei n° 4.117/62, com redação determinada pelo Decreto n° 236, de 28 de fevereiro de 1967, tempo do regime ditatorial que vigorou em nosso País, está, prima facie, derrogado, ao menos na parte que diz respeito de autorização governamental, para a permissão de funcionamento de emissoras de radiotransmissão, de baixa potência, para fins exclusivamente culturais", segundo as judiciosas palavras do juiz federal Aroldo José Washington, da Primeira Vara Federal em Araçatuba/SP.

2. O artigo 70 da Lei n° 4.117/62 foi elaborado em pleno regime de exceção (28.02.67) e autografado pelo mal. Humberto de Alencar Castelo Branco a fim de ser usado para calar as vozes e manter a "noite escura", fazendo uma espécie de anticlímax para o terrível AI-5 que viria a seguir (13.12.68).

3. Há que se pensar na excelente lição de Carlos Maximiliano, apud Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 11ª ed. p. 159, quando diz: "As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de ser de toda a evolução jurídica; e o direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social. Como, pois, recusar interpretá-lo no sentido das concepções sociais que tendem a generalizar-se e a impor-se?" Há que se dar roupagem nova ao artigo 70 da Lei n° 4.117/62.

4. O artigo 70 da Lei 4.117/62 é, data venia, consoante argumentação já esposada, norma penal em branco, pois, como se sabe, falta a norma regulamentadora, a norma de integração, não se podendo falar em crime.

Tome-se as palavras certeiras do saudoso mestre Nélson Hungria para dirimir a questão (in Comentários ao Código Penal, do Nélson Hungria e Heleno Fragoso, Forense, 6ª ed., pp.103/104): Leis penais em branco. Há certas leis penais que dependem, para sua exeqüibilidade, do complemento de outras normas jurídicas in fieri ou da futura expedição de certos atos administrativos (regulamentos, portarias, editais).

È o que se chama de 'leis penais em branco ', 'cegas' ou 'abertas'. Contêm a sanctio (cominação de pena), mas o proeceptum (ou, pelo menor, a precisa fixação deste) é remetido à lex ferenda ou futuro ato administrativo. A pena é cominada à transgressão (desobediência, inobservância) de uma norma (legal ou administrativa) a emitir-se in futuro. (...) é óbvio que passando os 'regulamentos, portarias ou editais' a fazer corpo ou unidade lógica com a lei penal, cumpre, para sua eficiência, que sejam publicadas no órgão oficial (art.1º da Lei de Introdução ao Código Civil) atendidas as regras sobre a vacatio: antes disso, por maior que seja a sua divulgação por outros meios, serão inteiramente anódinas (pois o nemo censetur ignorare legem pressupõe, necessariamente, a publicação oficial da lei)."

V- Conclusão

1.Tramitam pelo Congresso Nacional vários projetos de lei que regularão as rádios comunitárias. Temo que o governo possa fazer valer o seu e a velha frase: "mudar para ficar como está" continue em evidência.

Afinal, a barganha política alcança também as concessões de rádios e televisão, como já vimos em época não muito remota, em que se distribuíram "1.028 concessões de rádio e televisão para garantir mandato de cinco anos" (Moacir Pereira, em O Direito à Informação da Nova Lei de Imprensa, Editora Global, 1993, p.24).

2. É preciso descriminalizar a radiofusão comunitária e levá-la aos foros da cidadania, retirando-lhe a pecha de ilicitude.

Estamos no limiar do ano dois mil, o homem miniautorizou equipamentos, foi à Lua, "entra" na Internet e consulta home page clicando o mouse, mas ainda precisa "ter regulada sua liberdade de expressão".

3. Ademais, uma pequena comunidade rural não pode ficar atrelada à comunicação de massa das grandes rádios comerciais, que, em alguns casos, emitem seus sinais via satélite - massificando a "inteligência" com clara intenção pecuniária e têm, muitas vezes, programação de gosto discutível , haja vista as macaquices, arrotos e chulices levados ao ar diariamente e incompatíveis com o que se quer ouvir, ainda mais levando-se em conta que as pequenas localidades interioranas também têm do que falar do que falar e não encontram espaço para tal.

4. Para finalizar, nada melhor que as sábias palavras do eterno Roquette Pinto, quando este dizia: "...o rádio é o jornal dos que não sabem ler, é o mestre de quem não pode ir à escola, é o divertimento gratuito do pobre; é o animador de novas esperanças; o consolador dos enfermos; o guia dos sãos, desde que se realizem com o espírito altruísta e elevado..." (in A Radiodifusão no Direito Brasileiro, Editora Del Rey, 1992, de Luciana Moraes Raso Sardinha Pinto, da UFMG, p. 07).

5. "É crime doutor?"

1. Pergunto eu: - É crime, doutores?


Daniel Pereira da Silva, Advogado em Ribeirão Claro (PR).

DA SILVA, Daniel Pereira. É crime doutor? Aspecto criminal da radiodifusäo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.49, p. 08-09, dez. 1996.

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